15 de abril de 2022

O corpo com que ressucitamos

Isto é tudo muito confuso; explique-me lá, senhor padre: quando morremos o nosso corpo vai para a terra, a nossa alma vai para o céu, e nós? Para onde vamos nós?

A morte como passagem – Páscoa
Do ponto de vista da nossa fé, não devemos usar a palavra morte como se fosse um destino final. Os finados são os mortos; finado indica fim, findado, acabado. Isto não é verdade no âmbito da nossa fé.

Neste âmbito, a morte não é a última coisa que pode acontecer-nos, mas sim a penúltima. A morte é mais uma etapa de crescimento, a passagem da vida espácio-temporal para uma vida eterna além do espaço e do tempo. Acreditamos haver vida para além do espaço e do tempo. Porque Deus o Senhor da vida vive para além do espaço e do tempo por ele criados.

Já na Natureza a morte não é nunca um estado definitivo, mas sim uma passagem entre uma forma de vida e outra forma de vida. Segundo Lavoisier, na Natureza nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma. A morte de um ser vivo dá sempre lugar à vida de outro. A vida é um círculo eterno de morte e vida, porque a vida se alimenta de vida, todo o ser vivo é alimento de outro ser vivo.

Nasce a erva que morre nos dentes da gazela que dela se alimenta. A erva não morre, transforma-se em gazela, que depois se transformará em leão, que ao morrer será comido pelos abutres e pelas hienas, que ao morrer darão vida a inúmeros vermes, que ao morrer fecundarão a – terra onde volta a nascer a erva.

A morte não é um estado, mas uma passagem. Aqueles que têm experiências de quase morte falam de um túnel e da luz no fim de um túnel. O mesmo acontece quando nascemos: há um túnel e a luz e dizemos em português que deu à luz. O nosso nascimento pode ser visto como a nossa primeira morte, morte à vida que tínhamos no seio da nossa mãe. Do mesmo modo, a nossa morte pode ser vista como o nosso nascimento para a vida eterna, para o seio de Deus

A morte é uma passagem de uma forma de vida para outra forma de vida, de estar no seio ligados à nossa mãe pelo cordão umbilical para vir para a luz, respirando por nós mesmos. A vida é um dom de Deus, é o ar que inalamos pelas nossas narinas e que nos leva a começar a viver até ao dia em que expiramos esse ar e voltamos para Ele.

A metáfora da borboleta
Na Natureza, há seres vivos que mudam de forma durante a sua vida. A rã é um deles, a borboleta é outro. A mudança de forma obriga também a uma mudança de meio, tanto no caso da rã como no caso da borboleta. A borboleta nasce sendo uma lagartixa que arrasta o seu ventre pela terra, comendo folhas até ao dia em que, aparentemente, morre.

O que aparentemente é uma morte é só uma mudança de forma que, guardando semelhanças com a anterior, é diferente dela. A nossa vida na Terra é como a da lagartixa, a nossa vida no céu é como a da borboleta; o nosso corpo físico é como o da lagartixa, muito apegado à terra, o nosso corpo espiritual é como o da borboleta, mais livre, voando de flor em flor.

A lagartixa é uma metáfora da nossa vida na Terra, do nosso corpo físico que está dependente da Terra. Como a lagartixa, arrastamos o nosso corpo pela terra, mas estamos chamados a ter uma vida superior, somos potenciais borboletas. Para chegar a ser borboletas e a realizar o sonho do Homem de poder voar, temos de passar pela quase morte. Não podemos ser lagartixa e borboleta; para sermos borboleta temos de deixar de ser lagartixa.

A vida como borboleta, voando num mar de diferentes flores, com outras borboletas de diferentes cores, num dia cálido de primavera, por campos, vales e valados à luz do sol radiante das primeiras horas da manhã, esta é a vida à qual todos estamos chamados: o Céu.

A metáfora da água
Uma outra metáfora que a Natureza nos dá para nos ajudar a conceptualizar a Ressurreição, são os três estados físicos da água. A água, sem deixar de ser o que é, ou seja, sem se transformar em outro elemento, existe na Natureza em três diferentes estados que são tão distintos entre si que poderíamos até pensar que se trata de diferentes elementos quando os comparamos entre si.

Vem do oceano e é vapor que não pode ser visto. Condensa-se e cai sobre a Terra, penetra nela e nasce em forma de surgente, formando regatos, ribeiros e rios. É enterrada e brota novamente, correndo e formando rios, dando vida à sua passagem, até voltar ao mar.

Em vez de chuva, pode cair em forma de neve; a 0 graus congela, ficando rija como uma rocha; a 100 graus ferve e evapora-se e, sem deixar de ser o que é, passa a existir em estado gasoso, invisível aos nossos olhos e intangível ao nosso tato. Podemos voltar a vê-la e a tocar-lhe se a fizermos condensar numa superfície mais fria que a temperatura do ar.  

