Se assim fosse, ficaria provado que Jesus procurava a restauração de Israel, mas assim não foi. Jesus escolheu 12 apóstolos de entre os seus muitos discípulos, sem obedecer a nenhum critério humano. Aparentemente, do ponto de vista humano, parece que os escolheu ao acaso. Mas segundo o provérbio, “quem vê caras não vê corações”: nós só vemos caras, Deus vê o coração de cada um e, segundo esse coração, terá Jesus escolhido os seus 12.
Eis que faço novas todas as coisas (Apocalipse 21, 5) – ao escolher ao “acaso” 12 apóstolos, Jesus quis instituir algo novo porque, como ele mesmo diria, “O reino de Deus ser-vos-á tirado e dado a um povo que produza frutos” Mateus 21,43
Dentro do círculo dos discípulos, temos o círculo dos apóstolos e, dentro deste círculo, temos ainda um outro formado, por coincidência ou providência, por três apóstolos. Pedro, Tiago e João são os apóstolos mais chegados a Jesus, os seus imediatos que o acompanham a lugares onde os outros não vão, os únicos que presenciam a sanação da filha de Jairo, os únicos que sobem com ele o Monte Tabor da Transfiguração e os únicos que o vêm suar sangue e água no jardim das Oliveiras.
Pedro, Tiago e João são, portanto, a tríade dos apóstolos dos tempos evangélicos da vida de Jesus, mas não são a única tríade. Mesmo já sem a presença física de Jesus, com a Igreja agora guiada pelo Espírito Santo, foram também três os apóstolos que agiram como pilares. São eles Pedro, Tiago e Paulo.
O mesmo Pedro dos evangelhos, para estabelecer a continuidade entre Jesus e a sua Igreja como seu corpo místico, faz também parte da segunda tríade. O segundo é Tiago, mas não é o mesmo Tiago dos evangelhos, também conhecido como O Maior, irmão de João, ambos filhos de Zebedeu; este Tiago é O Menor, também conhecido como o irmão do Senhor. Por fim, o terceiro da tríade dos primeiros tempos da Igreja é Paulo, o grande Paulo de Tarso, que anteriormente perseguira a Igreja.
Em que baseamos a existência desta segunda tríade? Pelo livro Atos dos Apóstolos, vemos como a figura de Pedro aparece como autoridade, se não efetiva na primeira comunidade cristã de Jerusalém, pelo menos moral, que inspira a comunidade e a chama à união. Tiago, o irmão do Senhor, é a autoridade efetiva da comunidade cristã de Jerusalém, a primeira a ser formada; esta autoridade faz-se sentir no Concílio de Jerusalém. Paulo é o protagonista de quase todo o livro dos Atos dos Apóstolos, com as suas três viagens apostólicas de evangelização.
TEMPOS APOSTÓLICOS: PEDRO – TIAGO – JOÃO
Pedro dos tempos evangélicos
Simão João seria o seu nome, pois em Israel e ainda hoje em países semitas como a Etiópia, o apelido do filho é o nome próprio do pai. Em algumas ocasiões, Jesus chamou Pedro pelo seu verdadeiro nome; quando o encontrou pela primeira vez e lhe deu a alcunha de Pedro (João, 1,42) e, mais tarde, quando lhe perguntou se o amava (João 21, 15-17).
Pedro, os outros apóstolos e, em geral, todas as pessoas que entraram em contacto com Jesus experimentaram salvação, ou seja, saúde na alma e no corpo, o perdão das suas culpas e mudança de identidade e até de nome; mudança na forma como viam a Jesus, na forma como se viam a eles mesmos e na forma como viam o mundo à sua volta. Por outro lado, é também por intermédio destas relações que Jesus estabelece com as pessoas que encontra pelo caminho que se nos revela a Sua verdadeira identidade.
Pedro e André seu irmão
Caminhando à beira do mar da Galileia, Jesus viu Simão e o irmão deste, André, lançando as redes ao mar, pois eram pescadores. Então disse-lhes: “Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens”. E eles, imediatamente, deixaram as redes e seguiram-no. Marcos 1, 16-17
No dia seguinte, João estava lá, de novo, com dois dos seus discípulos. Vendo Jesus caminhando, disse: “Eis o Cordeiro de Deus”! Os dois discípulos ouviram esta declaração de João e passaram a seguir Jesus. (…) André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que tinham ouvido a declaração de João e seguido Jesus. Ele encontrou primeiro o próprio irmão, Simão, e lhe falou: “Encontramos o Cristo!” (que quer dizer Messias). Então, conduziu-o até Jesus, que lhe disse, olhando para ele: “Tu és Simão, filho de João. Tu te chamarás Cefas!” (que quer dizer Pedro). João 1, 35-37, 40-42
Jesus chama pessoas ocupadas, não gente que não fazia nada, pessoas que já tinham uma profissão. Diz-se que se quiseres pedir um favor a alguém, pede-o a uma pessoa ocupada e não a uma desocupada, pois esta última inventará mil e uma coisas para não te atender. O evangelho de S. Marcos é famoso pela palavra “imediatamente” que repete inúmeras vezes.
Há oportunidades na vida que não vêm duas vezes. Quando o fundador dos Missionários da Consolata, o Beato José Alamano decidiu fazer-se sacerdote, os irmãos trataram de dissuadi-lo dizendo “Pensa melhor e decide depois”; ele respondeu, “Jesus chama-me hoje, não sei se me chamará amanhã.
