15 de outubro de 2020

3 Únicos pronomes pessoais: Eu - Tu - Nós

Há muitas formas pelas quais uma cultura ou civilização expressa a sua idiossincrasia. Algumas dessas formas são a arquitetura, a escultura, a pintura, a música. Mas a mais importante destas formas é a literatura, pois por ela ficamos a conhecer a forma de pensar, a filosofia de um povo. A literatura não existe sem a língua; por isso, a língua é a alma de uma cultura.

Podemos determinar a personalidade de um povo, o lugar onde habita, pela forma como fala. As línguas dos países quentes são mais vocálicas, enquanto que as línguas dos países frios são mais consonânticas. Alguns linguistas dizem que esta teoria carece de base científica, embora seja evidente até para um surdo que as línguas bantu subsarianas são mais vocálicas do que as línguas eslavas e escandinavas.

Numa língua vocálica, a boca abre-se mais; numa língua consonântica, abre-se menos. É certo que a razão não pode ser outra senão a diferença de temperatura. Esta mesma diferença de temperatura já é responsável pela grossura dos lábios: os povos dos trópicos têm os lábios grossos, os eslavos, por exemplo, quase não têm lábios.

Línguas “pro-drop” e línguas “non pro-drop”
As línguas “pro-drop” (ou de sujeito nulo) são aquelas como o português, o espanhol e o italiano que têm a possibilidade de omitir o uso do pronome pessoal, pois este já está identificado na forma verbal usada na frase. As línguas “non pro-drop” (de sujeito expresso ou expletivo) – por exemplo, o inglês, o francês, o alemão e outras germânicas - são as que não podem omitir o uso do pronome pessoal por empregarem formas verbais mais pobres, precisando assim obrigatoriamente do pronome para a compreensão da frase.

O personalismo de Emanuel Mounier considera o Homem como um ser subsistente e autónomo e, ao mesmo tempo, essencialmente comunitário. A pessoa só se desenvolve como pessoa no seio da comunidade e no confronto com os outros indivíduos da comunidade ou grupo. Neste sentido, podemos concluir que o individualismo ou o egoísmo não é definitivamente a melhor via para o crescimento de um indivíduo como pessoa.

Assim se conclui que o EU, o TU e o NÓS, não existem independentemente um do outro. É o confronto e a relação que o Homem estabelece com o seu semelhante, e não com as coisas, que o constitui como pessoa. O EU não existe sem o TU e vice-versa, os dois não existem sem o NÓS, pois são precisas duas pessoas para que se crie uma, e o NÓS, mais que a soma do EU e do TU, é o amor, a harmonia e a cooperação entre o EU e o TU. Todos os outros pronomes pessoais são supérfluos e discriminatórios.

Por uma gramática cristã
Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar já não existia. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém (…) porque as primeiras coisas passaram. O que estava sentado no trono afirmou: «Eu renovo todas as coisas.  Eu sou o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim. Apocalipse 21, 1-2. 5, 6

Tal como em Portugal, com a adesão ao cristianismo, mudamos o nome dos dias da semana e deixámos de ser adoradores da Lua à segunda-feira, de Marte à terça-feira, de Mercúrio, à quarta-feira, de Júpiter à quinta-feira, de Vénus à sexta-feira, de Saturno ao sábado e do Sol ao Domingo, enquanto que o resto dos povos da Europa continuam a adorar estes astros como o deus de cada dia, assim deveríamos também cristianizar outros aspetos da nossa língua e da nossa gramática.

A língua inglesa possui nove pronomes pessoais, contando com um pronome impessoal – “It” para designar as coisas ou animais; as outras línguas europeias possuem 8 pronomes pessoais: eu, tu, ele, ela - nós, vós, eles, elas. Se verdadeiramente quiséssemos adequar a gramática à fé e humanismo cristãos, deveríamos viver como se só houvesse três pronomes, eu – tu – nós. Todos os outros pronomes chamo-os eu, não de pronomes pessoais, mas sim de pronomes discriminatórios.

No Reino de Deus, na nova criação que Jesus veio inaugurar com a sua vinda ao mundo, só precisamos de três pronomes, pois só há três entidades verdadeiramente distintas entre si. EU sou diferente de ti, TU és diferente de mim, os dois formamos um NÓS. Ele ou ela é um TU para mim; não vejo razão para existirem estes pronomes ou mesmo para existirem os pronomes pessoais no plural. Os outros, sejam eles, elas ou vós, fazem sempre parte do NÓS, são também nossos irmãos.

