15 de dezembro de 2020

3 Constituintes da justiça reparadora: Vítima - Comunidade - Transgressor

O conceito de justiça reparadora está agora muito na moda. Há partidos políticos que já a incluem nas suas campanhas. Em certos países há versões deste tipo de justiça que se usam como prática legal. Mas o conceito em si não é novo - é tão ou mais antigo que o conceito contrário, o da justiça retributiva.

Há dois anos, quando falámos da comunicação não violenta, abordámos num texto os dois conceitos de justiça. Repetimos aqui muito do que dissemos na altura sobre os dois conceitos, pois não é possível falar de um sem falar do outro. Depois de distinguir um conceito de justiça do outro, o objetivo deste texto é demonstrar como funciona a justiça distributiva em contraposição com a justiça retributiva.

A justiça retributiva é binária pois só admite duas instâncias: o Estado e o transgressor. Entre os que não são tidos nem achados no processo estão, em primeiro lugar, a vítima, a pessoa que foi agredida, ferida; em segundo lugar, a sua família. Não somos ilhas, vivemos em relação íntima com a nossa família, portanto, quando algo de grave acontece a um dos elementos, todos sofrem de algum modo por solidariedade. “Um por todos, todos por um” diz o lema dos três mosqueteiros. Para além da família da vítima, a família do transgressor foi também vitimizada por ele e também sofre, carregando por vezes com parte da culpa. Por fim, temos a comunidade à qual pertencem a vítima com a sua família e o transgressor com a sua.

A justiça reparadora não separa o indivíduo, seja a vítima seja o transgressor, do seu ambiente familiar e comunitário. O delito acontece no seio de uma comunidade concreta, com os seus problemas sociais e estruturais. Nem a vítima nem o transgressor caíram de paraquedas neste mundo - são filhos das suas famílias que contribuíram para o que são no momento do delito.

A justiça reparadora é trinitária ou tridimensional, coloca frente a frente a vítima com a sua família, o transgressor com a sua família, no seio da comunidade à qual todos pertencem. A finalidade é reparar o mal feito, pôr termo à violência. Reconciliar o transgressor com a sua própria família, com a vítima e respetiva família e, por fim, com a comunidade no seio da qual o delito foi cometido.

A justiça retributiva não repara nem restaura porque paga na mesma moeda: é vingativa, responde a um crime ilegal com um crime legal e perpetua a violência. Depois de exercitada a vingança legal, a vítima sente uma certa satisfação, mas não se sente reparada nem reconciliada. A ferida não desaparece e transforma-se num trauma que atua no seu psiquismo, como se o delito continuasse a ser cometido. Só o perdão pode curar, a vingança piora as coisas, transforma uma ferida numa doença crónica. A seguinte história ilustra bem esta questão, de alguém que fica refém de um facto passado.

Um ex prisioneiro de um campo de concentração nazi foi visitar um amigo que com ele tinha partilhado tão penosa experiência. “Já perdoaste aos nazis tudo aquilo que nos fizeram?” Eu não lhes perdoarei, disse, ainda os odeio com toda a minha alma.” Ao ouvir isto, o amigo disse-lhe calmamente, “se é assim, se ainda os odeias, então ainda lá estás no campo de concentração, e os nazis ainda te mantêm prisioneiro”.

Algo parecido acontece com o transgressor, no momento em que toma consciência do mal cometido, também ele nunca mais encontrará paz, não se perdoará a si mesmo se a vítima não o perdoar. A culpa vai persegui-lo por todo o lado, mesmo depois de ter cumprido a pena prescrita pela lei. Só o perdão da vítima lhe dará saúde, o levará à reconciliação com o seu passado e consigo mesmo.

Génese da justiça retributiva
Decalcada neste aspeto do código babilónico Hamurabi, a Bíblia reconhece que os atos humanos têm consequências inevitáveis. Há como que uma lei de recompensa implícita no universo que dita que as pessoas colhem o que semearam (Gálatas 6, 7). Os conceitos retributivos básicos da culpa, expiação e proporcionalidade da pena estão amplamente atestados, tanto no Antigo como no Novo Testamento.

De facto, a Bíblia até termina com uma afirmação do princípio retributivo da justiça: “Eis que Eu venho em breve e trarei a recompensa para retribuir a cada um conforme as suas obras” (Apocalipse 22, 12). Portanto, a justiça bíblica é retributiva na medida em que gira à volta dos conceitos de culpabilidade moral, recompensa e o respeito pela Lei.