Os pastores foram os primeiros a visitar Jesus, porém, para seus discípulos, Jesus escolheu pescadores. Um pastor só é preciso quando existe um rebanho para guardar e cuidar. Jesus não tinha ainda rebanho, por isso precisava do talento do caçador ou pescador, para atrair gente a si a fim de os enviar a pescar outros para a sua causa: a transformação do mundo no reino de Deus. No relato de João, vemos como André faz isso mesmo com o seu irmão Simão.
A versão de João do chamamento dos primeiros discípulos parece mais credível e mais histórica que a de Marcos, apesar de Marcos ter sido o primeiro evangelho a ser escrito. Marcos escreveu o seu evangelho para os romanos de Roma, por isso dá propositadamente mais ênfase a Pedro. Na versão de João, André conhece a Jesus primeiro porque já era discípulo de João Batista.
Pedro - pescador e pecador
Quando acabou de falar, disse a Simão: “Avança mais para o fundo, e ali lançai as vossas redes para a pesca”. Simão respondeu: “Mestre, trabalhamos a noite inteira e não pescámos nada. Mas, pela tua palavra, lançarei as redes”. Agindo assim, pescaram tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam. (…) Vendo isso, Simão Pedro caiu de joelhos diante de Jesus, dizendo: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador!” O mesmo ocorreu a Tiago e João, filhos de Zebedeu e sócios de Simão. Jesus disse a Simão: “Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador de homens!” Lucas 5, 4-6, 8, 10
Jesus pesca Pedro na sua imperfeição até como pescador. Jesus não busca santos, porque não há santos diante de Deus. Jesus busca pecadores que estão cientes da sua condição e isso é um santo; santo não é o perfeito, mas o que reconhece as suas imperfeições. Esta qualidade, encontramo-la já no rei David, também ele pecador ciente da sua condição.
A humildade é a mãe de todas as virtudes, o orgulho o pai de todos os vícios. O que é humilde deixa-se moldar por Deus, como a criança que deixa que o pai guie a sua mão ao escrever as primeiras letras. Quando sou débil sou forte, diz S. Paulo (2 Coríntios 12, 10), quando sou consciente da minha culpa obtenho o perdão de Deus; quando sou consciente das minhas limitações deixo que o poder de Deus atue em mim e por mim.
Pedro é realista acerca de si mesmo, não pretende ser quem não é, aceita que é pecador em frente de Jesus e chora o seu pecado quando o nega, não busca justificações, desculpas ou escusas nem perante os outros nem perante Deus nem perante si mesmo. Faz-se responsável pelo seu pecado e chora a sua culpa.
Mais tarde, Jesus dá-lhe a oportunidade de se redimir, perguntando-lhe três vezes se o amava. E até aqui Jesus parece contentar-se com o seu melhor, abdicando da perfeição, pois ao fazer a pergunta usando a palavra “ágape”, amor oblativo com que ele nos amou, aceita que Pedro o ame só com amor de amizade, pois este usou a palavra “philia”. Ou seja, Jesus perguntou a Pedro, “Pedro amas-me?” e Pedro respondeu “Eu gosto de ti”.
Não nos atraem as pessoas que escondem as suas vulnerabilidades, os seus complexos e sentimentos de inferioridade com orgulho e vanglória, mostrando-se superiores aos outros. Quem procura mostrar-se superior, frequentemente esconde um sentimento de inferioridade. Pedro faz-se amar por Jesus e pelos seus companheiros porque, apesar de ter sido escolhido entre os doze para chefe, não esconde as suas vulnerabilidades, a sua condição.
Perfil psicológico de Pedro - Sanguíneo
Cálido, profundo, dinâmico, emotivo, impulsivo e vibrante; desinibido e loquaz, mas não se fica só pelas palavras, decide e age muitas vezes sem pensar, mas com valentia; embora no fundo seja uma pessoa medrosa, como líder, arrasta os outros consigo.
É aberto e livre nos seus sentimentos e ações. Boa capacidade de comunicação e sociabilidade, relaciona-se bem com os outros. Como negativo, salientamos a pouca força de vontade; instável emocionalmente, explosivo, impaciente e egoísta. Inseguro, inconstante, inconsistente e medroso. Por ser ativo, é pouco dado à introspeção.
Inconstante e incoerente
Disse-lhe Pedro: “Senhor, porque não posso seguir-te agora? Eu daria a vida por ti!” Replicou Jesus: “Darias a vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo, antes de me teres negado três vezes!” João 13,37-38
Impulsivo
Pedro respondeu-lhe: “Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas”. Mateus 14,28
Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: “Senhor, é bom estarmos aqui; se quiseres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.” Mateus 17,4
Nessa altura, Simão Pedro, que trazia uma espada, desembainhou-a e arremeteu contra um servo do Sumo Sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. O servo chamava-se Malco. João 18,10
Gabarolas
Jesus disse-lhes, então: “Nesta mesma noite, todos ficareis perturbados por minha causa, porque está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas do rebanho serão dispersas. Mas, depois da minha ressurreição, hei de preceder-vos na Galileia.” Tomando a palavra, Pedro respondeu-lhe: “Ainda que todos fiquem perturbados por tua causa, eu nunca me perturbarei!” Mateus 26-31-33
Egocêntrico, inseguro, medroso
Tomando a palavra, Pedro disse-lhe: “Nós deixámos tudo e seguimos-te. Qual será a nossa recompensa?”
Mateus 19,27
Tomando-o de parte, Pedro começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus te livre, Senhor! Isso nunca te há de acontecer!” Mateus 16,22
Mas, sentindo a violência do vento, teve medo e, começando a ir ao fundo, gritou: “Salva-me, Senhor!”
