A Igreja celebra a morte dos santos como nascimento para a eternidade; na sua veneração, a Igreja nunca celebra a sua vinda a este mundo, mas a sua partida para a eternidade. Para além do nascimento de Jesus, a Igreja celebra os nascimentos de Maria, porque é a sua mãe, e o de São João Batista, porque é o seu precursor.
O primeiro evangelho a ser escrito foi Marcos e nele não há referências à infância de Jesus: começa com a atuação de Jesus adulto. Depois de Marcos, a Igreja quis saber o que havia para trás, antes de Jesus se revelar ao povo, e isso implicava falar de duas personagens que fizeram parte da vida de Jesus: Maria, sua mãe, que o concebeu, deu à luz e o acompanhou toda a sua vida até ao fim, e João Batista que foi o seu precursor e iniciador na sua vida pública.
MARIA
Os nossos irmãos protestantes não querem saber da mãe de Jesus e têm para com ela a mesma atitude que os muçulmanos têm para com a mãe de Maomé e os Budistas para com a mãe de Buda. Podemos ignorar a mãe de Buda e a mãe de Maomé e ser bons budistas e muçulmanos, porque o seu nome não figura em nenhum escrito dessas religiões.
O mesmo não acontece com a mãe de Jesus: o seu nome aparece várias vezes nos 4 evangelhos. Maria não foi só a mãe de Jesus, foi também discípula do seu filho pois, juntamente com outras mulheres, nunca abandonou a sua companhia e, depois da morte do filho, nunca abandonou a companhia dos discípulos de Cristo. Não é, portanto, um cristão autêntico aquele que ignora completamente a mãe de Cristo; não é possível amar o filho ignorando a mãe.
Com o mesmo rigor com que Lucas (Lucas 1, 1-4 e Atos 1, 1-4) escreveu o seu evangelho sobre a vida de Jesus e o livro dos Atos dos Apóstolos sobre os primeiros passos da Igreja, queremos investigar o que se sabe ou é possível saber sobre Maria. É certo que não temos as testemunhas oculares dos factos que Lucas tinha, apenas alguns documentos que dizem pouco sobre a mãe de Jesus.
Maria em S. Paulo
O primeiro escritor do Novo Testamento, S. Paulo, não fala de Maria em nenhuma das suas cartas. Podemos aludir a várias razões para este facto. Ainda que muitos especialistas em S. Paulo pretendam ilibar o apóstolo da sua mentalidade patriarcalista ou machista, há demasiadas provas que dão testemunho deste facto. Como a grande maioria dos homens do seu tempo, S. Paulo reserva para as mulheres um papel secundário.
Uma outra razão para não mencionar o nome da mãe de Jesus é o facto de as cartas de Paulo serem doutrinárias, não históricas, pois S. Paulo, ao contrário dos outros apóstolos, não foi testemunha ocular nem teve a preocupação histórica de Lucas. Como bom fariseu que era, a sua preocupação era somente doutrinal.
Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. Gálatas 4, 4-5 (ano 40-50)
Neste único texto onde se menciona que Jesus não veio ao mundo como um meteorito ou por vias de qualquer outra forma milagrosa, mas que nasceu de uma mulher como todos os humanos, o que está em jogo, como em toda a perspetiva dos Gálatas, é a oposição entre a Lei e a graça. Não se menciona o nome da mulher da qual nasceu Jesus, pois este não é o tema central da carta nem destes versículos.
Maria em S. Marcos
Tendo Jesus chegado a casa, de novo a multidão acorreu, de tal maneira que nem podiam comer. E quando os seus familiares ouviram isto, saíram a ter mão nele, pois diziam: «Está fora de si!» Marcos 3, 20-21
A primeira menção muito indireta e tangencial de Marcos a Maria, mãe de Jesus, acontece neste texto muito controverso. Pois literalmente diz que os familiares de Jesus pensavam que ele estava louco. Pelos outros evangelistas e pelo próprio S. Marcos sabemos que Maria está sempre perto de Jesus, interessada e preocupada com o seu filho, com o que dizem dele, e agindo como qualquer outra mãe. Por isso, Maria parece estar incluída na palavra familiares.
Não me parece provável por duas razões: no conjunto dos evangelhos, vemos que Maria é uma mulher muito ponderada no que diz e no que faz, sem comportamentos reativos. Não diz nem faz nada sem deliberar na sua mente e no seu coração e, quando está confusa e não sabe o que dizer ou fazer, permanece em silêncio, guardando e meditando tudo no seu coração (Lucas 2, 16-21).