Seria, no entanto, um erro concluir que o conceito de justiça retributiva esgota ou engloba toda a ideia de justiça na Bíblia. Justiça no antigo Israel envolvia tudo o que fosse necessário para criar, manter e restaurar relacionamentos saudáveis no seio da comunidade.

Um ato criminoso era considerado errado, em primeiro lugar, porque violava os compromissos relacionais que mantinham a sociedade; em segundo lugar, porque os atos criminosos em si podiam conduzir a uma reação em cadeia de ruína e desastre se não fossem cerceados. Já no Antigo Testamento, mas sobretudo no Novo, os crentes são exortados a abdicar da retribuição ou retaliação, relegando-a para Deus e, no seu lugar, abraçar os princípios de perdão e reconciliação. (Mateus 5, 38-48, Romanos 12, 17-21, 1 Pedro 2, 21-23)

A justiça retributiva, tal como funciona nos nossos dias, nasceu no século XIII. Com o contrato social, dá-se a confiscação dos conflitos pelo Rei, Estado ou Lei. A partir deste momento, as ofensas não são feitas a pessoas concretas de carne e osso, mas sim ao Estado por via da transgressão das suas leis. Portanto, as vítimas reais desaparecem e, no seu lugar, aparece o Estado como lesado. A vítima real poderia até perdoar, o sistema penal não perdoa porque o crime foi cometido contra um coletivo: a sociedade, o Estado.

Nos países onde existe ainda a pena de morte ou mesmo a prisão perpétua, o crime que a justiça comete é bem pior que o crime do criminoso; este, porventura, atuou sob a influência de alguma emoção forte num momento reativo, movido pelo seu cérebro reptiliano, mais do que pelo seu neocórtex. Pelo contrário, o crime do sistema penal é totalmente premeditado e não só por uma pessoa, mas por um elevado número de pessoas; e o que é ainda mais cruel, nefasto e bárbaro, são os anos que decorrem entre o pronunciamento da sentença de morte e a sua execução.

Com a aplicação de castigos, pretensamente proporcionais às penas, o sistema penal existe para defender a sociedade do crime, mas o que esconde verdadeiramente é que está articulado como instrumento de dominação de umas classes sobre outras; basta olhar para as nossas prisões e ver que estão cheias de pessoas que pertencem às classes mais baixas por crimes de pouca importância, quando comparáveis a gente das classes altas que cometeram crimes bem graves e vivem em liberdade.

Funcionamento da justiça retributiva
O tipo de justiça penal que se pratica em todo o planeta é a justiça retributiva que consiste em retribuir, a um delinquente ou infrator, mediante um castigo ou pena, o mal cometido a outra pessoa (vítima). Esse castigo é imposto por um legislador para compensar o dano infligido à vítima e, na maior parte dos casos, a pena é a privação da liberdade.

Para a justiça retributiva, delito é um ato individual de infração das leis do Estado; a responsabilidade deve ser assumida pelo infrator. O delito é uma questão entre o Estado e o delinquente, não se levando em conta a vítima, que verdadeiramente foi a pessoa lesada, nem as pessoas indiretamente envolvidas, nem mesmo a comunidade que, de algum modo, também foi lesada.

Na justiça retributiva só existem duas instâncias: o Estado que se apresenta e assume como sendo ao mesmo tempo vítima do crime, poder legislativo, executivo e coercivo, e o infrator que sofre as consequências da sua infração à lei.

A função do Estado é capturar o réu, acusá-lo, provar a sua culpa e aplicar-lhe uma pena adequada ao seu delito. A função do infrator é acatar e sofrer passivamente a pena que lhe foi imposta, sem voz ativa no processo. Sem voz ativa neste processo está também a vítima, aquela que verdadeiramente sofreu o delito, assim como a sua família e também a família do infrator e a comunidade local; nenhuma destas pessoas existe no sistema penal da justiça retributiva.

O objetivo da justiça retributiva é que o infrator sofra na sua pele o dano que causou ao Estado, que seja punido conforme a gravidade do seu ato, que a sociedade seja defendida dele, privando-o da capacidade de cometer novos delitos e, por fim, que todos em geral em virtude desta punição sejam dissuadidos de cometer aquele ou iguais crimes. Esta dissuasão era a função das crucificações romanas à beira dos caminhos.