Mateus, 14, 30
Desinibido e franco, obediente e gostando de agradar
“Mestre, trabalhámos durante toda a noite e nada apanhámos; mas, porque Tu o dizes, lançarei as redes.” Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe. As redes estavam a romper-se, Lucas 5, 1-6
Primado de Pedro
O papel de Pedro entre os doze foi proeminente; os primeiros escritos do Novo Testamento referem-no como um líder dos doze e um dos primeiros a ver Jesus ressuscitado (1 Coríntios 15, 5). Foi considerado por Paulo e todos no seu tempo como sendo um dos pilares do movimento da igreja primitiva (Gálatas 2, 9).
Em todos os evangelhos, Jesus diferenciou Pedro dos outros apóstolos, desde que o encontrou pela primeira vez. O ter-lhe dado a alcunha de “rocha” sobre a qual ia edificar a sua Igreja, pode ser interpretado, como alguns protestantes o fazem, como referindo-se à fé de Pedro sobre a qual, de facto, se edificou a Igreja. (João 1,42; cf. Marcos 3,16; cf. Mateus 16,18).
Esta interpretação seria correta se este fosse o único texto que alude à primazia de Pedro sobre os demais apóstolos; mas como não é assim, como há muitos outros textos que confirmam esta primazia, o nome Pedro indica a função dentro da Igreja que lhe estava reservada a ele e só a ele.
Em todas as menções dos apóstolos, na lista dos 12, Pedro vem sempre em primeiro lugar; o evangelho de Mateus (10, 12) chama-o expressamente o primeiro. Pedro, juntamente com Tiago e João, foram os únicos testemunhos da ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5,37), da transfiguração (Mateus 17,1) e da agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras (Mateus 26,37).
Jesus prega às multidões a partir da barca de Pedro (Lucas 5,3), quando está em Cafarnaum, a casa de Pedro é a sua própria casa, (Marcos 2, 1-12), de todos os familiares dos apóstolos só curou um: a sogra de Pedro (Lucas 4, 38-44). Jesus diz a Pedro que pague o tributo ao Templo por eles os dois (Mateus 17,27), exorta-o a que ampare a fé dos outros apóstolos depois da sua própria conversão (Lucas 22,32); depois da ressurreição, aparece primeiro a Pedro, antes de aparecer aos outros apóstolos (Lucas 24,34; 1 Coríntios 15,5). Pedro atua quase sempre como o porta voz dos apóstolos que raramente falam diretamente com Jesus.
Pedro foi o único apóstolo que viu em Jesus algo mais que um profeta ou a reincarnação de João Batista; o único que afirmou que Jesus era o messias, o esperado pelas nações (Mateus 16,17-19). Embora este mesmo poder tenha também sido dado mais tarde aos outros Apóstolos, é significativo que o tenha dado primeiro a Pedro individualmente. Atar e desatar, nos termos da terminologia rabínica do tempo, significava declarar estar em comunhão com a Igreja ou excomungar da mesma. Portanto, Pedro tem não só a função de ensinar e amparar, como também a função jurídica.
A primazia de Pedro vem revelada nos evangelhos, até nos episódios negativos sobre a sua figura. O medo de se afundar no lago, (Mateus 14, 30) a negação do mestre, (Lucas 22, 54-62) a pesca milagrosa, (Lucas 5, 4-6, 8, 10). Até mesmo quando Jesus o chamou de Satanás (Mateus 16, 23).
Só não vê quem não quer ver; a negação da primazia de Pedro, a sua importância dentro do colégio dos apóstolos, só pode ser feita por motivos ideológicos para justificar as Igrejas Ortodoxas e Protestantes.
Quando a Missão de Jesus foi concluída e voltou para o Pai, a Igreja que ele próprio fundou, tornou-se o seu corpo místico para continuar o seu trabalho de salvação de geração em geração até ao fim dos tempos. Como um corpo, por uma questão de unidade, só pode ter uma cabeça, é lógico que o chefe da Igreja seja Pedro pois era o líder dos discípulos de Jesus, como vimos.
Por tudo o que sabemos, Pedro viveu os seus últimos anos, e deu o seu último suspiro em Roma, a capital do Império Romano. De acordo com São Ireneu (130-202), bispo de Lyon, e o historiador Eusébio Bispo de Cesareia marítima no ano 314, Linus, um romano mencionado em 2 Timóteo 4:21 foi nomeado para ser o segundo bispo de Roma pelos apóstolos Pedro e Paulo.
A importância do primado de Pedro é a unidade da Igreja. “Cada cabeça, sua sentença”, duas autoridades não levam à união, mas sim à divisão. O monoteísmo, antes de ser distintivo do povo de Israel, tinha sido a política seguida por um faraó do Egito no intuito de criar uma maior coesão entre os povos do Nilo. A existência de vários deuses, como a existência de várias igrejas, não é conducente a harmonia e paz, mas sim a divisão e guerra. As guerras religiosas podem chegar a ser piores que as outras.