Por outro lado, se “familiares” incluísse a mãe de Jesus, não faria sentido dizer a seguir, como refere o outro texto em que ela é mais diretamente mencionada, “Mãe e irmãos de Jesus”, sobretudo porque o texto diz dentro do mesmo capítulo de Marcos que ela e os irmãos do Senhor acabavam de chegar.
Jesus várias vezes se aproveita de uma determinada situação para apresentar a sua doutrina. Um dos exemplos disto é o facto de os apóstolos de Jesus se terem esquecido de comprar pão. Como o pão é cereal fermentado, Jesus aproveitou a deixa para falar do fermento dos fariseus. (Mateus 16, 5-12)
É claro que os apóstolos são levados a pensar que Jesus está a criticá-los indiretamente por não terem comprado pão, mas Jesus explicitamente diz que essa não pode ser a interpretação do que disse, pois, ele que multiplicou pão para milhares de pessoas, podia fazer o mesmo para os seus discípulos.
Da mesma forma, Jesus não está a desrespeitar a sua mãe, mas apenas a aproveitar a situação para dizer que ser discípulo de Jesus é mais importante que ser familiar de Jesus. No caso da sua mãe, também ela foi primeiro discípula, ouviu a palavra e colocou-a em prática e só depois e precisamente por ter colocado a Palavra em prática, foi mãe, ou seja, por ter feito a vontade de Deus. Em Maria, então, ser discípulo precede a maternidade. Nós também nos podemos tornar família de Jesus seguindo o caminho de Maria.
(…) partiu dali. Foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no. Chegado o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» Marcos 6, 1-3
Finalmente, mais tarde, Marcos diz-nos o nome da mãe de Jesus pela boca do povo da sua aldeia, numa pergunta tática cheia de desprezo e humilhação. Na época, em Israel, quando se queria insultar alguém, bastava nomear a pessoa pelo nome da mãe e não do pai. A expressão “filho de Maria” é altamente depreciativa, mesmo no caso de José ter já falecido.
Marcos é um evangelho pequeno, com apenas 16 capítulos e lacónico acerca de muitas outras coisas; também não nos dá uma boa imagem acerca da compreensão que os discípulos têm do Mestre. Pelo menos, dá-nos o nome da mãe do Senhor, Maria. Se quisermos saber mais acerca de Maria, temos de recorrer aos outros dois evangelhos que são mais completos e se debruçam mais sobre a infância de Jesus e as circunstâncias do seu nascimento.
Imaculada Conceição de Maria
É uma doce e piedosa crença esta que diz que a alma de Maria não possuía pecado original; esta de que, quando ela recebeu a sua alma, ela também foi purificada do pecado original e adornada com os dons de Deus, recebendo de Deus uma alma pura. Assim, desde o primeiro momento de sua vida, ela estava livre de todo o pecado. (Martinho Lutero, Sermão sobre o Dia da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, 1527)
Os grandes reformadores protestantes, Lutero, Calvino e Zuínglio, aceitam todos os dogmas marianos. A indiferença, o desprezo e quase ódio por Maria que certos protestantes manifestam nos dias de hoje, não provêm dos reformadores, mas de fanáticos posteriores a eles.
A imaculada conceição da virgem Maria, solenidade que a Igreja celebra no dia 8 de dezembro, já perto do Natal do Senhor, é uma outra forma de começar de novo. É a substituição do dilúvio que destruía o antigo, o pecado, para começar de novo. Em Maria, Deus desistiu da destruição do mundo. Por isso Maria é um “dilúvio não destruidor” porque, pouco a pouco, com o Reino do seu filho, vai inundar o mundo da Graça divina que mata o pecado. Maria é, portanto, a nova arca de Noé que salva a humanidade do pecado, porque contém este Salvador que é Cristo seu filho.
Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho… Hebreus 1, 1-2
Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher… Gálatas 4,4
Maria não é o começo da História da Salvação: esta começou com Abraão e foi continuada de geração em geração por profetas, juízes, reis e outros líderes do povo escolhido. Maria é o culminar desta história, é como refere acima o autor da carta aos Hebreus, os últimos dias, ou como diz S. Paulo, a plenitude do tempo.