Justiça reparadora na Bíblia
Porventura me hei de comprazer com a morte do pecador - oráculo do Senhor Deus - e não com o facto de ele se converter e viver? Ezequiel 18, 23

O caráter restaurativo da justiça bíblica é já evidente ao nível macro teológico da Bíblia, desde o princípio até ao fim. Para a Bíblia, o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus; com o delito dos nossos pais Adão e Eva, perdemos a semelhança, embora retendo a imagem. O assunto único da Bíblia é a história da salvação ou redenção ou, melhor dizendo, da restauração da dignidade que o género humano possuía antes, da sua semelhança com Deus.

Como vimos na justiça retributiva, a vítima, a sua família assim como a família do infrator e a comunidade local desaparecem, ao passo que na justiça reparadora ganham protagonismo. Na história da salvação, Deus é a vítima que se compromete a fazer tudo o que for necessário para restaurar a dignidade anterior da humanidade, como sugere a parábola do filho pródigo - e reparar o dano feito.

Para além da macro-história da salvação, já no Antigo Testamento encontramos elementos de justiça reparadora: em Números 5,6-7 Levítico 6, 1-7 os que ofendem devem reconhecer o erro, sentir remorso, confessar o pecado, restituir à vítima, agregando uma compensação.

Antes, porém, de chegar a fé, estávamos prisioneiros da Lei, estávamos fechados, até à fé que havia de revelar-se. Deste modo, a Lei tornou-se nosso pedagogo até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Uma vez, porém, chegado o tempo da fé, já não estamos sob o domínio do pedagogo.  Gálatas 3, 23-25

Se Caim foi vingado sete vezes, Lamec sê-lo-á setenta vezes sete (Genesis 4, 24) – O objetivo da lei é evitar a escalada descontrolada da violência. Mas não era a intenção de Deus que a lei fosse uma solução permanente; por isso mesmo, Jesus, em Mateus 5, 38-48, revoga e substitui a lei de olho por olho substituindo-a por um sistema superior de perdão incondicional e amor ao inimigo, substituindo também a declaração de extrema violência de Lamec, pelo perdoar 70 vezes sete. (Mateus 18, 22)

 Estará então a Lei contra as promessas de Deus? De maneira nenhuma! Pois, se tivesse sido dada uma lei que fosse capaz de dar a vida, a justiça viria realmente pela Lei. Gálatas 3, 21

Para Paulo é Jesus que dá a vida; a retribuição e o castigo não são transmissores de vida pois só oferecem consequências negativas aos atos ofensivos, mas não têm nenhum poder para mudar os corações, para curar. A justiça reparadora, sana e cura, pois, a união com Cristo transforma-nos. A justiça retributiva não tem capacidade para nos fazer santos por isso não é, nem pode ser, o último plano de Deus. De facto, depois da vinda de Cristo, continuar a guiar-se pela lei é contraproducente e só faz mal.

Eu, sem a lei, estava vivo outrora. Mas, ao chegar o mandamento, ganhou vida o pecado e eu morri. E deparei-me com isto: o mandamento que me devia levar à vida, esse mesmo levou-me à morte. É que o pecado, aproveitando-se da ocasião dada pelo mandamento, seduziu-me e deu-me a morte, por meio dele. Romanos 7, 9-11

Qualquer coisa boa pode tornar-se má; a família é supostamente um lugar onde nos sentimos seguros e amados, mas também pode ser profundamente abusiva e deixar cicatrizes devastadoras. A Religião e a Lei, por si só, também são boas, mas, tal como a família, também podem tornar-se abusivas. Vemos esse abuso nos fariseus que Jesus confronta continuamente. Paulo era também ele um fariseu até se converter e tomar o caminho de Cristo.

Concluindo: a justiça retributiva sempre existiu; a Lei apareceu para evitar a escalada da violência. No entanto, como Paulo nos diz, a Lei era só um pedagogo; o plano definitivo de Deus é a justiça reparadora em Cristo. Jesus não acusa nem condena, restaura a saúde espiritual, moral e física das pessoas que vai encontrando no caminho; assim faz com Zaqueu, a pecadora apanhada em adultério, o paralítico, os leprosos, etc.

