1 de janeiro de 2021

3 Coordenadas do Tempo: Passado - Presente - Futuro

Seres espácio-temporais
Somos seres espácio-temporais, ou seja, ocupamos um espaço durante um tempo. O nosso corpo é uma agregação e combinação de diferentes elementos inorgânicos e orgânicos da matéria, que se aglutinam durante um tempo e depois se desintegram, voltando cada um destes elementos ao seu estado simples e dissociado até que façam novamente parte de outro tipo de vida.

A água, por exemplo, apesar de ser inorgânica, é o elemento mais abundante no nosso corpo - cerca de 60% do corpo de um indivíduo adulto e 80% do corpo de uma criança. A água que hoje faz parte do nosso organismo já esteve provavelmente no fundo do mar, choveu sobre a terra, foi bebida por algum animal. A água que fez parte do corpo dos extintos dinossauros pode fazer hoje parte do nosso corpo.

O que permite a aglutinação e interação de diversos elementos inorgânicos e orgânicos é o nosso código genético. Uma vez formado na conceção de uma vida, existe até ao fim desta e supervisiona todas as funções vitais. Tal como a planta que um arquiteto desenha para a construção de um edifício, assim é o ADN para a construção de um corpo: contém toda a informação necessária para a sua sobrevivência e crescimento.  

O ADN cria-se no momento em que duas metades de célula - o óvulo da nossa mãe e o espermatozoide do nosso pai - se unem, formando a primeira célula do nosso organismo da qual todas as outras células derivam, e destrói-se muito depois de o nosso corpo se ter desintegrado.

Somos feitos dos elementos que existem no espaço criado após o Big Bang, somos pó de estrelas que habita num ambiente por um determinado tempo. Enquanto seres espaciais, somos constituídos por elementos que existem no espaço e, ao mesmo tempo, ocupamos o espaço que estes mesmos elementos nos facultam. O espaço que ocupamos é perfeitamente localizado dentro do nosso planeta, no nosso sistema solar, na nossa galáxia, no conjunto das inúmeras galáxias que formam o universo.

Quanto à outra coordenada, a do tempo, que define a nossa vida ou o nosso existir como seres espácio-temporais, temos que fazer uma distinção a que tipo de tempo nos referimos. Se o espaço definido pelas coordenadas de altura - largura – comprimento, é tridimensional, o tempo também é tridimensional, ou seja, há três tempos: cósmico – geológico – histórico. O tempo histórico que é o que verdadeiramente nos interessa, também é tridimensional pois é constituído por passado – presente – futuro.

Cósmico – geológico – histórico
Haveria uma quarta espécie de tempo, o tempo termodinâmico, que é um tempo relativo e que varia consoante a velocidade a que se deslocam o observador e o observado. O tempo diminui em proporção da velocidade, ou seja, quanto maior é a velocidade à qual se move o objeto, menos tempo decorre para ele. É por isso que Einstein não fala do tempo e do espaço como entidades separadas, mas sim como uma única entidade. Neste capítulo, falaremos da dimensão mais compreensível do tempo, ou seja, do tempo mensurável em anos, dias, horas, minutos e segundos.

O tempo cósmico
O cientista da NASA, Carl Sagan (1934-1996), tornou-se famoso nos anos oitenta pelos seus programas de TV sobre o cosmos. Excelente comunicador, conseguiu explicar difíceis conceitos de astronomia de maneira acessível a um público com poucos conhecimentos na área. Com o intuito de facilitar a compreensão do tempo cósmico, criou um calendário cósmico, colocando os acontecimentos mais importantes do universo a partir da sua criação até aos nossos dias, no decorrer de um ano que começava no dia 1 de janeiro e terminava a 31 de dezembro.

11 meses do ano
01 de janeiro – início do Big Bang
07 de janeiro – nascimento das primeiras estrelas
01 de março – surgimento da Via Láctea e outras galáxias
09 de setembro – origem e formação do sistema solar
14 de setembro – origem da Terra
25 de setembro – surgimento das primeiras formas de vida terrestre
02 de outubro – formação das rochas mais antigas alguma vez registadas
30 de novembro – início da reprodução sexuada

Dias do mês de dezembro:
01 – Constituição da atmosfera atual
16 – Formação dos primeiros helmintos (vermes)
17 – Big Bang biológico: formação de grande quantidade de seres vivos no período Câmbrico
18 – Formação dos primeiros seres vivos vertebrados
25 – Origem e reino dos dinossauros
26 – Origem dos primeiros mamíferos
28 – Formação das primeiras aves
30 – Extinção dos dinossauros

Horas do dia 31 de dezembro:
22:30 – Os primeiros humanos
23:46 – Descoberta do fogo
23:56 – Fim do último período glaciar
23:59 – Pinturas rupestres na Europa
23:59:20 – Descoberta da agricultura
23:59:35 – Início do Neolítico
23:59:50 – Surgimento das primeiras grandes civilizações
23:59:58 – Realização das cruzadas na Baixa Idade Média
23:59:59 – Início do capitalismo comercial e da expansão colonial europeia.