Não vejo nenhuma diferença entre o TU e o ele/ela. A única razão para existirem estes pronomes é para discriminar as pessoas a quem os aplicamos. Para mim, só existe o pronome TU. Por outro lado, também não vejo nenhuma diferença entre o NÓS e o VÓS, eles ou elas; a única razão da sua existência é encontrar neles diferenças que os distinguem ou discriminam de nós. Viveríamos melhor se estes pronomes não existissem, pois, em vez de facilitar a nossa vida, complicam-na. Obrigam-nos a encontrar diferenças onde elas não existem ou as que encontramos são as que já percebemos entre o EU, TU e NÓS.

EU (EGO)
EU, é a unidade dinâmica que constituiu um indivíduo consciente da sua identidade, separado de tudo o que o rodeia, natureza, plantas, animais, coisas e das outras pessoas semelhantes a si, mas diferentes de si. A longa evolução da humanidade até à consciência de si mesma é recapitulada em cada ser humano, desde a sua conceção até ao dia por volta dos seis anos em que a criança se reconhece como pessoa e tem um pensamento autorreflexivo.

Evolução da inconsciência à autoconsciência
A “res cogitans” referindo-se à mente, ao pensamento, ao espírito e à alma, e a “res extensa” referindo-se ao corpo e à matéria representam um dualismo filosófico que tem a sua origem na Grécia e que atingiu o seu expoente máximo em Descartes (1637), que afirmou que a relação do corpo com a alma é como a do cavaleiro e cavalo.

Esta forma de ver a relação entre o corpo e a alma ou entre a parte física do nosso ser e a parte psíquica, espiritual e ética é pré-científica e curiosamente antibíblica também. A visão antropológica do ser humano na Bíblia está mais próxima da ciência de hoje que a filosofia grega, o pensamento de Descartes e o pensamento da religião cristã dos nossos dias que é mais cartesiano que bíblico, apesar de continuarmos a dizer que acreditamos na ressurreição do corpo.

É este mais um caso em que podemos dizer que a Bíblia tinha razão: para a ciência de hoje, como para a Bíblia, não existe corpo sem espírito nem espírito sem corpo, os dois estão intimamente unidos. A ideia de que a alma pré-existe ao corpo, encarna num corpo e o anima e depois desencarna desse corpo e continua a sua existência eterna, está dogmaticamente impregnada na teologia cristã assim como na reencarnação das religiões do Extremo Oriente. Embora poucos se arrisquem a contestá-la, acho que é mais um dos falsos mitos que fazem com que a nossa fé seja menos plausível para mentes científicas e modernas.

Entendemos que a história da evolução da inconsciência até à consciência de si mesmo se desenrola em paralelo com o desenvolvimento do cérebro reptiliano - mamífero – neocórtex, assim como a emancipação ou corte do cordão umbilical entre o Homo Sapiens e a natureza que o rodeia, etapa descrita na Bíblia no mito da expulsão do paraíso terreno (Génesis 3, 22-23) ou no mito da caixa de Pandora e no roubo do fogo aos deuses, descrito na mitologia grega. A partir deste momento, a natureza deixa de ser para o Homem uma mãe e passa a ser uma madrasta, à qual o Homem arranca o seu magro sustento, a duras penas.

A autoconsciência do Homo Sapiens foi-se desenvolvendo na relação entre o ser humano, o seu ambiente e os seus semelhantes, os outros seres humanos. Aqui entramos numa dinâmica de “o que nasce primeiro, o ovo ou a galinha”. Suponho que as relações com as coisas e os instrumentos criados para um efeito, assim como a relação com os seus semelhantes, obrigaram o cérebro a desenvolver-se. Consequentemente, um cérebro mais desenvolvido leva a novas descobertas no campo das relações com a natureza, do progresso científico. É preciso inteligência para utilizar instrumentos, mas o seu uso também contribui para o desenvolvimento da inteligência. O processo é bidirecional e ocorre uma retroalimentação positiva de um em relação ao outro.

No campo das relações humanas, a aquisição da linguagem parece ter desempenhado um papel crucial na evolução das relações humanas e da inteligência em geral. Por exemplo, houve um tempo em que a inteligência humana era tão diminuta que o ser humano não sabia de onde vinham os bebés, porque entre o efeito e a causa havia 9 meses de separação. Por este motivo, o ser humano não era capaz de estabelecer uma relação causa – efeito. Isto apenas aconteceu até o cérebro se desenvolver mais.