Como funciona a justiça reparadora
O livro de Howard Zehr, intitulado “A new focus for crime and justice” de 1990, é considerado como sendo o primeiro a articular de uma forma sistemática esta teoria. É certo que o conceito vem de trás e, como Zehr reconhece, devido crédito deve ser dado à prática da justiça nas tribos indígenas do Canadá, Estados Unidos e Nova Zelândia.

O sistema penal não resolve nenhum problema e cria outros, enche as prisões de pessoas, cria marginais e “personas non gratas” na sociedade que tarde ou cedo voltam a transgredir. O sistema penal é um sistema que produz muito mais dor e sofrimento e até violencia que a violência que pretende combater. A vingança não é justiça e a punição do infrator, por mais dura que seja, não traz nenhuma satisfação à vítima; impor a dor a outra pessoa não faz desaparecer a nossa dor, nem a diminui.

Para a justiça reparadora, delito é toda a ação que causa dano a uma pessoa. É um conflito interpessoal e, mais que uma transgressão às leis, é um malefício causado à vítima e à comunidade em geral. Se o delito tiver sido cometido contra a comunidade e uma pessoa concreta no seio dessa comunidade e não contra uma entidade abstrata como é o Estado, é na comunidade que o problema deve ser resolvido. Como diz o povo, “A roupa suja lava-se em casa, não fora”.

O lugar onde se aplica a justiça retributiva é o tribunal e a prisão; para a justiça reparadora, o lugar é o centro comunitário onde o infrator, a sua família e amigos se encontram com a vítima, com a família e amigos desta e com outras pessoas relevantes da comunidade à qual ambos pertencem. Curiosamente, nos lugares de aplicação da pena de morte estes encontros também se dão, quando os familiares da vítima vão assistir à macabra liturgia da execução do criminoso, mas são bem diferentes e bem tristes…

Os encontros da justiça reparadora são voluntários, devem decorrer no respeito mútuo, em clima de honestidade e humildade. O mediador ou facilitador deve encontrar-se com as partes em separado para preparar o encontro.

A justiça reparadora visa ajudar na recuperação da vítima e reintegrar o infrator na sociedade, tendo em conta a participação e mediação da comunidade. Como ferramenta, usa-se o diálogo e o encontro entre as partes direta ou indiretamente envolvidas. Para a justiça retributiva só havia duas instâncias: o Estado e o infrator. Para a justiça reparadora as instâncias são três: a vítima, o infrator e a comunidade.

VÍTIMA
O Estado deixa de usurpar o papel da vítima; esta volta a ter protagonismo, expressa as dores que lhe ocasionaram o delito, procura que o dano seja reparado e que não volte a acontecer. Tem a palavra a vítima, a pessoa que verdadeiramente sofreu, foi lesada e está ainda em sofrimento. O Estado não foi ofendido e não sofreu realmente, pois a dor não se pode delegar. A vítima explica, face a face, como o crime afetou a sua vida e mostra o dano que causou.

A finalidade é reparar o mal feito, dando voz à vítima que expressa os seus sentimentos e as suas necessidades, levando o infrator a reconhecer o mal e a fazer algo pela vítima, de forma a não voltar a ofender. O objetivo é conseguir a reconciliação e especificar o que o transgressor deve fazer para recompensar a vítima.

Vejamos como funciona o papel da vítima no contexto da justiça reparadora no exemplo que se segue: uma criança cheira mal na escola e por isso é vítima de “bullying” por parte dos seus colegas. No âmbito da justiça retributiva, estes colegas vão ser punidos, o que provavelmente nada vai resolver e, passado algum tempo, estes voltam a reincidir ou outros fazem-no no seu lugar.

Ao contrário, no âmbito da justiça reparadora, o “bully” e a sua vítima, além de outras pessoas das respetivas famílias e da escola, assim como líderes da comunidade, vão ser convocados para uma reunião. O transgressor fica a saber a razão pela qual a sua vítima cheira mal; é um menino pobre, de um bairro de lata, não tem eletricidade nem água corrente em casa.

O infrator e a sua família vão ter uma compreensão mais profunda do problema que está por trás daquela situação de conflito, e desta reunião pode sair a possibilidade de mobilizar as forças sociais para procurar uma solução, na raiz do problema. No âmbito da justiça retributiva não chegaríamos tão longe: ela não resolve nada e pode criar mais problemas, como fazer aumentar a violência se tiver havido exagero, na aplicação da punição.