Quando se adora um só Deus que se tem como Pai de todos, é mais fácil ver no outro o nosso irmão, independentemente de quem ele for. Este mesmo princípio se verifica na primazia de Pedro. Jesus não quis várias Igrejas, só fundou uma, rezou, ele mesmo, pela união de todos os cristãos. (João 17, 20-23)
Tiago e João filhos de Zebedeu
Prosseguindo um pouco adiante, viu também Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão, João, consertando as redes no barco. Imediatamente, Jesus os chamou. E eles, deixando o pai Zebedeu no barco com os empregados, puseram-se a seguir Jesus. Marcos 1, 19-20
Segundo os primeiros três evangelhos, Jesus chamou no mesmo dia e à mesma hora quatro discípulos que eram dois pares de irmãos. Os primeiros, Pedro e André, seriam mais velhos que os segundos, pois pescavam sozinhos; os segundos, Tiago e João, seriam mais novos, pois estavam a consertar as redes com o seu pai.
Os primeiros estavam a pescar, os segundos a consertar as redes. As duas atividades são importantes; não se pode pescar sem consertar de vez em quando as redes que se rompem com o uso. À primeira vista, passa-nos despercebido o facto de que uns pescavam e os outros consertavam as redes, mas não creio que este facto esteja no evangelho casualmente, sem nenhum significado especial.
Pescar é atividade, consertar as redes pode ser muitas coisas; pode ser rezar, orar. Jesus abandonava a atividade, ia para sítios ermos, na calma da noite ou ao raiar da aurora, para estar a sós consigo mesmo e com Deus seu Pai. Antes de começar a sua vida pública, passou 40 dias e 40 noites em jejum e oração. Durante a sua vida pública, antes dos momentos mais importantes, rezou, terminou a sua vida na Terra rezando. Ensinou os seus apóstolos a rezar e exortou-os várias vezes a que o fizessem para não sucumbir diante da tentação.
Consertar as redes pode significar o ato de pensar, de programar a atividade ou mesmo o estudo de métodos de pescar, de diferentes redes e anzois para diferentes tipos de peixe. Todo o evangelista e pregador sabe que tem de se adequar à cultura, idade e idiossincrasias das pessoas a quem prega, para que estas entendam a palavra.
Um à direita e outro à esquerda
Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus e disseram-lhe: “Mestre, queremos que faças por nós o que te vamos pedir”. Ele perguntou: “Que quereis que eu vos faça?” Responderam: “Permite que nos sentemos, na tua glória, um à tua direita e o outro à tua esquerda!” Marcos 10, 35-37
De forma geral, em todo o evangelho de S. Marcos, os apóstolos não saem muito favorecidos e estes dois, apesar de pertencerem ao círculo interno dentro dos doze, são os que saem pior. Mesmo pensando que o reino de que Jesus falava era a restauração do reino Davídico, a independência de Israel dos romanos, não faz sentido o pedido, uma vez que os dois já pertenciam ao círculo mais próximo de Jesus; portanto, quando esse reino se tornasse realidade, iam sentar-se um à direita e o outro à esquerda.
A única explicação viável é a de que queriam destronar Pedro da sua posição de destaque em relação aos doze. O episódio é tão vergonhoso para os dois irmãos que Lucas não o menciona e Mateus coloca o pedido na boca da mãe dos filhos de Zebedeu. O mais certo é que tenham sido eles mesmos a fazê-lo e isso até em Mateus fica evidente porque Jesus não responde à mãe deles, mas a eles em pessoa.
Quem não vive para servir, não serve para viver. A autoridade em Jesus é serviço, ele mesmo disse de si mesmo que veio ao mundo para servir não para ser servido (Mateus 20,28). E também disse que a sua posição entre os apóstolos era a de servir (Lucas 22,27). E para que ficasse claro, na última ceia fez um dos serviços mais baixos daquele tempo, o lavar os pés aos seus discípulos; o ato em si foi tão dramático que os discípulos nunca o esqueceram. (João 13, 1-17)
Jesus era um leigo, não era escriba nem fariseu nem sacerdote e, no entanto, os seus contemporâneos reconheciam nele mais autoridade que a que tinham os sacerdotes, os escribas e fariseus (Marcos 1,22). Eleita democraticamente ou nomeada, a verdadeira autoridade para Jesus é a que surge de dentro da pessoa, é uma autoridade carismática e moral, não é inerente ao posto que se ocupa na sociedade.
Mais importante que o lugar que se ocupa na sociedade é a forma como se ocupa esse lugar. O respeito pela autoridade já não é automático, como antigamente, inerente ao cargo, mas deve ser ganho; uma autoridade eleita ou nomeada sem autoridade moral não ganha o respeito das pessoas, mas o seu desprezo.
Por outro lado, a ninguém devemos chamar Senhor, pois somos todos iguais, só há um Senhor que é Deus. Numa moral heterónoma, as pessoas acriticamente seguem regras, mandamentos, leis, configurando a sua vida segundo normas exteriores a si mesmas.
A moral que Jesus pregou não é heterónoma de seguimento de regras, mas autónoma de seguimento da própria experiência adquirida na vida e da própria consciência moral como poder legislativo e executivo. Ele mesmo assim fez rompendo com a lei do Sábado em situações em que a sua própria consciência achou que curar um doente era um valor mais alto que o de observar o Sábado.
Tiago e João filhos do trovão
Tomando a palavra, João disse: “Mestre, vimos alguém expulsar demónios em teu nome, mas nós proibimo-lo, porque não anda connosco”. Jesus respondeu: “Não o proibais, pois quem não é contra vós, está a vosso favor”. Lucas 9, 49-50
(…) os samaritanos não o queriam receber, porque ia para Jerusalém. Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu, para que os destrua?” Ele, porém, voltou-se e repreendeu-os. E partiram para outro povoado. Lucas 9, 54-56
Para além da alcunha de Pedro, Jesus batizou também como “filhos do trovão” os outros dois apóstolos que faziam parte do círculo interno dos seus discípulos. Não é difícil saber por que Jesus escolheu este nome para dar a estes dois irmãos. O fanatismo e a intolerância sempre foram a tentação dos que se creem os únicos detentores da verdade ou de toda a verdade.