A ontogénese recapitula a filogénese
Durante nove meses vivemos em simbiose com a nossa mãe, à qual estamos ligados pelo cordão umbilical. Nesse tempo não há distinção entre nós e a natureza que nos envolve, somos unos com ela. Estes 9 meses podem simbolizar os milhões de anos em que o ser humano viveu em estreita relação com a natureza, como acontece ainda hoje com qualquer animal. Podemos concluir que nesse tempo o pronome EU não existia; este só passou a existir quando o Homo Sapiens se emancipou da natureza. Para o ser individual, o começo dessa emancipação é o dia do nascimento.

Até aos 3 anos, a criança fala de si mesma na terceira pessoa e, na maior parte dos casos, em vez do pronome pessoal usa o seu nome próprio. Por exemplo, em vez de dizer “eu não gosto de sopa” diz “o Pedro não gosta de sopa.” A partir desta idade, a criança consegue identificar-se a si mesma, é capaz de olhar para o espelho e ver-se a si mesma, ao contrário dos animais que parecem ver um seu semelhante. Outro sintoma de que a criança começa a desenvolver a autoconsciência é o aparecimento de emoções como o orgulho, a culpa e a vergonha. A completa autoconsciência chega entre os 5 e os 6 anos.

O TU - coisa e o TU - pessoa
Martin Buber fala do EU relacional, na relação com as coisas: EU - isso, uma relação entre um sujeito e um objeto, e na relação com as pessoas o EU - TU, a relação entre dois sujeitos, uma relação de mutualidade e reciprocidade. A mais pura relação de tipo EU - Tu, acontece entre o Homem e Deus, pois frequentemente as outras relações podem ser pervertidas e a pessoa relacionar-se com o seu semelhante em modo de EU - Isso, instrumentalizando e coisificando as pessoas. Outo tipo de perversão é a relação com as coisas em modo de EU - Tu, personalizando e espiritualizando as coisas.

As coisas foram feitas para ser usadas, essa é a verdade da nossa relação com as coisas. Por isso, qualquer desenvolvimento de afetividade com as coisas é um fetiche, é um voltar ao animismo, é reconhecê-las como pessoas. Por outro lado, é esvaziarmo-nos da nossa espiritualidade para espiritualizar as coisas, pois toda a relação afetiva é uma relação simbiótica - algo de mim passa para ti, algo de ti passa para mim. Isto está correto na relação com pessoas, mas não com coisas, já que não me dignifica e ainda me despersonaliza.

No evangelho vemos como o jovem rico (Lucas 18, 18-30) ficou triste ao não aceder ao convite de deixar tudo e seguir Jesus, pois não conseguiu desprender-se das riquezas. Contrasta com esta tristeza a felicidade de Zaqueu por ter conseguido desprender-se das suas riquezas.

Zaqueu (Lucas 19, 1-10), tal como o jovem rico, buscava Jesus porque suspeitava que a felicidade não estivesse nas riquezas. De facto, apesar de estar cada vez mais rico não estava cada vez mais feliz. Tal como no caso do jovem rico, Jesus amou incondicionalmente Zaqueu e escolheu ficar na sua casa entre tantas casas de Jericó, escolheu ficar na casa do maior pecador da cidade.

Este gesto de Jesus ajudou Zaqueu a dar o passo de partilhar, de se libertar do jugo das riquezas, ao descobrir que há mais alegria em dar que em receber (Atos dos Apóstolos, 20, 35). Ao fazer esta descoberta, Zaqueu que tinha a estatura de uma criança, cresceu para a estatura de um adulto. Pois esta é uma das diferenças entre as crianças e os adultos; as crianças encontram mais alegria em receber que em dar, enquanto que os verdadeiros adultos encontram mais alegria em dar.

São necessárias duas pessoas humanas para criar uma terceira a partir deste dado, tudo é ao mesmo tempo social e individual. São necessárias duas pessoas para que uma seja feliz: a pessoa humana é feliz ou infeliz sempre no confronto com o outro; não é possível ser feliz sozinho, mas é possível ser infeliz sozinho. A felicidade individual passa pelo outro, pelo tu.