A história da Salvação é acerca de pessoas que vão passando de geração em geração o germe do Bem, no meio de um mundo que vive a história do Mal. Porém, este germe do bem convive na mesma pessoa com o mal. Os que eram portadores do germe do Bem ou do testemunho do Bem nesta corrida de estafetas não eram pessoas perfeitas, como sabemos pela Bíblia, onde os seus defeitos e pecados estão bem documentados, desde Abraão, Moisés, David a tantos outros que eram, como diria mais tarde Sto. Agostinho ao definir o Homem, “simul justus et peccator”, ao mesmo tempo justo e pecador.
Maria é o último elo desta cadeia do Bem, Deus em Maria fez os últimos retoques para eliminar todo o vestígio do mal na preparação da Encarnação do seu filho. É lógico que se Deus ia assumir a natureza humana para falar aos homens, não ia assumir a natureza humana caída em pecado, não ia assumir a natureza humana decadente de pecado dos nossos pais, mas sim a natureza humana que Ele tinha criado no princípio. Ou seja, ia assumir a natureza de Adão e Eva antes do pecado. Por isso se diz que Maria é a nova Eva e Cristo o novo Adão.
No momento em que o material genético da meia célula de Joaquim se uniu ao material genético da meia célula de Ana para formar um novo código genético, o ADN de Maria, Deus interveio na engenharia genética e substituiu os genes estragados ou corrompidos pelo pecado que vinham de geração em geração desde Adão e Eva, pelos novos genes, aqueles que o próprio Adão e Eva possuíam antes de arruinarem a natureza humana pelo pecado. Por outras palavras, substituiu as peças estragadas pelas peças originais.
Quando o Anjo Gabriel visita Maria reconhece nela a nova Eva ao pronunciar este mesmo nome ao contrário como saudação. Maria é obra da engenharia genética de Deus, Maria é a recriação de Deus em virtude da sua direta e intencionada intervenção na História da humanidade. Porque Maria, em comunhão com o mesmo Deus, vai gerar, produzir a vacina contra o pecado que é Cristo seu filho. Maria não é apenas o início da Salvação para o mundo; na sua Imaculada Conceição, como preparação para a vinda de Jesus, ela é a primeira a ser salva.
Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto, a fim de que todo o que nele crê tenha a vida eterna. João 3, 14-15
O filho de Maria é o que vai substituir a serpente erguida no deserto por Moisés, o salvador do povo judeu, para curar a todos da mordida da antiga serpente que envenenou Eva, Adão e os seus descendentes de geração em geração.
Natividade de Maria
Não podemos reconhecer as bênçãos que nos trouxe Jesus, sem reconhecer ao mesmo tempo quão imensamente Deus honrou e enriqueceu Maria, ao escolhê-la para Mãe de Deus. (João Calvino," Comm. Sur l‟Harm. Evang.",20)
Nove meses depois da Imaculada Conceição da virgem Maria, a Igreja celebra a natividade de Nossa Senhora no dia 8 de setembro. Num contexto bíblico de tantos nascimentos nas mesmas circunstâncias, desde Isaac, Samuel, Sansão etc., segundo reza a tradição, Maria nasceu de pais de avançada idade e estéreis, de nome Joaquim e Ana. Como resposta à sua perseverança e constância na oração, estes pais foram agraciados por Deus com o dom de terem uma menina.
Há quem os coloque residentes em Nazaré, porém a tradição mais fidedigna coloca-os em Jerusalém, ao lado da piscina de Betesda, onde os peregrinos se purificavam antes de entrar no templo e onde hoje se ergue a Basílica de Santa Ana, muito perto de uma das entradas principais do Templo e da atual Porta dos Leões na muralha da cidade velha, no quarteirão muçulmano da cidade de Jerusalém.
A menina recebeu o nome de Miriam que significa vidente, senhora soberana. Era muito provavelmente um nome egípcio pois, como sabemos, Miriam era o nome da irmã de Moisés. Há quem pense que deriva do nome sânscrito Maryá e que literalmente significa pureza, virtude, virgindade; a tradução latina é Maria. Tal como Samuel, foi também ela oferecida ao Templo de Jerusalém aos três anos, tendo lá permanecido até os doze anos, data em que foi dada em casamento a José.
Como sabemos, os evangélicos canónicos nada nos dizem sobre o nascimento de Maria. A base da tradição porém é bastante antiga, pois provém de um escrito apócrifo do século II, o Protoevangelho de Tiago, escrito por volta do ano 150.
A virgindade de Maria em função da sua maternidade
Estimo grandemente a Mãe de Deus, a virgem Maria perpetuamente casta e imaculada. Firmemente creio, segundo as palavras do Evangelho, que Maria, como virgem pura, nos gerou o Filho de Deus e que, tanto no parto quanto após o parto, permaneceu virgem pura e íntegra. (Corpus Reformatorum: Zwingli - principal líder da Reforma Protestante na Suíça - Opera 2,189).