Tempo geológico
O nosso planeta é velho se olharmos para a sua idade de 4,6 mil milhões de anos. Porém, se compararmos a sua idade com a do Universo - 13 mil milhões de anos - é relativamente jovem. A escala do tempo geológico, como a do tempo cósmico, é medida em milhões e milhares de milhões. Como Geo em grego significa Terra, o tempo geológico refere-se à história do nosso planeta e respetivas transformações, até ao surgimento e desenvolvimento da vida e daí até ao aparecimento da vida humana.

Tempo histórico
Começa com a pré-história. Diz-se que se o tempo geológico fosse reduzido a um dia, as primeiras civilizações humanas teriam surgido nos últimos três segundos desse dia. Isto faz-nos entender que a Terra tem uma história muito longa de preparação até que a vida fosse possível e, depois disso, até que se desenvolvesse e evoluísse, chegando à vida humana.

A unidimensionalidade ou horizontalidade do tempo
O espaço plano constituído pelas linhas vertical, horizontal e diagonal é bidimensional. Quando nos referimos ao espaço tridimensional, falamos do comprimento, altura e largura. Quando falamos do tempo, porém, a dimensão é uma única. O tempo histórico, seja de uma pessoa individual seja de uma associação, tribo, país, é representado graficamente por uma linha reta traçada da esquerda para a direita.

Nascer – crescer - reproduzir-se – morrer, é a sequência inexorável, o caminho sem alternativa de todo o ser vivo, quer se trate de uma bactéria muito simples ou de um ser mais complexo, como o ser humano. A vida é uma linha reta que começou em algum momento do passado, da qual temos consciência no presente, ou seja, de que estamos vivos no aqui e agora, e sabemos que se prolongará por algum tempo no futuro até acabar na sua dimensão espácio-temporal.

Um comerciante de Bagdade enviou o seu servo ao mercado. Pouco tempo depois, o homem voltou lívido e tremendo de medo. “Amo", disse ele ao comerciante, "estando na praça do mercado, deparei-me com um estranho e, quando olhei para a cara dele, descobri que era a Morte. Fez-me um gesto ameaçador e desapareceu. Agora estou com medo, imploro-lhe, por favor, que me empreste um cavalo para eu fugir para Samarra e colocar entre mim e a morte a maior distância possível."

O comerciante, preocupado com o seu servo, deu-lhe o cavalo mais rápido; o servo montou o cavalo e desapareceu num piscar de olhos. Horas depois, o próprio comerciante foi até ao mercado e viu a Morte entre a multidão. Abeirou-se dela e perguntou: "Que quiseste dizer com o gesto ameaçador que fizeste ao meu pobre servo esta manhã?”

"Não foi um gesto ameaçador, senhor", disse a Morte. "Foi um gesto de surpresa por o encontrar em Bagdade." "E por que não deveria ele estar em Bagdade, se é aqui que ele vive?" "Bom… é que eu fiquei de me encontrar com ele esta noite em Samarra, entende?”


Passado – Presente – Futuro
O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
a força, a arte, a manha, a fortaleza;
o tempo acaba a fama e a riqueza,
o tempo o mesmo tempo de si chora.
Luís de Camões

Einstein criou a Teoria da relatividade para explicar o universo. O povo vulgarizou-a, aplicando-a a todos os âmbitos da vida e do saber humano ao concluir “Tudo é relativo”. Falando do passado, do presente e do futuro, no âmbito da vida humana, nenhum deles existe em estado puro.

Tanto o passado como o futuro já se encontram representados no presente, pelo que o presente nem sempre se refere ao presente, tanto pode referir-se ao passado como ao futuro. Assim como o passado e o futuro visitam o presente, o presente também pode deslocar-se ao futuro e ao passado. O presente em si é o que está a ocorrer, mas quando pensamos no que está a ocorrer, já é passado.