Os prazeres procuram-se diretamente, a alegria ou a felicidade que é a alegria prolongada no tempo não se consegue diretamente. Ao começar um novo dia, posso dizer “vou ter este ou aquele prazer”, mas não posso dizer que vou estar alegre. A alegria ou felicidade é o retorno do que eu faço em prol do outro. A felicidade ou alegria é o efeito secundário de um ato em prol do bem geral ou do bem particular do outro.

TU (ALTER-EGO)
«Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu: «O primeiro é: Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes.» Marcos 12, 28-31

Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Significa que devo manter uma distância em relação às coisas, devo transcendê-las porque não estão ao meu nível: o amor é devido ao Criador e não às criaturas. Só estamos livres de tudo e de todos se amarmos e nos submetermos a Deus.

Quando negamos a Deus, facilmente transferimos o amor que deveríamos ter por Ele para as criaturas, idolatrando-as, ou seja, fazendo delas pequenos deuses ou ídolos. Em meu entender, os ateus e agnósticos facilmente caem na tentação da idolatria e, como o que adoram não é uma única coisa ou realidade, acabam por ser politeístas, ou seja, negam o verdadeiro Deus.

Se com as coisas é virtude estabelecer e manter uma distância, com as pessoas é defeito manter essa distância porque o outro é o meu próximo. O outro é um alter ego, ou seja, para mim, é um TU aqui e agora. É precisamente isso que está implícito na segunda parte do mandamento do amor. Por o outro ser o meu próximo, o meu semelhante, pessoa com a mesma dignidade, de iguais direitos e deveres, o que me é devido a mim é-lhe devido a ele, nos mesmos termos, na mesma qualidade e quantidade.

O Senhor disse a Caim: «Onde está o teu irmão Abel?» Caim respondeu: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» O Senhor replicou: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim.» Génesis 4, 9-10

Porque tinha eliminado o seu irmão, Caim desculpou-se dizendo que não era o guardião do seu irmão; ignorar o nosso irmão equivale a matá-lo na nossa consciência. Sempre devemos saber onde está o nosso irmão, sempre devemos preocupar-nos com ele. Um por todos, todos por um, diz o lema dos Três Mosqueteiros. Não somos ilhas. Como seres indigentes que somos, hoje é o outro que precisa de mim, amanhã serei eu a precisar.

TU ou Ele – Ela – Eles – Elas?
Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: «E quem é o meu próximo?» Tomando a palavra, Jesus respondeu: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante.

Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. (…) e cuidou dele. (…) Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?» Respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» Jesus retorquiu: «Vai e faz tu também o mesmo.» Lucas 10, 25-37

Ao contrário do TU, os pronomes Ele, Ela, Eles, Elas, implicam ou colocam uma distância real ou irreal entre mim e o outro. Para o sacerdote e o levita da parábola, o desgraçado que caiu nas mãos dos salteadores nunca foi um TU, mesmo quando estava dentro do seu campo de visão o que lhes permitia ver as suas feridas, e do seu campo de audição, o que lhes permitia ouvir os seus gemidos e constatar que estava em sofrimento e necessitava ajuda. Para os não solidários, o outro está sempre distante, mesmo quando está perto, porque é sempre um estranho, um estrangeiro, um inimigo, um desconhecido, um ele ou ela, eles ou elas, nunca um TU.

Ele – Eles
Estes dois pronomes, assim como os seus congéneres femininos, implicam, como dissemos, uma distância de nós que é espacial e temporal. Esta distância é temporal na medida em que se trata de pessoas históricas, que já viveram ou que ainda não nasceram. Esta distância esfuma-se e eles transformam-se num TU no momento em que nos relacionamos com eles.

Há quem pense que os pronomes ele, ela ou o “it” neutro do inglês servem para expressar a objetividade. Nós, porém, cremos que as realidades, verdades e objetividades que o NÓS descobre são referidas por artigos e não por pronomes; por isso, não precisamos desses pronomes. Por exemplo, a natureza, a verdade, o amor, o ódio, etc. são entidades abstratas às quais nos referimos com artigos ou sem eles.

Se são pessoas do passado, aprendo com os seus erros e as suas virtudes e feitos históricos, estou unido a elas pelo inconsciente coletivo de Jung. Se são pessoas do futuro, penso no meu legado, no que lhes vou deixar em termos da minha atuação neste mundo, bem como no tipo de planeta que lhes deixo, mais ou menos habitável. O meu esforço por uma sociedade mais justa e um planeta mais limpo faz deles, distantes no tempo, um TU próximo, presente no meu aqui e agora.