Cristo foi o único filho de Maria, e a Virgem Maria não teve filhos além Dele… Estou inclinado a concordar com aqueles que declaram que ‘irmãos’ significam realmente ‘primos’. A Sagrada Escritura e os judeus sempre chamaram aos primos irmãos. Martinho Lutero, Sermão, 1539.
Maria é a Mãe de Jesus e a Mãe de todos nós, embora fosse só Cristo quem repousou no colo dela… Se ele é nosso, deveríamos estar na situação dele; lá onde ele está, nós também devemos estar e tudo aquilo que ele tem deveria ser nosso. Portanto, a mãe dele também é nossa mãe... (Martinho Lutero, Sermão de Natal de 1529.)
Uma vez mais constatamos que os reformadores protestantes veneravam Maria tanto quanto a veneram hoje os católicos e os ortodoxos e até mesmo os muçulmanos. O problema surge, tanto para protestantes como para católicos, na excessiva ênfase que se dá à virgindade de Maria, como se nela ou em qualquer outra pessoa, a virgindade fosse um valor em si mesmo, tanto num sentido espiritual como físico.
Manifesto-me em total desacordo com o uso exclusivamente feminino do nome “Virgem”, como o faz a Igreja na celebração das santas Cecília, Inês, Felicidade, Perpétua, Águeda, que são santas exclusivamente por serem virgens. A igreja não usa o nome virgem para santos como Francisco de Fátima, Sto. António de Lisboa, S. Domenico Savio e S. Luigi Gonzaga que decerto também eram virgens.
Se é um valor humano, a virgindade não pode ser um valor exclusivamente feminino. Não há valores femininos e valores masculinos, só há valores humanos. Quando se dá demasiada ênfase à virgindade feminina, está a exacerbar-se a importância do hímen que as mulheres possuem e que os homens não possuem. O hímen nasceu como meio profilático para fechar as entranhas de uma mulher e a proteger contra as infeções. Ao longo da história da Humanidade, em todas as culturas, numas mais noutras menos, tem sido usado pelos varões como instrumento de vexame, domínio, humilhação e vergonha das mulheres.
A virgindade de Nossa Senhora, descrita como virgem antes, durante e depois do parto, alude certamente a este instrumento de domínio de uma história patriarcal e chauvinista. Sobretudo no caso da virgindade durante o parto, não pode referir-se ao hímen como se fosse possível que uma mulher desse à luz sem que este se rompesse.
Se a virgindade é um valor, deve ser estendida a todo o género humano e não só às mulheres, pelo que não pode ser associada ao físico, mas sim ao espiritual. Uma mulher ou um homem casado podem ser virgens, se forem puros e totalmente fiéis um ao outro. Por outro lado, se a virgindade é um valor humano espiritual, uma mulher ou homem podem ser virgens mesmo depois de terem perdido a virgindade física.
Ou seja, se a virgindade é um valor, está sempre ao alcance do ser humano e não é uma coisa que se perca. Aliás, se é um valor, não é dado à nascença, mas conquistado a pulso com esforço e dedicação. A única coisa que pode perder-se para sempre, de uma forma irrecuperável, é a inocência ou a ingenuidade, não a virgindade.
Conta-se que se apresentou diante de Deus uma pessoa depois da sua morte e disse. Olha Senhor, as minhas mãos estão limpas e puras. Bem vejo, disse o Senhor, mas estão vazias… antes estivessem sujas, mas cheias de boas obras…
A virgindade, tanto no caso de Maria como em qualquer outra pessoa, existe em função da maternidade. A virgindade por si só não é um valor humano, mas sim a preparação para uma maternidade física natural ou para uma maternidade espiritual como a de madre Teresa de Calcutá. O mesmo se aplica dos homens. Uma virgindade que existe para si mesma e não está em função de uma maternidade fecunda, é esterilidade espiritual, não virgindade no sentido espiritual cristão.