O passado passou, mas nunca passa; o futuro chega, mas nunca chega, desloca-se para a frente como a cenoura à frente do burro. Enquanto existirmos, os três existem connosco e só deixamos de ter presente e passado quando deixamos de ter futuro, ou seja, quando morremos. Como vivem os três juntos, também morrem os três juntos, com poucos segundos de diferença. Morremos da frente para trás: primeiro morre o futuro, depois o presente e só depois o passado.  

Somos uma flecha que alguém disparou no passado. Segundo as circunstâncias da vida, nós mesmos podemos ter algum controlo sobre a direção que a flecha toma, mas sabemos que “Todos os caminhos vão dar a Roma”, que o destino é comum, que a morte é certa e incerta. Certa, porque é a única coisa que sabemos com certeza do nosso futuro, como diz Heidegger, somos um ser para a morte. Incerta porque não sabemos onde, nem quando nem de que forma morreremos e julgo que ninguém estará interessado em saber.

No caso de haver vida eterna, como acreditamos enquanto cristãos, então morre o futuro e o passado também, porque deixam de ser interativos no presente. A vida feita do tempo a correr deixa de ser uma realidade. O que fomos, somos, o que hoje somos assume tanto o bem como o mal que contribuíram para o que hoje somos. O passado são os andaimes da construção do edifício. Quando acaba a construção, com a nossa morte, os andaimes já não são precisos: o que chegamos a ser é agora o que seremos para sempre na eternidade.

Pertence também à categoria de andaime o nosso corpo físico, pois por ele e com ele construímos o nosso ser, o nosso corpo espiritual e quando este está construído cessa o tempo na sua dimensão de futuro e passado e mantém-se na sua dimensão de presente, um eterno presente em Deus e com Deus.

Como no Polo Norte e no Polo Sul, o Este e o Oeste fundem-se num ponto; assim, na nossa vida o passado e o futuro hão de fundir-se num presente eterno. Como já dissemos, o nosso planeta move-se da esquerda para a direita; para não nos desnortearmos, olhamos para o Norte, para onde aponta a agulha da bússola; tendo o Norte como ponto de referência, o Ocidente fica à nossa esquerda e o Oriente à nossa direita.

Se o tempo humano se move do passado, que se situa graficamente à nossa esquerda, e que corresponde ao ocidente, para o futuro que se situa à nossa direita e que corresponde ao oriente, então não caminhamos para o ocaso ou o ocidente das nossas vidas, mas sim para o oriente, para o começo da vida eterna.

Somos do planeta Terra que se move da esquerda para a direita, ou seja, no sentido anti-horário e, tal como se move a nossa mãe Terra, assim nos movemos nós contra os ponteiros do relógio, como se quiséssemos dizer que somos seres eternos porque andamos contra o tempo, porque nos impomos ao tempo.

A nível de tempo, correspondendo o passado ao ocidente e o futuro ao oriente, a nossa vida não caminha para um fim, mas para um começo, que é a eternidade. A nossa morte é o nascimento para a eternidade como o primeiro nascimento foi uma morte para a vida que tínhamos no paraíso do seio materno. Do seio materno passamos ao seio deste mundo; do seio deste mundo, passaremos para o seio de quem o criou - Deus.

O passado
Pilatos redigiu um letreiro e mandou pô-lo sobre a cruz. Dizia: «Jesus Nazareno, Rei dos Judeus.» Este letreiro foi lido por muitos judeus, porque o lugar onde Jesus tinha sido crucificado era perto da cidade e o letreiro estava escrito em hebraico, em latim e em grego. Então, os sumos sacerdotes dos judeus disseram a Pilatos: «Não escrevas ‘Rei dos Judeus’, mas sim: ‘Este homem afirmou: Eu sou Rei dos Judeus.’» Pilatos respondeu: «O que escrevi, está escrito.» João 19, 19-22

Pilatos recordou aos sumos sacerdotes dos judeus que o passado é passado e não pode ser modificado. Os factos históricos do passado não podem ser modificados a partir do presente. “Contra factos não há argumentos” é uma expressão utilizada no Direito para dizer que não há forma de negar o que aconteceu e que está patente aos olhos de todos.

“A lo hecho pecho” – Diz um proverbio castelhano; o facto é aquilo que há de mais objetivo na vida do ser humano. Dizia uma mulher dando de mamar ao seu recém-nascido “podes não ter querido este bebé, pode ter sido feito por acidente, mas uma vez feito deves dar-lhe o peito, é uma criança indefesa não tem culpa nenhuma por ter sido chamada à vida, quaisquer que tivessem sido as circunstâncias”.