Num mundo globalizado como é o nosso, onde sabemos dos acontecimentos não depois de acontecerem, mas quando ainda estão a acontecer, já não há distâncias espaciais. Habitamos todos a mesma casa comum, o planeta tornou-se pequeno e frágil. Neste planeta, onde 1% dos seus habitantes possuem mais de 99% dos recursos, ninguém pode dizer que a extrema riqueza de uns poucos não é inversamente proporcional à pobreza de muitos.

Como alguém disse, a pobreza existe não porque não consigamos alimentar os pobres, mas porque não conseguimos satisfazer a ganância dos ricos. O pobre distante da Etiópia ou do Bangladesh não é um ele ou ela, eles ou elas, é um TU para o qual eu faço parte da solução ou parte do problema - não há uma posição neutra.

Ela – Elas
A história da espécie humana até praticamente aos nossos dias tem sido a de uma ave que voa com uma só asa; talvez seja por isso que andamos em círculos e a história se repete, e repetimos os mesmos erros. Porque só o varão faz história, a mulher não faz parte dela; os seus dotes e talentos estão circunscritos ao mundo doméstico, não são usados na História, na política, na filosofia, na ciência, na sociedade em geral.

Apesar de tantos séculos de evolução social e histórica nas relações sociais, reproduzimos as desigualdades de género que existem nos animais que nos estão mais próximos. Ou seja, usamos o nosso cérebro mamífero e não o nosso neocórtex.

Na língua que se fala na Etiópia, a distinção entre os géneros é ainda mais marcante, pois ao contrário das línguas europeias onde existe uma só forma de TU para ambos os géneros, no amarico existe um TU masculino (Anta) e um TU feminino (Anchi). É certo que a criação desta diferença não é para exaltar as mulheres, mas sim para as dominar.

Numa escola secundária vi este slogan, “profissões baseadas no sexo não têm nexo”. No entanto, criamos trabalhos para homens e trabalhos para mulheres. Neste campo, a religião, pelo menos no que respeita ao cristianismo (e mais em relação ao Islão), em vez de seguir as pisadas do Mestre que foi o maior feminista de todos os tempos no bom sentido da palavra, seguiu o machismo e chauvinismo da sociedade. A Igreja Católica continua a negar às mulheres o acesso ao sacerdócio com desculpas de toda a ordem.

Jesus foi bem diferente, tratou a mulher e o homem da mesma maneira, com se depreende do episódio da mulher apanhada em adultério e arrastada até à sua presença, (João 8,3-8.).

Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher, e disse: Por isso, o homem deixará o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e serão os dois um só? Mateus 19, 4-5. Em relação à criação do homem e da mulher e podendo citar o Génesis 2, 21-22 que diz que a mulher foi criada a partir de uma costela de Adão, Jesus prefere citar Génesis 1, 26-27; não faz, portanto, uma leitura machista da Bíblia.

É o primeiro e único rabino em Israel ou Mestre espiritual na História da humanidade que tem discípulas que o seguiram na sua itinerância, desde o princípio na Galileia até ao fim em Jerusalém (Marcos 15, 40-41, Lucas 8, 1-3). Jesus de Nazaré é o único fundador de uma religião que não discriminou a mulher, nem nunca fez nenhuma afirmação sexista ou negativa contra ela.

Tem encontros a sós, tanto com homens (Nicodemos), como com mulheres (a Samaritana) (João 4, 5-7, 25-27); come com pecadores e prostitutas; deixa-se tocar por elas como é o caso da pecadora que lhe banha os pés com lágrimas e os enxuga com os cabelos (Lucas 7, 36-38). Para Jesus, as mulheres não são motivo de contaminação nem de tentação, e elas sentem-se bem na sua companhia.

Uma mulher derrama perfume nos seus pés, outra chora e limpa-os com os seus cabelos; as mulheres de Jerusalém choram a sua Paixão, uma limpa-lhe o rosto, são testemunhas da sua morte, da sua sepultura e da sua ressurreição.

NÓS
Quando Egerton Young primeiro pregou o Evangelho aos peles-vermelhas de Saskatchewan, a ideia da paternidade de Deus fascinou de imediato estas gentes que até então tinham visto Deus apenas no trovão, no relâmpago e no estrondo de tempestade.