Temo que a exagerada exaltação da virgindade seja inversamente proporcional à visão negativa da função sexual. Ou seja, quem mais exalta o valor da virgindade, mais olha com suspeita para a função sexual, desenvolvendo uma espiritualidade puritana que olha para o sexual como feio e sujo. Quem assim faz esquece que o pecado de Adão e Eva não foi sexual, que o sexo foi criado por Deus como meio de colocar em prática o seu mandamento “crescei e multiplicai-vos”. (Génesis 9, 7)
Conclusão
Como devoto de Maria a quem tenho como minha mãe do Céu, afirmo que foi concebida sem pecado por virtude de especial favor de Deus a ela e à Humanidade; que concebeu por obra do Espírito Santo, que foi mãe de um só filho nela gerado, mas mãe espiritual de toda a humanidade e que, em virtude desta maternidade, permaneceu virgem por ter sido amante de um só Deus, de um só marido, da Igreja nascente e de toda a humanidade.
JOÃO BATISTA
Jesus de Nazaré, discípulo de João Batista
«Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento? Que fostes ver, então? Um homem vestido com roupas finas? Os que usam trajes sumptuosos vivem regaladamente e estão nos palácios dos reis. Que fostes ver, então? Um profeta? Sim, eu vo-lo digo, e mais do que um profeta. (…) Digo-vos: Entre os nascidos de mulher não há profeta maior do que João; mas, o mais pequeno do Reino de Deus é maior do que ele. Lucas 7, 24-26, 28
João Batista, primo do Senhor segundo a tradição, é uma figura intencionalmente ignorada pela Igreja e pelos próprios evangelistas que tudo fazem para lhe retirar importância apesar de, sendo honestos consigo mesmos, terem de falar dele. A Igreja apresenta-o como precursor, especialmente no tempo do Advento, como sendo aquele que prepara o caminho do Senhor, embora pouco se diga sobre como o caminho foi preparado.
Foi só precursor, ou foi algo mais que isso? Foi iniciador de um movimento que Jesus de Nazaré continuou. De facto, alguns dos discípulos de Jesus eram antes discípulos de João. Hoje quase todos os biblistas concordam que Jesus foi discípulo de João Batista e, se bem que os evangelistas, cada um à sua maneira, tratem de esconder este facto, Jesus não se envergonha de o dizer como se subentende no texto acima citado. Sobre João, seu Mestre, Jesus só tem palavras positivas de veneração e estima. Porém, como coloquei a negrito, os evangelistas agregam uma frase que não só neutraliza como quase anula o que Jesus disse ao referirem que o mais pequeno do Reino de Deus é maior do que ele.
No princípio da sua vida pública, o povo e Herodes Antipas confundem Jesus, o discípulo, com João, o mestre, o que é perfeitamente normal. Todo o bom discípulo imita o mestre até se despegar e independentizar dele, mais tarde afirmando as suas diferenças ou as suas nuances. Jesus parece aceitar que o comparem com João, pois é sinal de que era um bom discípulo dele. (Lucas 9, 7-9; Mateus 16, 13-20)
Nas suas conferências e livro sobre Jesus, o teólogo Dennis MacBride debruça-se sobre este assunto de uma forma brilhante. João Batista é o nome mais citado nos evangelhos, mais do que qualquer apóstolo, inclusive Pedro. Quando Pedro levantou a voz e expôs os critérios para a eleição do substituto de Judas, disse que tinha de ser alguém que tivesse estado com eles desde o Batismo de João até à Ressurreição de Jesus. (Atos 1,21-22)
Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do batismo que João pregou (Atos 10, 37) – O mesmo Pedro ao fazer um sumário do ministério de Jesus, começa por referir que este começou onde terminou o ministério de João Batista. Todos os quatro evangelistas começam a história de Jesus onde termina a história de João.
Marcos abre o seu evangelho com o ministério de João; João Evangelista menciona-o logo no prólogo como testemunha da Luz que é Cristo e repete-o várias vezes para que fique claro, chegando a dizer que ainda que João preceda a Jesus cronologicamente, Jesus como filho de Deus existe antes de João. Lucas e Mateus, ao tratarem da infância de Jesus, vêem-se obrigados a tratar da infância de João Batista também.
É, portanto, claro que o ministério de João tem a ver com a vida oculta de Jesus antes da sua vida pública, começa antes do ministério de Jesus e, ainda que Jesus tome o seu lugar após a sua morte, como faz todo o discípulo substituindo o mestre, o ministério de João não termina.
MacBride afirma que ainda hoje existem no Iraque seguidores de João, que acreditam que João era o Messias e que Jesus foi o seu primeiro discípulo. O argumento que apresentam como prova é que Jesus deixa a sua terra para se juntar a João, para seguir João e não o contrário. Jesus segue João e submete-se ao seu Batismo, João não segue Jesus.
Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Marcos 6, 2 – Sugere que Jesus não permaneceu em Nazaré durante toda a sua vida oculta. O texto sugere que, em determinado momento da sua vida, Jesus deixou o seu ofício de carpinteiro, a sua mãe, a sua terra, para se juntar ao movimento do Batista e foi como seu discípulo que adquiriu toda a sabedoria que maravilhava os seus conterrâneos. O texto também sugere que Jesus esteve fora bastante tempo, não foi só passar um fim de semana com o Batista, mas ficou na sua companhia por vários anos.
O batismo de Jesus
Por aqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no Jordão. Quando saía da água, viu serem rasgados os céus e o Espírito descer sobre Ele como uma pomba. E do céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado.» Marcos 1, 9-10
Então, veio Jesus da Galileia ao Jordão ter com João, para ser batizado por ele. João opunha-se, dizendo: «Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti, e Tu vens a mim?» Jesus, porém, respondeu-lhe: «Deixa por agora. Convém que cumpramos assim toda a justiça.» João, então, concordou. Uma vez batizado, Jesus saiu da água e eis que se rasgaram os céus, e viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre Ele. E uma voz vinda do Céu dizia: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu agrado. Mateus 3,13-17
Todo o povo tinha sido batizado; tendo Jesus sido batizado também, e estando em oração, o Céu rasgou-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. E do Céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado; em ti pus todo o meu agrado. Lucas 3,21-22
E eu não o conhecia, mas quem me enviou a batizar com água é que me disse: ‘Aquele sobre quem vires descer o Espírito e poisar sobre Ele, é o que batiza com o Espírito Santo’. Pois bem: eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus. João 1, 33-34
O episódio do batismo do discípulo Jesus pelo mestre João era para os evangelistas um escândalo embaraçoso. É certo que a reputação do grande João Batista deixou perplexos e nervosos os evangelistas porque queriam provar aos seus leitores de uma forma contundente, sem fugir à realidade dos factos, que Jesus era maior que João porque era ele e não João o messias, o esperado das nações.
Marcos, o primeiro a reconhecê-lo, admite que Jesus se submeteu ao batismo de João sem questões. Porém, e sem descrever o ato do batismo em si, desvia a nossa atenção para a voz vinda do alto.
Mateus não parece aceitar este facto e coloca ali um diálogo explicativo e justificativo entre Jesus e João onde se vê que a autoridade reside em Jesus.
Lucas ignora o episódio, referindo-se a ele depois deste ter acontecido, desviando também ele a nossa atenção para a voz vinda do alto.
João não aborda o batismo de Jesus, elimina-o por completo, pois nem o próprio João Batista se chama Batista neste evangelho, mas só João, testemunha de Cristo.
Os discípulos de João informaram-no de todos estes factos. Chamando dois deles, João mandou-os ao Senhor com esta mensagem: «És Tu o que está para vir, ou devemos esperar outro?» Ao chegarem junto dele, os homens disseram: «João Baptista mandou-nos ter contigo para te perguntar: ‘És Tu o que está para vir, ou devemos esperar outro? Lucas 7, 18-23
Os quatro evangelhos são unânimes em dizer que João não conhecia a verdadeira identidade do seu discípulo Jesus e morreu na prisão sem chegar nunca a esse conhecimento. Como é possível que o batismo de Jesus tenha decorrido como no lo descrevem os evangelhos e mais tarde João Batista na prisão não saber quem é aquele que ele mesmo batizou?
Aparentemente, temos aqui uma incongruência; porém, temos de ter em conta que entre os factos históricos de Jesus e João e a sua descrição nos evangelhos escritos, decorreram cerca de 50 anos de pregação apostólica. Ou seja, é muito provável que o episódio da voz seja obra dos evangelistas para tentar explicar teologicamente o facto de Jesus se ter submetido ao Batismo de João e de ter feito parte do seu movimento como discípulo.
Já vimos como João Evangelista retira o título de Batista a João, dando-lhe o nome de testemunha de Jesus. No entanto, é o único evangelista que coloca os dois a desenvolver o seu ministério ao mesmo tempo, ou melhor dito Jesus, como discípulo, trabalhando no movimento do Mestre Batista; João a batizar na Samaria, território ainda não evangelizado, e Jesus na Judeia onde João já tinha evangelizado.
JESUS
O carpinteiro, filho de Maria, nasceu segundo a tradição em Belém, no decurso de uma viagem que os seus pais Maria e José tinham empreendido para se recensearem na terra de origem dos seus antepassados. Não é deste nascimento que aqui tratamos, mas dos longos anos de preparação ou “gestação” para nascer ou se revelar ao mundo. Se a gestação do corpo físico de Jesus é obra de Deus e de Maria, a gestação da sua formação humana é obra do seu Mestre João Batista.