Perante os factos, existe às vezes uma atitude de negação, pela qual a pessoa tenta não os aceitar, fingindo que não aconteceram. Há pessoas que dizem “isto não pode ter-me acontecido a mim!” Mas se aconteceu, o que aconteceu não pode ser apagado. O que está feito, está feito, o que está escrito, está escrito, como disse Pilatos. Esta foi a sua forma de se reconciliar com o que a História diria acerca dele, uma última tentativa de não ficar tão mal na fotografia.

O passado como “presente”
 

O dia de ontem é História. O dia de amanhã é um mistério. O dia de hoje é uma dádiva. Por isso se chama presente. Autor desconhecido

O passado pode apresentar-se no nosso presente como um perseguidor. Quando o passado nos persegue, vivemos fugitivos no presente e sentimos remorsos por aquilo que fizemos. “O fugitivo” foi uma série muito famosa nos anos 60; um médico tinha sido injustamente condenado pelo assassínio da esposa e, para não cumprir a pena, fugiu da justiça e andou em fuga até encontrar provas da sua inocência e descobrir o verdadeiro culpado. O seu presente era feito de fuga, não podia ter uma vida normal, não podia exercer a sua profissão de médico. Assim é a pessoa que vive perseguida pela culpa do passado: não pode viver o presente com sentido.

Tenho confessado mulheres com os seus 80 anos que obsessivamente continuam a confessar o aborto que cometeram quando tinham 15. É certo que Deus há muito as perdoou e esqueceu, virou página, mas essas mulheres não conseguem perdoar-se a si mesmas e, por isso, continuam a confessar o pecado uma e outra vez.

Não podemos desenvencilhar-nos do nosso passado, já que ele contém a nossa identidade, o que somos. Uma pessoa sem memória histórica deixa de saber quem é, como acontece na velhice com a demência e com a doença de Alzheimer. Portanto, como não podemos desfazer-nos do nosso passado, necessitamos de nos reconciliar com ele. “Se não podes derrotar e acabar com o teu inimigo, faz-te amigo dele”; o mesmo devemos fazer com o nosso passado. Para podermos ser 100% funcionais no presente, precisamos de lançar um olhar benigno sobre o nosso passado.

Alguém disse que aprendemos mais com os nossos erros do que com os nossos acertos. Refere-se a esta ideia a palavra pecado em hebreu, “hatat”, que significa errar o alvo. A perfeição é feita de muitas imperfeições, o acerto é feito de muitos erros. O erro faz parte do treino em qualquer arte ou ofício, e na vida acontece o mesmo.

O erro, o pecado, o que fizemos de mal, o acontecimento em si, é a caixa que contém um presente precioso dentro dela. Quando recebemos um presente esfarrapamos o papel bonito e vistoso, assim como a caixa, para ficar com o presente e atirar com a caixa para o lixo. O mesmo devemos fazer com os feitos negativos do passado. A caixa é o ato em si, a lição aprendida que dali tiramos é o presente. Só o presente deve ser trazido para o nosso presente, para a nossa consciência; o ato em si, a caixa, deve ser esquecido, deve ficar no passado.

Tropece de nuevo y con la misma piedra, en cosas de amor nunca aprenderé, – dizia Júlio Iglesias numa canção. Certas lições levam mais tempo a aprender, pelo que podemos cair no mesmo erro mais de uma vez. E talvez haja questões sobre as quais nunca possamos aprender, como diz o cantor.

O felix culpa quae talem et tantum meruit habere redemptorem – Esta é a frase do pregão pascal na missa da Vigília da Pascal. Oh feliz culpa que nos mereceu um tão grande redentor. O passado não pode ser modificado, mas pode ser reinterpretado à luz do presente. É essa a ideia que está por detrás do “Felix Culpa”. Se Adão e Eva não tivessem pecado, não teria vindo até nós o filho de Deus feito Homem.

Não há males que por bem não venham
Numa ilha remota, o único sobrevivente de um naufrágio orava a cada instante com fervor a Deus para que o ajudasse a sair dali. E todos os dias perscrutava o horizonte à procura de ajuda, mas esta nunca chegava. Cansado, começou a construir uma pequena cabana para se proteger e proteger as poucas coisas que tinha salvo do naufrágio, preparando-se para uma espera mais demorada.

Um dia, ao regressar de buscar comida, encontrou a sua pequena cabana em chamas, depois de ser atingida por um raio. As chamas e o fumo subiam tão alto que não conseguiu apagar o fogo e perdeu tudo. Confuso e agastado com Deus, adormeceu na praia e, ao acordar logo de manhã, ouviu a sirene de um navio e uma pequena lancha que vinha na sua direção para o resgatar. Perguntando como tinham dado com ele, o capitão respondeu, “vimos os sinais de fumo que fizeste”.