Na justiça retributiva, a vítima é a figura central do processo e não uma mera expetadora ou testemunha da acusação. Se desempenhou um papel de protagonista no crime que sofreu, deve poder assumir o papel de protagonista na resolução do conflito ou na cura da ferida que lhe foi desfechada. Neste processo, ela tem a oportunidade de revelar a sua dor, o seu sofrimento, os danos que lhe foram causados.

No encontro entre o transgressor e a vítima no seio da comunidade, os dois têm a possibilidade de se reconhecer mutuamente como pessoas humanas e não apenas como vítima e transgressor. Neste encontro humano, o crime é visto com uma luz nova tanto pelo transgressor como pela vítima. Esta luz nova que é o crime cometido pelo transgressor no contexto da sua vida, assim como o mesmo sofrido pela vítima no contexto da sua vida, vai levar à cura psíquica e emocional de ambos.

No sistema retributivo, a vítima é ignorada, a sua dor e sofrimento ficam contidos, reprimidos, a ferida escondida. O sistema restaurador constitui uma terapia, tanto para o transgressor como para a vítima - esta tem oportunidade de dar voz à sua dor, num espaço protegido diante de pessoas significativas e não de desconhecidos curiosos, tem a oportunidade de expressar medos, temores,  mal-estar, sofrimento e raiva, assim como sentimentos e perguntas relativos ao transgressor.

TRANSGRESSOR
Entende a vítima, reconcilia-se com esta e repara o dano. O réu fica a saber o impacto real da sua ação, coisa que não acontece na justiça retributiva. Assim, mais facilmente é responsabilizado, coisa que raramente acontece no sistema retributivo, onde procura provar a sua inocência ou fugir à justiça.

A justiça reparadora deposita grande esperança no encontro entre a vítima e o infrator. Um crime é sempre um encontro desumano e desumanizante entre duas pessoas, uma vez que estas se encontram superficialmente descontextualizadas. O encontro procura colocar as pessoas no seu ambiente vital com as suas relações. Vejamos no seguinte exemplo como o infrator pode mudar perante um conhecimento mais profundo da sua vítima e de como o seu crime tocou negativamente a vida de muitas pessoas.

Um jovem que mata um taxista e é julgado no contexto da justiça retributiva, nunca chega a conhecer a vítima e o seu ambiente, apenas vai ser punido e mais nada. Pelo contrário, na justiça reparadora ele conhece melhor a dimensão do seu crime: na verdade, ele matou um taxista que era casado e que deixa uma viúva sozinha a criar 8 filhos. A perceção clara do sofrimento que o criminoso causou tem um efeito interno de transformação, já que apela obrigatoriamente à sua compaixão, à humanidade que decerto deve possuir.

Ao contrário da justiça retributiva, pela qual ele nem sabia a magnitude do sofrimento causado nem lhe era pedido que reparasse os danos, na justiça reparadora, pode participar ativamente, ajudando a resolver o problema que o seu ato criou e até mesmo a mudar a sua vida neste processo. No âmbito da justiça retributiva, ficaria na prisão matutando no que correu mal, no âmbito da execução do crime que ele tinha idealizado como perfeito, como se deixou apanhar ou o que podia ter feito para fugir à justiça.

Na justiça reparadora, o transgressor tem a possibilidade de conhecer a vítima, de a olhar nos olhos e avaliar todas as consequências do seu crime, de o avaliar à luz das circunstâncias - tanto das suas como transgressor, como das da vítima. Tem a possibilidade de se arrepender, de se reconciliar com a vítima e consigo mesmo e de reparar os danos.

Para a justiça retributiva, o crime é uma infração à lei, a responsabilidade é exclusivamente individual, os protagonistas são o transgressor que infringiu e o Estado que julga e aplica o castigo correspondente, o procedimento é adversarial, ou seja, o réu procura defender-se e provar a sua inocência, mesmo sabendo-se culpado, para que o Procurador não consiga provas que o incriminem. Todo o processo acontece fora da comunidade, num ambiente artificial e referindo-se a algo que ocorreu no passado; o presente e o futuro não contam.