Tal como vimos, Jesus tem relativamente a João muitas originalidades. Mas tem também muito em comum com o mestre. Tanto Jesus como João, seu mestre e precursor, eram leigos carismáticos em linha com os profetas de Israel que surgem num tempo para um tempo, ou seja, surgem como solução divina para um problema humano concreto num tempo e situação concretos. Em linha com o profetismo de Israel, o profeta não é uma autoridade instituída ou eleita, mas sim uma autoridade moral carismática que surge espontaneamente ou por vontade divina.
Neste sentido, e ao contrário da autoridade instituída, o profeta não só profere a voz de Deus, como também a encarna com a sua vida, em gestos dramáticos como Isaías que andou nu no meio do povo para lhe mostrar o que estava para acontecer aos que iam ser exilados. O profeta Oseias casou com uma prostituta para que a sua vida fosse um audiovisual da infidelidade do povo a Deus.
Em linha com os profetas anteriores a eles, Jesus e João estão contra a autoridade instituída, não se submetem a ela e criticam-na porque carece de autoridade moral. E quando estes apresentam as suas credenciais, revelando as suas raízes, João diz que o machado já está posto à raiz das árvores; tanto João como Jesus manifestam mais tarde não estarem interessados em raízes, mas sim em frutos, pois é pelos frutos, ou seja, pelas obras que se conhece alguém. E quando as pessoas dizem que são fulanos e beltranos, que são filhos de Abraão, tanto João como Jesus chamam-nos raça de víboras e afirmam que Deus tem o poder de tirar das pedras filhos de Abraão. (Mateus 3, 7-12)
Em linha com os profetas anteriores, Jesus e João estão contra o Templo e os seus sacerdotes e repetem também eles o refrão transversal a todo o profetismo de Israel: quero misericórdia, não sacrifícios. (Oseias, 6, 6; Mateus 9, 13).
Semelhanças e diferenças entre Jesus e João
Segundo Dennis MacBride há muitas semelhanças entre o mestre João Batista, iniciador do movimento, e Jesus, seu discípulo. Ambos são profetas, não se casam, não são sacerdotes nem doutores da lei, não pertencem a nenhum grupo religioso; ambos são profetas independentes e confrontam o status quo religioso. E são as autoridades religiosas perseguidas pelas autoridades civis para apagar a sua palavra e cessar a sua ação.
Acreditam que a história de Israel está a ponto de acabar e que um outro reino vai substituir Israel. Ambos operam longe dos lugares sagrados. Abertos a todo tipo de gente, até mesmo àqueles que eles mesmos criticam, manifestam preferência pelos pobres e marginalizados da sociedade, pelos publicanos, pelos pastores, pelas prostitutas…
Jesus distingue-se de João, porém pela imagem que tem de Deus, pai amoroso e misericordioso. Leva a salvação às aldeias e cidades onde vive o povo, não está fixo num lugar. Cura, faz exorcismos, coisa que João nunca fez. Ao contrário do ascético João que vivia isolado no deserto, Jesus vive com o povo mistura-se com o povo, come e bebe e festeja com o povo; em tudo igual ao povo, exceto no pecado.
O poder de perdoar os pecados
(…) para que saibais que o Filho do Homem tem, na terra, poder para perdoar pecados - disse Ele ao paralítico: ‘Levanta-te, toma o teu catre e vai para tua casa. E ele, levantando-se, foi para sua casa. Ao ver isto, a multidão ficou dominada pelo temor e glorificou a Deus, por ter dado tal poder aos homens. Mateus 9, 6-8
O poder e a faculdade de perdoar os pecados em todas as tradições religiosas é reservado aos sacerdotes. Em Israel, como sabemos, só existia um lugar onde podiam perdoar-se os pecados: o templo de Jerusalém. O perdão dos pecados tinha-se tornado, no tempo de Jesus e João, num negócio rentável para a casta sacerdotal.
Anás e Caifás tinham grandes rebanhos e para darem saída aos seus inúmeros cabritos facilmente declaravam defeituosos e rejeitavam os cabritos e cordeiros que o povo trazia dos seus rebanhos para oferecer a Deus como expiação pelos seus pecados.