Esta é uma de tantas histórias que podia aqui citar e que demonstram este provérbio português tão característico. O mal e o bem encontram-se misturados na nossa vida: há bens que causam males e males que causam bens. Por outro lado, como refere a parábola do joio no campo, nem sempre é claro o que é bem e o que é mal, só ao fim se saberá.

Nos altos e baixos da nossa vida não devemos perder a cabeça nem a esperança, pois “Não há male que sempre dure nem bem que sempre ature”. Cada facto negativo ou positivo deve ser julgado num contexto maior das nossas vidas e não somente no contexto em que ocorre.

Do ponto de vista da nossa fé, o cristão nunca deveria usar as palavras sorte ou azar pois são supersticiosas. Para o cristão existe a providência divina: nada acontece fora dela. Deus Pai que nos trouxe a vida cuida sempre de nós, mesmo quando parece que não. Quando o mal acontece nas nossas vidas, acreditamos que é por algum bem maior, ou seja, que é uma cruz que leva a uma ressurreição ou um passar pelo deserto que leva a uma terra prometida.

O passado como presente perfeito
Um verbo no pretérito perfeito composto expressa uma ação que começou no passado e se prolonga no momento presente, ou seja, ainda não acabou. Une o passado com o presente e o presente com o passado. Por exemplo, “Tenho estudado muito para os exames” significa que comecei a estudar há algum tempo e ainda estou a estudar.

A nossa vida decorre fundamentalmente neste tempo verbal. Primeiro, porque continuamos a viver, mas a nossa vida começou no passado. Segundo, porque enfrentamos o presente ou o futuro com a nossa bagagem do passado; é esta que contém a nossa memória histórica, a nossa identidade. E terceiro, porque muitos dos assuntos que nos ocupam no presente têm a sua origem no passado. Psicologicamente, o nosso passado influencia sempre o nosso presente de uma forma consciente ou inconsciente.

O presente
“Nunca vivemos; estamos sempre na expetativa de viver.” – Voltaire (1694-1778)
“Não te detenhas no passado. Não sonhes com o futuro. Concentra a mente no momento presente.” Buddha

O presente é o tempo de ação, o tempo real em podemos fazer acontecer, o único tempo sobre o qual temos poder. Somos pensamento, sentimento e ação. O pensamento pode estar no passado, mesmo que o ato de pensar ocorra sempre no presente; ou pode estar no futuro, quando se projeta para uma realidade que ainda não existe, ou seja, utópica no sentido grego da palavra que não tem lugar aqui e agora. Os sentimentos ou as emoções são o que há em nós de mais presente; tanto o prazer como a dor, assim como todos os outros sentimentos, ancoram-nos no aqui e agora.  

Porém, não há nada mais efémero, mais movediço, mais instantâneo e mais rápido que o momento presente. Como ilustra a imagem acima, é tão só um ponto onde o passado e o futuro se encontram. É o momento em que o futuro se torna passado ao passar pelo presente. A Terra move-se da  esquerda para a direita, nós corremos da esquerda, que é o passado, para a direita, que é o futuro. Não posso evitar a imagem do hamster a correr dentro de uma roda que se move - assim somos nós sobre o nosso planeta.

Para compreender o valor de UM ANO, pergunte a um aluno que chumbou numa cadeira.
Para compreender o valor de UM MÊS, pergunte à mãe que deu à luz um bebé prematuro.
Para compreender o valor de UMA SEMANA, pergunte ao editor de um jornal semanal.
Para compreender o valor de UMA HORA, pergunte aos amantes que esperam para se encontrar.
Para compreender o valor de UM MINUTO, pergunte à pessoa que perdeu o comboio.
Para compreender o valor de UM SEGUNDO, pergunte à pessoa que acaba de escapar a um acidente.
Para compreender o valor de UM MILÉSIMO DE SEGUNDO; pergunte à pessoa que ganhou uma medalha de prata nos Jogos Olímpicos.

                                                    Marc Levy,        

Como o texto de Marc Levy nos mostra, a forma como vivemos o presente humano não é tanto como um ponto correspondente a um segundo que apressadamente passa do futuro para o passado. Agarramo-nos ao conceito do contemporâneo para estender o momento presente, tanto para a direita (futuro) como para a esquerda (passado) e dizemos “dentro de duas horas”, há duas horas”, “hoje”, “esta semana”, “este mês”, “durante este ano”, etc.