Para a justiça reparadora, o delito não é uma infração à lei, mas sim um conflito entre duas pessoas, a responsabilidade não é só individual, mas também social, pois o infrator não é uma ilha, vive em relação com a sua família e amigos, no seio de uma comunidade concreta. Os protagonistas são a vítima, o transgressor e a comunidade; a metodologia seguida é o diálogo e encontro entre pessoas; o objetivo é resolver o conflito, apurar e assumir as responsabilidades e reparar os danos. O lugar onde este processo se dá é o centro comunitário e não o tribunal e tem em conta que o ser humano não é só passado, mas também presente e futuro.

COMUNIDADE
Acompanha, facilita o processo e vela pelo cumprimento das condições pactuadas entre o réu e a vítima. Na justiça retributiva, o Estado usurpa o papel da vítima e da comunidade, só ele atua, só ele tem papel ativo na solução do problema. Na justiça reparadora, o problema é resolvido onde surgiu e pelos que o criaram e junto dos que o sofreram. No diálogo entre as partes, a comunidade é mediadora na reconciliação e facilita o processo.

Em conclusão, na justiça retributiva o Estado assume o papel de vítima abstrata e pune o infrator. Na justiça reparadora interagem a vítima, que expõe a sua dor e os danos causados, o infrator, que se apercebe da magnitude do seu ato e se compromete a repará-lo, e a comunidade, que arbitra, medeia e facilita esta relação que é reparadora tanto para a vítima como para o infrator.

Fazem parte da comunidade a família, tanto da vítima como do transgressor, os seus amigos e todos os que fazem parte do círculo de convivência da vítima e do transgressor pois ambas contribuíram diretamente para a educação de ambos e frequentemente estão, ainda que muito indiretamente, envolvidas no conflito. A comunidade é formada por todos os que partilham o mesmo espaço geográfico, tanto da vítima como do transgressor, trabalho, igreja, vizinhos, rede de serviços, médicos e outros.

Um novo contrato social
Acima ficou dito que a justiça retributiva, tal como a conhecemos, começou a funcionar já no século XIII com o contrato social que confiscou os conflitos entregando-os ao Rei ou ao Estado, assumindo este o papel da vítima, sendo o corpo de delito a transgressão de uma lei.

A justiça reparadora requer um novo contrato social segundo o qual o povo, a comunidade, não abdica do direito de julgar os crimes cometidos no seu seio. Em todas as culturas tribais há um conselho de anciãos que decide sobre os conflitos que surgem no interior da comunidade, de forma que estes não tenham que chegar aos tribunais que estão cheios de processos, o que torna a justiça demorada e, consequentemente, injusta.

Fundamentalmente, trata-se aqui de fazer uso do princípio de subsidiariedade que é a emenda 14 à Constituição dos Estados Unidos e uma das normas da União Europeia consagrada pelo Tratado de Maastricht no artigo 5. O Princípio de Subsidiariedade não nasceu na política; foi decalcado da doutrina social da Igreja e apareceu pela primeira vez mais na encíclica “Quadragesimo anno” do papa Pio XI de 1931.

Fundamentalmente, este princípio estipula que os problemas devem ser resolvidos onde surgem, pelas autoridades locais, e que o Estado só deve intervir quando se esgotam as soluções a nível local. A justiça restaurativa que se inspira na prática de tribos indígenas, tanto no Canadá como noutros países, é uma aplicação deste princípio e tem subjacente um novo contrato social: devolver os conflitos aos seus protagonistas, no seio da comunidade onde ambos vivem.

“Os sobreviventes de uma violação devem ocupar o assento da frente” são palavras de Marlee Liss, vítima de violação, cujo caso relatamos a seguir e, que encontrou recuperação e cura na justiça reparadora, depois de ter experimentado as deficiências da justiça retributiva, na qual a vítima não tem voz nem voto num assunto que é seu e de mais ninguém.

O caso de Marlee Liss
No dia 11 de novembro de 2019, Marlee Liss de 24 anos de idade deu uma entrevista no canal de televisão CTV acerca da sua organização educacional sobre justiça reparadora, organização que ela fundou depois de ter passado pelo trauma de ter sido violada e de não ter encontrado sanação no sistema de justiça retributiva.

Marlee afirma que, no seu caso, o processo do julgamento criminal no tribunal foi quase tão mau e tão traumático como a própria violação. “Sentar-me no banco dos réus para ser bombardeada com perguntas invasoras da minha privacidade e intimidade, diante de gente desconhecida que manifestava uma curiosidade mórbida em relação aos pormenores da violação, com os quais pareciam deleitar-se, é uma tortura que não desejo a ninguém. Senti-me nua ante os olhos inquisitivos de tanta gente e para cúmulo não acreditaram em mim, obrigando-me a revelar mais pormenores e cada vez mais íntimos.”