Se a água, sem deixar de ser o que é, pode existir numa forma invisível e intangível, diríamos quase espiritual, como não podemos também existir invisível e intangivelmente nós que até temos um corpo que é formado por 80% deste elemento?

Os 17 corpos físicos da nossa vida
O primeiro ser vivo que habitou este planeta era um ser unicelular; ainda existem seres vivos que são unicelulares, como por exemplo a ameba. A ontogénese recapitula a filogénese, ou seja, os milhões de anos da História da vida neste planeta recapitulam-se ou repetem-se abreviadamente na história individual de cada ser humano que vem a este mundo.

Também nós já fomos uma única célula formada por meia célula do nosso pai, o espermatozoide, e meia célula da nossa mãe, o óvulo. Unidas as duas, nascemos nós, uma célula humana com um código genético único na História da humanidade; em pouco tempo, esta célula subdividiu-se em outras células para formar um corpo humano adulto, constituído por 300 triliões de células.

Cada uma das nossas células segue a lei geral que rege a vida neste planeta: nascer, crescer, reproduzir-se e morrer. Assim se explica o crescimento e envelhecimento do nosso corpo. De facto, à exceção das células do nosso cérebro, os neurónios, todas as outras seguem a regra geral – podemos dizer que a cada 5 anos mudamos, a cada 5 anos temos um corpo biologicamente diferente.

Numa vida média de 85 anos, temos 17 corpos diferentes. Com qual dos 17 ressuscitaríamos? Com nenhum deles, pois não é o corpo físico que ressuscita, mas sim o corpo espiritual que é uma síntese de todos eles, mas nenhum deles em particular.

O que é o corpo espiritual?
Sabemos, com efeito, que, quando a nossa morada terrestre, a nossa tenda, for destruída, temos uma habitação no Céu, obra de Deus, uma casa eterna, não construída por mãos humanas. E por isso, gememos nesta tenda, ansiando por revestir-nos daquela habitação celeste, contanto que nos encontremos vestidos e não nus. 2 Coríntios 5, 1-3

De uma forma simples e sem rodeios, o corpo espiritual é constituído pelos tesouros que durante toda a nossa vida acumulamos no Céu. (Mateus 6, 19-34). Esses tesouros, esses bens espirituais, que ao fim da nossa vida formam um corpo que é a nossa história, são as boas obras, são o que conseguimos espiritualizar com os nossos recursos materiais e os nossos talentos espirituais.

Diz o povo que quem dá aos pobres empresta a Deus, ou seja, que o dinheiro ou qualquer bem material temporal, quando é usado para um fim espiritual, se transforma num bem eterno, se espiritualiza, tornando-se num tesouro acumulado no Céu.

Usando uma metáfora que todos entendemos, a nossa vida é como uma destilaria. A destilação é um processo onde os bens materiais se evaporam pela fervura, retirando-se deles a sua essência. Para obter a essência de um perfume é necessário destilar toneladas de uma flor particular, adquirindo-se assim umas poucas gotas de essência. O álcool resultante da destilação da uva ou da cevada chama-se em inglês “spirit”, o whiskey e o brandy ou conhaque   são chamados desta forma porque resultam do processo de destilação.

Reza a história que uma mulher estava habituada neste mundo a todos os luxos e bajulação das pessoas porque era famosa. Morreu um dia e, quando chegou ao Céu, S. Pedro levou-a pela mão para a conduzir à sua habitação celestial.

Passaram por muitas mansões encantadoras, ao estilo de Beverly Hills e a mulher pensou que seria uma daquelas que lhe tinha sido atribuída. Depois chegaram aos subúrbios e aos edifícios altos com apartamentos e ela pensou “Bem, será pelo menos um daqueles”, mas não...

Depois chegaram aos bairros de lata do Céu e S. Pedro mostrou-lhe uma cabana feita de cartão e lata. "Esta é a sua casa", disse S. Pedro. "O quê?", disse a mulher, “aquilo? Não posso viver nessa espelunca! “Sinto muito", disse S. Pedro, mas foi isto que conseguimos construir para si com os materiais que durante a sua vida nos enviou".


Tenho para mim que quanto mais a ciência desvenda os mistérios da Natureza, mais fácil se torna acreditar em Deus que tudo fez, na vida para além da morte. No contexto da física mecanicista de Newton, onde matéria é matéria e energia é energia, era difícil acreditar na Ressurreição.

Com Einstein, que descobriu que a matéria e a energia são a mesma coisa, ou seja, que a matéria pode transformar-se em energia e que a energia pode transformar-se em matéria, é bem mais fácil acreditar que o nosso corpo físico material pode transformar-se num corpo energético espiritual.

Pe. Jorge Amaro, IMC


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