E assim sentimos um certo conforto, como se conseguíssemos parar o tempo. Só quando mudamos de mês e de ano, ou quando fazemos anos é que nos apercebemos que o tempo passa inexoravelmente e que cada momento é único e não se repete. Cada minuto perdido está verdadeiramente perdido, os minutos que temos pela frente são outros e não substituem o perdido. Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, como dizia o filosofo pré-socrático Heráclito.

A ilusão e a falácia da competitividade e da competência
"Não tenho filhos e tremo só de pensar. Os exemplos que vejo em volta não aconselham temeridades.
Hordas de amigos constituem as respetivas proles e, apesar da benesse, não levam vidas descansadas.
Pelo contrário: estão invariavelmente mergulhados numa angústia e numa ansiedade de contornos particularmente patológicos.

Percebo porquê. Há cem ou duzentos anos, a vida dependia do berço, da posição social e da fortuna familiar. Hoje, não. A criança nasce, não numa família, mas numa pista de atletismo, com as barreiras da praxe: jardim-escola aos três, natação aos quatro, lições de piano aos cinco, escola aos seis. E um exército de professores, explicadores, educadores e psicólogos, como se a criança fosse um potro de competição.

Eis a ideologia criminosa que se instalou definitivamente nas sociedades modernas: a vida não é para ser vivida - mas construída com sucessos pessoais e profissionais, uns atrás dos outros, em progressão geométrica para o infinito. É preciso o emprego de sonho, a casa de sonho, o maridinho de sonho, os amigos de sonho, as férias de sonho, os restaurantes de sonho, as quecas de sonho.

Não admira que, até 2020, um terço da população mundial esteja a mamar forte no Prozac. É a velha história da cenoura e do burro: quanto mais temos, mais queremos. Quanto mais queremos, mais desesperamos. A meritocracia gera uma insatisfação insaciável que acabará por arrasar o mais leve traço de humanidade. O que não deixa de ser uma lástima. Se as pessoas voltassem a ler os clássicos, sobretudo Montaigne, saberiam que o fim último da vida não é excelência, mas sim a felicidade!"

 João Pereira Coutinho (jornalista) 2011


Os pais projetam, nos filhos tudo o que desejariam ter sido, quase os usam como marionetas. Não deixamos as crianças viver à rédea solta a sua infância como eu vivi a minha. A infância, a adolescência e a juventude são tempo de preparação rigorosa. As crianças e sobretudo os jovens sofrem esta ditadura; por isso chegam ao fim de semana e desejam desafogar-se de toda a maneira e feitio, em orgias e bacanais, droga, bebida e sexo como pausa do colete de forças ao qual são submetidos para poder, no sentir dos adultos, triunfar na vida, ou seja, num mundo cada vez mais competitivo. A pressão à qual são submetidos é cruel em todos os sentidos: económico, social, universitário, afetivo.

Curso superior, emprego, noivo ou noiva, casa, carro tudo tem de ser conseguido num breve espaço de tempo, numa corrida infernal. Quem fica sem uma destas “comodidades” não pode considerar-se feliz e pode ser objeto de escárnio por parte dos ditos triunfadores.

3 X 8 = 24
O nosso dia de 24 horas está dividido em três grupos de oito horas cada um. Oito mais oito são dezasseis, mais oito são 24. Oito horas de descanso, mais oito horas de trabalho, mais oito horas de quê? Diversão? Para muitos, é de facto isto: trabalhar para comer e divertir-se, pão e circo como diziam os antigos romanos.

As oito horas de trabalho e as oito horas de descanso estão em função uma da outra; descansamos para poder trabalhar, trabalhamos para poder sustentar-nos. O trabalho e o descanso não são vida, servem para nos mantermos vivos. Vida é o que fazemos com o terceiro grupo de oito horas. Dezasseis horas mantêm-nos vivos e só vivemos verdadeiramente oito horas. Numa vida de 75 anos, passamos 25 anos a trabalhar, outros 25 anos a dormir, e só vivemos verdadeiramente 25 anos: são estes anos que justificam ou não estarmos vivos; são estes últimos 25 anos que são a razão do nosso viver.