A Igreja entende que existem “Semina verbum”, sementes da Palavra de Deus em todas as religiões. Estamos longe da “Extra eclesia nulla salus”, não há salvação fora da Igreja. Não há salvação fora de Cristo, porque Cristo é o filho de Deus e veio para salvar toda a humanidade. Quem mesmo sem conhecer a Cristo o segue como caminho, verdade e vida, é um cristão anónimo, como disse Karl Rhaner. Cristo não veio implantar uma nova religião, mas veio ensinar os homens a ser homens.
Cristão e humano são sinónimos, por isso quem é autenticamente humano é autenticamente cristão. No ocaso da nossa vida, seremos julgados não pela nossa confissão, não pela nossa identidade, mas pelas nossas obras. No evangelho de Mateus capítulo 25, nas perguntas sobre o juízo final, não há nenhuma pergunta referente à identidade da pessoa, referente ao que é ou foi; todas são referentes ao que fez.
Ao contrário do fanatismo dos filhos de Zebedeu, Jesus aconselha a avançar, não a forçar as pessoas a uma conversão. Basta que o outro não esteja declaradamente contra mim para, de alguma forma, estar comigo. Se não está declaradamente contra mim, se me tolera, de alguma forma está comigo. A versão fanática e intolerante desta frase diz o contrário, “Quem não está comigo está contra mim”.
Deus que nos criou sem o nosso consentimento, não nos salva sem ele. A liberdade humana é a impotência do omnipotente Deus. A salvação é de livre escolha, não pode ser forçada a ninguém; é isto que vemos desde o princípio em Abraão, em Isaac, em Jacob e no Novo Testamento, em Maria que livremente disse que sim, podendo ter dito que não.
Nos evangelhos, os filhos de Zebedeu aparecem poucas vezes em separado. Tiago nunca aparece separado do seu irmão João, aparece separado duas vezes no episódio que já mencionámos e quando corria para o túmulo com Pedro e, apesar de ter chegado em primeiro lugar, deixou que fosse Pedro o primeiro a entrar.
João, filho de Zebedeu, não é o autor do quarto evangelho: nenhum dos evangelistas foi apóstolo de Jesus pois os evangelhos foram escritos depois da pregação dos apóstolos; os apóstolos pregaram e os discípulos destes apóstolos foram quem escreveu os evangelhos. Lucas era discípulo de Paulo, Marcos era discípulo de Pedro, e Mateus também não é o que antes de ser apóstolo foi cobrador de impostos; é muito provavelmente um escriba convertido ao cristianismo. João, filho de Zebedeu, sempre nos foi apresentado como o discípulo amado, porém hoje quase todos parecem concordar que não é e que não era nenhum dos doze.
Dos três grandes apóstolos do círculo próximo de Jesus, dos tempos evangélicos, só Pedro, passa para os tempos do Novo Testamento e primeiros passos da Igreja, fazendo parte de uma outra tríade, juntamente com Tiago Menor ou irmão do Senhor e Paulo. Tiago, filho de Zebedeu, foi martirizado por Herodes Antipas no ano 44 (Atos, 12,2), acabando por beber o cálice que tinha desejado beber. João é provavelmente o único dos doze que cruzou o limiar do primeiro século, e morreu de velho.
Afinal os filhos de Zebedeu não conseguiram destronar Pedro, este acabou por ser a continuidade entre os tempos evangélicos e os tempos dos Atos dos Apóstolos. Os filhos de Zebedeu ainda são mencionados neste livro, mas não são importantes; uma outra tríade se formou, mas os outros dois não pertenciam ao grupo dos doze. Tiago Menor e irmão do Senhor e Paulo, um fariseu convertido.
PRIMEIRA IGREJA – PEDRO – TIAGO – PAULO
A História diz-nos que depois de um grande carismático, visionário e fundador de qualquer movimento, vem sempre uma pessoa que o institucionaliza, ou seja, que o integra na realidade social e cultural de um lugar, num determinado momento da sua História. Se assim não fosse, aquele carisma não passaria de um sonho de uma noite de verão que se esfuma tão depressa quanto apareceu.
Esta tarefa não podia ser realizada por simples pescadores que depois da morte de Cristo não possuíam uma identidade definida: enquanto Jesus tinha criticado certas leis dos judeus, os apóstolos continuavam a segui-las. Jesus tinha criticado o Templo, no entanto os apóstolos continuavam a frequentá-lo diariamente, como nos diz o livro dos Atos; eram incoerentes e inconsistentes, reconciliavam o irreconciliável, as visitas ao Templo com a celebração da Eucaristia nas casas.
Sem S. Paulo, que institucionalizou os ideais de Jesus e lhes deu uma consistência teológica, talvez o cristianismo nunca tivesse ganho asas para voar, nunca tivesse passado de uma seita do judaísmo, que este, tarde ou cedo acabaria por absorver, suplantar ou eliminar. E foi precisamente o pior inimigo deste novo movimento que se tornou no seu melhor amigo e no seu salvador: Saulo de Tarso.