Todos os dias havia sacrifícios no templo, pelo menos um pela manhã e outro à tarde. Mas nos dias festivos havia muitos mais, em especial pela Páscoa. Calcula-se que, à hora em que Jesus morria na cruz, mais de 3 000 cabritos e cordeiros eram sacrificados no altar do Templo.
João trazia um traje de pelos de camelo e um cinto de couro à volta da cintura; alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. Iam ter com ele os de Jerusalém, os de toda a Judeia e os da região do Jordão, e eram por ele batizados no Jordão, confessando os seus pecados. Mateus 3, 4-6
De um momento para o outro, surgiu um leigo que fez um bypass ao Templo de Jerusalém com uma cerimónia de água que invocava a higiene corporal e espiritual, a pureza, tão cara aos judeus e perdoava os pecados sem exigir dinheiro em troca - toda a casta sacerdotal se sentiu ameaçada.
Terá sido mesmo João Batista que iniciou este movimento ou, como sugere o provérbio “Libris ex libris fiunt”, os livros surgem de livros, Jesus inspirou-se em João Batista para iniciar algo que foi muitíssimo mais além de João. Não terá acontecido o mesmo com João, ou seja, também ele se inspirou em algo que já existia para levar este perdão do pecado, original e revolucionário, não só a Israel mas ao conjunto de todas as religiões, pois todas elas exigiam sacrifícios para apaziguar a ira divina.
É certo que se levantava a questão de o movimento do Batista ser puramente humano ou ser de inspiração divina. Jesus usa esta dúvida para se defender perante a pergunta insistente dos fariseus sobre a sua autoridade para dizer o que dizia e fazer o que fazia. “Também eu vos faço uma pergunta, responderei à vossa se vós responderdes à minha. O batismo de João era do Céu ou dos homens?” Bem sabia Jesus que eles pensavam que era dos homens, pois só eles podiam perdoar os pecados, mas como havia por ali muito povo responderam a Jesus com silêncio. (Marcos 11, 30)
Qumran
Se no deserto das margens do Mar Morto, mesmo ali ao lado, onde João e Jesus batizavam, não existisse uma comunidade de monges, os essénios, que partilhavam os mesmos ritos e as mesmas ideias dos dois profetas, ocupando o mesmo espaço geográfico no mesmo tempo histórico, estaríamos inclinados para que o ritual de perdão dos pecados tivesse sido uma criação original de João. Mas existindo esta comunidade a dois passos do rio Jordão, somos levados a pensar que a mesma terá inspirado João e Jesus.
Tantos os monges de Qumran como João eram críticos do sistema sacrificial de Jerusalém. Ambos eram apocalípticos e pensavam que Israel estava a chegar ao fim dos seus dias. Ambos enfatizavam a necessidade de se purificar com água; os essénios de facto purificavam-se várias vezes ao dia.
A diferença entre estes monges e João Batista é que os monges eram elitistas e segregacionistas, retinham a salvação só para eles, enquanto que João provavelmente abandonou esta comunidade para oferecer a salvação a toda a gente; Jesus abandonou o Jordão para levar a salvação a todo o Israel, de aldeia em aldeia, de casa em casa, e ordenou aos os seus discípulos que a levassem a todo o mundo.
Eis o cordeiro de Deus – João 1,29
Esta é a afirmação de João Batista que coloca ponto final na disputa entre o perdão por via de sacrifícios e o perdão gratuito por via do batismo. Jesus declara que o sacrifício de outros não tem poder salvador, o que tem poder salvador é o sacrifício próprio.
Com Jesus acabam-se os sacrifícios da antiga lei de oferecer algo externo a mim mesmo e começam os sacrifícios da nova lei que é o oferecer-se a si mesmo. No alto da cruz, Jesus oferece-se a si mesmo num ato sacrificial absolutamente perfeito. Um non plus ultra – porque ele é o sacerdote, o templo, o altar e o cordeiro. O ato de Jesus é perfeito, inigualável e irrepetível pois não se pode morrer duas vezes.
Fazei isto em memória de mim – a Igreja, de geração em geração, repete, atua e atualiza o único sacrifício que tira o pecado do mundo. Aceite ou não aceite o povo de Israel este sacrifício para a sua redenção, o caso é que depois da morte de Jesus o Templo, providencialmente ou por ironia do destino, foi destruído e até aos dias de hoje não foi reconstruído.
Conclusão
Maria dá à luz Jesus de Nazaré, João Batista abre-lhe o caminho para a Missão na qual Jesus se descobre a si mesmo como Filho de Deus e Salvador da Humanidade.
Pe. Jorge Amaro, IMC
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