Trabalhai não tanto pelo pão que perece… João 6, 27 - como a vida dos outros seres vivos, a nossa vida não pode reduzir-se ao círculo vicioso de trabalhar para comer e comer para trabalhar. Estar vivos e viver não são a mesma coisa; não vivemos para estar vivos, mas estamos vivos para viver. Sobre este pano de fundo, como é triste e sem sentido a vida daqueles que gastam o seu tempo e as suas energias numa azáfama, gastando a vida a preservar a vida, a manter-se vivos, como se dessa forma conseguissem mantê-la para sempre. “Insensato! Nesta mesma noite, vai ser reclamada a tua vida; e o que acumulaste para quem será?”  Lucas 12, 20

Faz na vida só o que gostas – para além das oito horas que podemos dedicar à nossa vocação, devemos conquistar também as oito horas de trabalho e assim não viveremos só oito horas, mas 16. O ideal é mesmo este: que o nosso trabalho seja o nosso passatempo e o nosso passatempo seja o nosso trabalho, ou seja, que gostemos do que fazemos e para o qual nos preparámos profissionalmente.

Sempre recordarei o meu pai antes de ir trabalhar, sobretudo no turno da noite numa fábrica têxtil, que dizia “lá vou eu para o degredo”. As horas que passava no campo a trabalhar pareciam-lhe poucas, porque gostava do que fazia, e por isso, chegava a casa já bem de noite. Porém, as horas da fábrica não as fazia com o mesmo agrado, embora fosse um bom profissional e procurasse tecer mais peças que os outros.

Quando não gostamos do nosso trabalho, quando não gostamos do que fazemos, somos escravos e não livres. Depois de ter feito tudo bem e de ter ficado agradado com o que fez, Deus entregou ao Homem a criação como incompleta. Por isso deu ao Homem o poder de criar, não do nada como Ele criou, mas a partir dos elementos simples que Ele criou. O nosso trabalho deveria, portanto, ser criação, deveria ser uma arte mais que um ofício. Porém, quando à partida não gostamos do nosso trabalho e, de alguma forma, não nos resta alternativa, cabe-nos encontrar-lhe o gosto para depois o fazer com gosto.

Todos nascemos naturalmente a gostar de bebidas açucaradas; porém, ao crescermos, desenvolvemos um gosto pela cerveja e pelo vinho e pomos de lado as tais bebidas açucaradas para as quais tínhamos nascido com uma apetência natural. O mesmo acontece com o nosso trabalho: podemos desenvolver por ele um gosto e ser criativos de tal forma que não vivemos só as oito, mas sim as dezasseis horas.

A opção fundamental como compromisso - A opção fundamental é uma decisão que se toma sobre o conjunto da nossa vida, é o objetivo, a meta do nosso viver, que dá sentido, cor e sabor a todos os dias da nossa vida. É a chama que é mantida pelo combustível, energia e tempo da nossa vida. É o ponto de apoio da alavanca que levanta o mundo, no princípio de Arquimedes. É a motivação, a inspiração que reúne todos os nossos recursos e os coloca ao serviço de uma meta, de um alvo por nós escolhido.

A vida é feita de muitas opções e decisões; são elas que dão cor, sabor, aroma e sentido à nossa vida. Estas pequenas opções geralmente referem-se a um ou mais aspetos da nossa vida; podem afetar-nos muito ou pouco, mas não chegam a afetar o conjunto da nossa vida. A opção fundamental é a decisão das decisões, a opção mestra, a mãe de todas as opções porque se refere a toda a vida presente e futura. Na maior parte das vezes, é irreversível, é a razão do nosso viver, é a causa que vamos alimentar com o nosso tempo e energia, é a boca para a qual nós somos o pão.

A causa, ou opção fundamental, que Nelson Mandela alimentou com a sua vida foi o fim do apartheid na África do Sul; para Beethoven, foi a música; para Picasso, a pintura; para Gandhi, a independência da Índia de uma forma não violenta; para alguns pais, são os filhos; para os professores, são os alunos; para os médicos, são os doentes…. Mais que uma profissão, a vida é uma missão.

Não há vida sem compromisso - Vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido.
Dalai Lama

Quando chega o momento de escolher a nossa opção fundamental, estamos na encruzilhada da nossa vida; ou, como é mais comum pensar atualmente, pelo menos na Europa, estamos na rotunda da nossa vida. Não podemos ficar aí para sempre, nem por mais tempo do que é adequado. Frequentemente, quando permanecemos demasiado tempo indecisos, a vida acaba por decidir por nós, ou o governo, como acontece em alguns países a respeito das uniões de facto dos jovens: depois de um tempo o estado considera-os casados. Em Lisboa existe uma rotunda chamada “Rotunda do Relógio” - enquanto permanecemos indecisos, o tempo passa e algumas oportunidades não aparecem uma segunda vez na vida….