Esta tríade dos primeiros passos da Igreja, como nos revela o livro dos Atos dos Apóstolos, não é um grupo mais ou menos coeso como o primeiro que vivia juntos com o mestre. Ao contrário, estes três apenas se conhecem, pois habitam em diferentes lugares e têm diferentes filosofias. Cada um deles tem um papel muito importante nas primeiras comunidades cristãs.
Cada um deles é líder à sua maneira e as suas lideranças chegam a causar alguns atritos entre si. Paulo respeita e aceita a Pedro como líder dos cristãos, mas não o poupa a algumas críticas; está em claro confronto com Tiago, o irmão do Senhor.
Tiago muito provavelmente não aceita a liderança de Pedro pois, como é da família de Jesus, acha que deve ser ele o líder e, de facto, é o líder da primeira comunidade cristã, a de Jerusalém. Pedro está na corda bamba entre estes dois e faz de fiel da balança; reconhece o carisma arrebatador de Paulo e tem por ele muita simpatia; procede com cautela, respeita ou tem medo de Tiago e tacitamente não parece perturbado com a liderança e poder fáctico deste.
Pedro nos Atos dos Apóstolos
Mas Pedro e João retorquiram: “Julgai vós mesmos se é justo, diante de Deus, obedecer a vós primeiro do que a Deus. Quanto a nós, não podemos deixar de afirmar o que vimos e ouvimos.” Atos 4, 19-20
Nos Atos dos Apóstolos, vemos o que o Espírito pode fazer por uma pessoa. Vemos Pedro transformado no seu melhor, menos impulsivo e mais calmo como a situação o requeria, pois ele era o mediador entre dois furacões; mas, por outro lado, também o vemos mais proativo e menos medroso, desobedecendo aos sumos sacerdotes e até chegando a acusá-los de terem morto Jesus de Nazaré. (Atos 5, 28, 50-42).
Depois do grande discurso na manhã de Pentecostes, Pedro parece tomar o lugar de Jesus, seguindo as pisadas do mestre, pregando e curando tal como Jesus fazia. O primeiro ato de Pedro como líder foi nomear um substituto de Judas.
A Igreja primitiva começa a estender a sua missão fora do âmbito de Jerusalém e quando os apóstolos ouviram falar do sucesso de Filipe na pregação de Samaria, Pedro e João deslocaram-se lá para impor as mãos sobre os novos cristãos. Mais tarde, Pedro desloca-se a Lydda e cura um paralítico chamado Aeneas; depois a Joppa, hoje Jaffa, e ressuscita Tabitha, uma senhora que tinha acabado de falecer e que ajudava muito os pobres.
Na Cesareia, tem a experiência mística que o vai ajudar a guiar o resto dos cristãos na decisão tomada sobre os gentios no concílio de Jerusalém. Esta experiência culmina no batismo de um centurião romano chamado Cornélio e de toda a sua família.
Por este tempo Herodes começou a perseguir os cristãos, encarcerou Tiago, O Maior e decapitou-o como tinha feito com João Batista. Ao ver que isto agradou aos judeus, encarcerou também Pedro por ser o líder do movimento. Porém, em virtude do Espírito Santo que guiou a Igreja desde o princípio, Pedro foi milagrosamente liberto.
Para fugir da jurisdição de Herodes, Pedro voltou a Jerusalém, sob jurisdição direta dos romanos, como sabemos. Em Jerusalém, Pedro refugiou-se na casa de Maria, mãe do evangelista João Marcos (Atos 12, 12). Aliás, esta parece ser a residência da primeira comunidade cristã, a de Jerusalém. Pelo que sabemos por Papias que escreveu por volta do ano 90, Marcos, depois de ter sido por um tempo curto discípulo de Paulo, seguiu os passos de Pedro como seu discípulo e secretário, desde Jerusalém, Antioquia até Roma; por isso, o seu evangelho escrito em Roma e para romanos é um reflexo da pregação de Pedro
Tiago, o irmão de Senhor
Estavam ali também algumas mulheres olhando de longe; entre elas Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago Menor e de José, e Salomé. Marcos 15, 40
Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu. Mateus 27, 56
Junto à cruz de Jesus, estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria Madalena. João 19,25
Se compararmos esses três relatos, vemos três mulheres chamadas Maria ao pé da cruz: Maria, a mãe de Jesus; Maria Madalena; e Maria, a esposa de Cléofas, que também era mãe de Tiago e José. Marcos e Mateus dizem-nos que aos pés da cruz do Senhor estava Maria, mãe de Tiago Menor, João coloca Maria a mãe do Senhor e Maria Madalena ao pé da cruz e revela o nome da outra Maria, dizendo que é a mulher de Cléofas e dizendo também que é a irmã da mãe de Jesus.
Podemos então concluir com toda a segurança que Tiago é primo do Senhor, não irmão de sangue: Jesus e Tiago Menor são filhos de duas irmãs. Sabemos por Mateus (10,3) que o pai de Tiago era Alfeu, nome hebreu que em grego se traduz por Cléofas, pelo que Cléofas e Alfeu, são a mesma pessoa.
O que sabemos de Tiago é que não só é o líder da comunidade de Jerusalém, como é também o líder de uma das fações do cristianismo: os cristãos hebreus opostos aos cristãos helenistas, cujo líder era Paulo. Tiago é também escritor de uma carta emblemática que aparentemente se opõe à teologia de Paulo. Parece aceitar que a salvação nos vem da nossa fé em Jesus, mas declara perentoriamente que a fé sem obras é uma fé morta. (Tiago 2, 14-26)
Paulo, o apóstolo dos gentios
Podemos dizer que no Novo Testamento, depois dos evangelhos, Paulo é o nome mais repetido e indiscutivelmente a figura mais importante da Igreja primitiva. Cronologicamente, o primeiro escritor e o mais prolixo é Paulo com as suas cartas. Os Atos dos Apóstolos bem poderiam ser chamados as aventuras e desventuras de Paulo como apóstolo dos gentios, pois, tal como o evangelho de Lucas, foram escritos por um dos seus discípulos.