“É um grande erro” diz Marlee “fazer da justiça um sinónimo de castigo, deveria ser sinónimo de paz e saúde, de reconciliação. No processo de justiça reparadora, o transgressor fica livre, não vai para a prisão, o que leva muita gente a pensar que, por um lado, a justiça não foi feita, por outro, não é seguro que o transgressor fique livre pois pode reincidir.”

A estas duas questões Marlee responde de forma cândida e taxativa “Duvido que todos os sobreviventes de uma violação se sintam curados pelo facto de os seus agressores terem sido condenados a anos de prisão”. Como atrás dissemos, a vingança não é saúde, nem dá saúde. Com a prisão do transgressor, depois de ter passado aquele primeiro sentimento de satisfação por se sentir vingada ao ter infligido sofrimento ao seu agressor, a vítima continua doente, o trauma persiste.

A este trauma junta-se a ansiedade em relação ao futuro, quando o transgressor sair da prisão. A vingança é violenta e, como tal, engendra mais violência. A vítima vingou-se, encarcerando o transgressor, este, depois de anos de prisão, pode agora considerar-se vítima do sistema injusto e vingar-se sobre a pessoa por ele violada ou sobre outra pessoa.

Portanto, em relação à segurança da comunidade em relação ao transgressor, Marlee diz que “a justiça reparadora, longe de ser perigosa, aumenta a segurança pública. Há muitas estatísticas que mostram que o encarceramento leva à reincidência, a mais violência e reincidência”. De facto, Marlee foi vítima de reincidência do seu violador que já tinha cumprido pena na prisão por uma violação anterior.

Se o processo de justiça reparadora for bem conduzido, sobretudo se o transgressor conseguir sentir empatia pelo sofrimento e dor da vítima, se conseguir vê-la como pessoa, como uma irmã sua e não como objeto de prazer, e se for minimamente humano, ou seja, se não tiver graves deficiências psicológicas, é certo que vai sentir arrependimento e compaixão.

Quando, diante da comunidade, a vítima se sente ouvida, entendida na sua dor, quando parte desta dor é partilhada pelo transgressor, genuinamente arrependido ali presente diante dela, e disposto voluntariamente a oferecer compensação pelos danos infligidos, a vítima experimenta sanação e uma grande paz interior, pelo que perdoar o ofensor é a coisa mais natural do mundo. Por outro lado, é este perdão que vai fazer com que o transgressor se perdoe a si mesmo, encerre o caso e não seja perseguido pela culpa pelo resto dos seus dias.

Marlee Liss, no seu processo de justiça reparadora, sentou-se diante do seu violador que a olhou olhos nos olhos e reconheceu o seu erro. No momento em que ele se responsabilizou pelo que tinha acontecido, Marlee diz que se desfez em lágrimas e experimentou uma grande paz interior. Em dado momento, o infrator até afirmou que queria colaborar para acabar com a violência sexual no mundo.

O processo de Marlee Liss deu-se em Toronto. Foi usada a abordagem indígena da justiça reparadora como alternativa ao sistema de justiça criminal do Canadá, concentrando-se na reparação em vez da punição. Aconteceu num centro comunitário, ao qual Liss chamou de santuário de sanação; os mediadores sentaram-se em círculo; da parte de Liss estavam o seu advogado, a sua irmã e a sua mãe; da parte do infrator estava o seu advogado e um dos seus amigos. Foram 8 horas de extenso diálogo com um final feliz. O processo penal legal levaria muitas mais horas e muitos mais dias.

Em relação à identidade do seu violador, Liss disse o seguinte: “As pessoas que cometeram um crime sexual são muitas vezes ostracizadas na sua comunidade. Se a vítima está satisfeita com o resultado do processo, e a polícia e o Procurador da Coroa decidem não apresentar queixa contra o indivíduo, é lógico que a sua identidade fica protegida".

Conclusão – O encontro humano e o diálogo entre a vítima e o transgressor, com a mediação da comunidade onde se deu o delito e se criou um conflito, são a única forma de curar o passado de ambos, reconciliando-se no presente para assim poderem olhar o futuro com esperança.  

Pe. Jorge Amaro, IMC





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