O futuro
“A mente ansiosa com o futuro é infeliz.Lucius Séneca

“Por isso vos digo: não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido? (…) Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida?” Mateus 6, 25, 27

A única coisa que sabemos do futuro é que a morte é certa, segura, vai acontecer, mas também incerta quando ao dia e hora. Nem esta deve preocupar-nos porque, tal como dizia Karl Marx, enquanto nós formos, ela não será e quando ela for, não seremos nós. A espiritualidade que melhor serve ao cristão é a de nómada, por isso, já desde o princípio, Yaveh não esconde a sua predileção por Abel que era pastor e o seu desgosto por Caim que era agricultor. O pastor é nómada segue o seu gado, o agricultor é sedentário, tende a instalar-se na vida.

Somos peregrinos em busca de um destino que está no futuro. Parar é morrer e, como não temos aqui cidade permanente, devemos amar a Deus acima de todas as coisas e caminhar para Ele desarraigados das coisas e das pessoas, porque perderemos as coisas e as pessoas, só a Ele nunca perderemos e, por isso, só a Ele devemos agarrar-nos.

Ser versus fazer
Os judeus pensavam que por serem filhos de Abraão já estavam salvos. A verdade é que segundo o evangelho de Mateus 25, não seremos julgados pelo que somos, mas pelo que fazemos. Quanto ao ser, o que quer que seja que sejamos como filhos de Abraão, dizia João Batista que Deus podia fazer brotar destas pedras filhos de Abraão. Segundo o mesmo Mateus 25, qualquer pequena obra tem valor aos olhos de Deus e é sempre uma obra trinitária, pois nos faz bem a nós, aos outros e glorifica a Deus, que é Pai de todos.

Muitos buscam estatuto, posição na vida, poleiro, títulos, cargos que lhes deem prestígio, os tais primeiros postos que o evangelho tanto denuncia. O verdadeiro prestígio vem de dentro, não de fora; o verdadeiro prestígio não vem do cargo que possuímos, ou seja, de fora de nós, mas da forma como desempenhamos esse cargo, ou seja, de dentro de nós. Para Deus, não é importante o que somos, mas a forma como somos o que somos.

“Pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7, 16) - o verdadeiro prestígio não vem do cargo que ocupas, mas da forma como ocupas o cargo que ocupas. Tem mais valor aos olhos de Deus e dos homens um varredor de ruas santo que um primeiro ministro corrupto.

Simeão e Ana
Simeão está de atalaia esperando a vinda da glória de Deus ao templo. Este velho não habita no passado, mas no futuro.

Quando chegamos aos 50 anos, mais de metade da nossa vida está no passado; quando temos 80 anos, quase toda a nossa vida pertence ao passado, não há muito a esperar. Simeão e Ana eram velhos, mas ainda viviam para o futuro, estavam cheios de esperança. Olhavam para a frente e não para trás; por olhar para trás, ficou a mulher de Lot paralisada, transformada numa estátua de sal.

Simeão e Ana tinham um objetivo na sua vida. Einstein disse que para sermos felizes não devemos agarrar-nos a nada nem a ninguém, mas devemos buscar um objetivo na vida e persegui-lo. Eles tinham um e, uma vez realizado, Simeão estava disposto a partir para Deus.

O melhor está para vir
Conta-se que uma senhora tinha uma doença incurável, mas a sua fé era do tipo de Teresa de Ávila, que desejava morrer para se reunir ao esposo da sua alma. Então, sem dramas nem tragédias preparou até ao mínimo detalhe o seu funeral, de maneira a ser uma lição para os outros membros da sua comunidade cristã. Quando eventualmente faleceu, a sua urna estava exposta na igreja, aberta e todos ficaram espantados quando, em vez de a verem com o rosário na mão, a viram com faca e garfo.

O pároco na homilia explicou que esse tinha sido o seu desejo e que tinha tirado a ideia dos banquetes da paróquia em que tinha participado. Quando o empregado levantava um prato, dizia-lhe sempre “fique com a faca e o garfo, porque o melhor está para vir”.

Quando a velhice chegar, quando tivermos mais rugas que cara e já não andarmos nem com andarilho, quando já não virmos um boi à frente nem ouvirmos os chocalhos de um rebanho, quando frequentarmos mais a farmácia que o café, porque o sofrimento veio para ficar, o melhor ainda estará para vir, pois não caminhamos para o ocaso da nossa vida, mas sim para o princípio da eternidade que não é uma extensão do tempo mas a ausência deste; esta é a esperança cristã.

Pe. Jorge Amaro, IMC














Sem comentários:

Enviar um comentário