A vida de Paulo pode ser recolhida nos Atos dos Apóstolos e nas suas cartas, nas quais Paulo menciona que era um fariseu da tribo de Benjamim, o seu nome judeu era Saulo, (O nome do primeiro rei de Israel também da tribo de Benjamin), nascido em Tarso na Ásia Menor. Foi educado na mais estrita observância do judaísmo, durante a sua juventude em Jerusalém, por Gamaliel (Fil. 3:5-6; cf. 2 Cor. 11:22; Rom. 11:1, Gal. 1:14; 2:15.).
Ao mesmo tempo as suas raízes estão na cultura grega, sobretudo no que respeita à filosofia e retórica. É também um cidadão romano, título que foi conseguido pelo seu pai e era extensivo a toda família. Paulo é um homem que vive entres dois ou três mundos, familiarizado com a cultura hebraica e grega, assim como com a política romana.
De perfil marcadamente colérico, Paulo era instintivo e a sua inteligência era intuitiva e sagaz, muito controverso, impulsivo e conflituoso. Apesar de ter sido praticamente contemporâneo de Jesus, não o conheceu pessoalmente, nem antes da morte nem depois dela, pois não teve, como os demais apóstolos, uma experiência real de Cristo ressuscitado.
Foi perseguidor do movimento de Jesus até ter uma experiência mística, um encontro com o mesmo Jesus a quem ele perseguia. Antes da sua conversão, Paulo usava a sua força e talento em favor do judaísmo, aterrorizando os cristãos. Os mesmos talentos são usados para difundir o cristianismo pelos pagãos.
Como tinha sido perseguidor do movimento de Jesus, poucos acreditavam nele e até pensavam que era um espião; porém, Barnabé acreditou nele e assim começou Paulo a colocar os seus talentos de persuasão, anteriormente ao serviço do judaísmo, agora ao serviço de Cristo. Os Atos falam de Barnabé e Paulo, mas logo a seguir falam de Paulo e Barnabé e mais tarde só de Paulo.
Paulo possuía excelentes dotes teológicos, mas sabia pouco de Jesus. Por isso se fez rodear por João Marcos, mais tarde discípulo de Pedro e escritor do primeiro evangelho. Seguir a Paulo era bem difícil e João Marcos, com saudades da família em Jerusalém, abandonou Paulo. Quando voltou, teve uma discussão muito violenta com Paulo. Este último não queria perdoar a Marcos e este, com Barnabé, provavelmente seu tio, tiveram de deixar Paulo (Atos 15, 39). Paulo ter-se-á arrependido e quis ter outra vez Marcos na sua companhia; mas nessa altura, já Marcos era discípulo de Pedro. (2 Timóteo 4, 11)
Empenhado a 100% na causa de Cristo, reclama para si o título de Apóstolo pelo muito que fez pelo evangelho, fundando comunidades cristãs entre os gentios no decorrer de três grandes viagens que realizou. Baseado na filosofia de Jesus, Paulo entende que ser apóstolo não é um título com pedigree, exclusivo dos doze, que nunca se perde, mesmo que não se exercite, algo assim como ter sangue azul. Fiel ao “pelos seus frutos os conhecereis” de Jesus, para Paulo é apóstolo quem atua como tal.
E ninguém mais que ele atuou como apóstolo pelo muito que difundiu o evangelho ao longo de três viagens, pelas comunidades cristãs que fundou a norte e a sul do Mediterrâneo, nas suas viagens, e pelo muito que escreveu: metade do Novo Testamento. Paulo não só reteve para si o título, como também o deu aos seus colaboradores e colaboradoras.
Competente, autodisciplinado e firme (1 Coríntios 9, 24-27), chegando a ser afetivo e sentimental, (Filipenses 1, 7-8), é impossível ficar indiferente a Paulo: ou se odeia ou se ama. Prisoneiro, tornou-se no capitão do navio. Julgado por Tertullus, Félix e Agrippa tomou ele as rédeas do seu destino e, na prisão, os guardas foram os seus prisioneiros.
Concílio de Jerusalém
A maior parte das pessoas entende que o concílio de Jerusalém, como todos os concílios, foi acerca de uma questão doutrinal entre duas fações do cristianismo, os judaizantes e os helenistas. Porém, não foi bem assim.
Rivalidade entre os familiares e os discípulos de Jesus
Nesta reunião, após longas discussões, Pedro levantou-se e falou aos presentes do seguinte modo: “Irmãos, todos sabem que Deus me escolheu há muito, de entre vós, para pregar o evangelho aos gentios, a fim de que também eles possam crer. (…) A discussão acabou, passando todos a ouvir Barnabé e Paulo que relatavam os sinais que Deus fizera por seu intermédio entre os gentios. (…) Quando terminaram, começou Tiago: “Irmãos, escutem-me. Pedro falou-vos do tempo em que Deus primeiro visitou os gentios para de entre eles levantar um povo que honrasse o seu nome. E este facto da conversão dos gentios está de acordo com as predições dos profetas. Atos 15, 7, 12-15
Em jogo neste concílio esteve também uma questão menos conhecida, mas que se antevê tanto nos evangelhos como no mesmo texto dos Atos sobre o concílio: a rivalidade entre os familiares de sangue de Jesus e os seus discípulos.
Tiago, o irmão do Senhor e o líder da comunidade de Jerusalém, não era só o líder dos judaizantes, mas também se autoconsiderava o sucessor de Jesus por ser o seu familiar mais direto. Não devemos esquecer que Jesus é da linhagem de David e que todos os reis depois de David foram seus descendentes. Por isso, Tiago entende que ele e não Pedro deve ser o líder do movimento de Jesus.
No texto do concílio acima citado, vemos que Pedro dá a inspiração aos conciliares, tendo presente sobretudo a sua experiência no batismo do centurião romano Cornélio; Paulo e Barnabé apresentam a questão, mas quem decide e bate com o martelo na mesa é de facto Tiago.
Marcos, o primeiro evangelho a ser escrito desde a pregação de Pedro o líder dos discípulos, de facto, transmite uma má imagem dos familiares de Jesus, chega a dizer que o consideravam louco; e quando os familiares de Jesus pretendem falar com ele, Marcos faz dizer a Jesus que os seus familiares não são os de sangue, mas são os que fazem a vontade de Deus. (Marcos 3, 31-35).
Pelos vistos levou tempo a dirimir-se a questão da rivalidade entre os familiares de Jesus e os seus discípulos, pois o evangelho de João, o último a ser escrito volta a ela, colocando na boca de Jesus uma forma de reconciliação entre os familiares de Jesus e os seus discípulos: Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mulher, eis o teu filho!” Depois disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!” A partir daquela hora, o discípulo recebeu-a em sua casa. João 19, 26-27
Rivalidade entre os judaizantes e os helenistas
Tiago: Assim, na minha opinião, não devemos causar dificuldades aos gentios que se voltam para Deus. Devemos escrever-lhes, sim, que se abstenham de coisas consagradas aos ídolos, da prática da imoralidade sexual, de carne de animais estrangulados e de sangue. Atos 15, 19-20
“Contra factos não há argumentos” diz o povo, porém, no que respeita ao facto “Jesus de Nazaré”, logo desde o princípio surgiram argumentos discordantes. Uma coisa é o que acontece, outra são as diferentes versões do que acontece e as diferentes interpretações do que acontece. Não é suficiente ver os factos, é preciso saber interpretá-los. Os discípulos de Emaús viram os factos, mas não conseguiam interpretá-los, precisaram da ajuda de Jesus. Agora a Igreja nascente, na falta de Jesus, tinha a ajuda do Espírito Santo que a ajudava a interpretar a revelação acontecida em Jesus de Nazaré.
Quando falamos da primeira Igreja de Jerusalém, temos a tendência para entender que se tratava de uma Igreja unida numa mesma doutrina, mas não era assim. Logo desde o princípio, houve dois tipos de cristianismo em conflito um com o outro:
Os judaizantes - eram ao mesmo tempo cristãos e judeus que conciliavam contraditoriamente o templo com a Eucaristia, a lei de Cristo com a lei de Moisés e que eram uma mistura de cristianismo. Ainda hoje se encontram na Etiópia os cristãos coptas que colocam ao mesmo nível a lei de Moisés e a de Cristo, que não comem carne de porco, por exemplo, proibida pela lei de Moisés.
O líder deste movimento não era Pedro nem João que o acompanhava muitas vezes, mas Tiago, o irmão do Senhor. Pedro terá a princípio favorecido este movimento, pois no livro dos Atos vemos como ele e João frequentavam o Templo. Porém, depois da sua experiência na Cesareia, estava mais do lado dos helenistas, sobretudo desde que Paulo se tornou líder desse movimento. O Espírito Santo terá dito a Pedro que pouco futuro havia com os judeus.
Os helenistas – eram judeus da diáspora que tinham regressado a Jerusalém; os seus primeiros líderes foram Estevão e Filipe (Atos 6,5). Os helenistas, como o próprio nome indica, não falavam aramaico, mas grego; a sua cultura era grega. Como vemos no discurso de Estevão antes da sua morte, entendiam que Jesus se tinha oposto à lei dos judeus e ao Templo, pelo que era para eles uma contradição continuar a ser judeu e cristão ao mesmo tempo.
Alguns destes helenistas, familiarizados com a cultura grega, começaram a pregar com sucesso aos gentios. A conversão dos gentios ao cristianismo era muito maior que a dos judeus, pelo que entendiam que estes novos cristãos que não possuíam o judaísmo como base da sua cultura, não deviam submeter-se a nenhuma das prescrições da lei de Moisés, sobretudo à circuncisão.
Os helenistas absolutizam a figura de Jesus como sendo o novo Moisés, como sendo superior ao sábado, como sendo o novo Templo, como muito bem prova o evangelho de Mateus, aliás escrito para os judeus. E para eles Cristo veio acabar com as divisões culturais, políticas ou raciais; entendem que o cristianismo tem uma vocação universal de unir os povos, pelo que subscrevem plenamente o que S. Paulo disse:
Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus. Gálatas 3, 28
Entre Tiago, representando o judaísmo onde nasceu o movimento de Jesus, e Paulo, representando o mundo helénico, se consolidaria e cresceria o cristianismo. Pedro é o Pontifex Maximus, não só unindo, naquele tempo, os dois mundos, como permitindo que a nova fé transitasse de Jerusalém para o resto do mundo.
Pe. Jorge Amaro, IMC
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