Ao ouvir o missionário invocar a Deus como pai, um velho chefe exclamou: "Ao falares do Grande Espírito como acabas de fazer, será que te ouvi dizer, 'Pai Nosso'?" "Sim," disse Egerton Young. "Isso é muito novo e doce para mim," continuou o chefe. "Nós, índios, nunca vimos o Grande Espírito como Pai. Ouvíamo-lo no trovão ou víamo-lo no raio, na tempestade e nos nevões, e ficávamos aterrorizados com medo.”

“A noção de que o Grande Espírito é nosso Pai, é nova, mas sublime para nós.” O velho chefe pausou, parecendo meditar… foi então, que de repente, num vislumbre da glória, a sua face se iluminou como num relâmpago e clamou. "Oh Missionário, disseste que o Grande Espírito é teu Pai?" "Sim", disse Egerton. "E," continuou o chefe, " também afirmas que Ele é Pai dos índios?" "Evidentemente", disse o missionário. "Então", exclamou o ancião, como se tivesse feito a maior descoberta, "tu e eu somos irmãos!"
William Barclay commentary of the New Testament (comentário do Novo Testamento)

O VÓS discriminativo
(...) todos quantos em Cristo fostes batizados, de Cristo vos revestistes. Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. Gálatas 3, 27-29

Instintivamente, o pronome “NÓS” é música para os nossos ouvidos, soa bem; invoca em nós sentimentos de comunidade, colaboração, cooperação, aceitação, amor, harmonia, paz. Ao contrário, o pronome “vós” que invoca oposição, soa mal, invoca guerras, polémica, discussão, rivalidade diferença, discriminação, inimizade.

Alguém dizia que um camelo é um cavalo desenhado por um grupo de pessoas. O “nós” pode ser tudo o que acima está descrito, um triângulo de amor e fraternidade, mas também pode ser um triângulo das Bermudas, como referi no texto sobre o triângulo dramático de Karpman, onde as pessoas, em vez de se encontrarem, se perdem e dissolvem numa relação de mútuo abuso. O homem é sempre um ser social, não há alternativa à comunidade, ou seja, não há outra forma de vida igualmente válida. A alternativa a uma má comunidade, é uma boa comunidade, mas sempre uma comunidade.

Se todos somos irmãos, o VÓS não deve existir, pois aqueles que designamos como “vós” são, como nós, filhos do mesmo Pai, oriundos do mesmo continente - África - e as diferenças que possuímos, sejam de pele, de cor, de formato ou cor do cabelo, de formato ou cor dos olhos ou qualquer outra diferença, dependem de 25 000 anos de adaptação a diferentes meios e não mais que isso. A verdade é que todos vimos de um tronco comum. Qualquer tipo de discriminação é anticientífica, ideológica e tendenciosa e procura diferenças que não existem.

“Narcisismo das pequenas diferenças” – assim chama Freud às diferenças que artificialmente procuramos, como se, para defender a nossa idiossincrasia, tivéssemos que aniquilar a do outro... O mesmo acontece no arquétipo freudiano de ter de matar o Pai para poder afirmar a nossa individualidade. É muito mais o que nos une do que o que nos divide de facto - se houvesse uma ameaça extraterrestre, todos nós, habitantes deste planeta esqueceríamos essas pequenas diferenças e nos transformaríamos rapidamente no que sempre fomos e sempre seremos: um grande NÓS.

Quanto à discriminação religiosa, suponho que todas as religiões buscam um mundo melhor, uma sociedade mais justa e mais fraterna. A razão de ser da Igreja e do cristianismo é ser fermento do Reino de Deus que é precisamente isso: uma sociedade onde reina a justiça e a paz (Romanos 14, 17). A Igreja existe, portanto, para o reino e não para se anunciar a si mesma. Se todas as religiões procuram o mesmo, é mais o que nos une que o que nos desune, pelo que não deveria haver guerras religiosas.

A verdade e a objetividade
A polémica e a discussão são guerras linguísticas; o objetivo não é descobrir a verdade, mas ter argumentos superiores, como quem tem armas superiores para vencer o outro. É importante dar-se conta dos próprios sentimentos quando entramos em conversa com os outros, pois desses sentimentos depende o sentido da conversa, se vai ser diálogo ou discussão.

Diálogo, do grego, significa buscar o sentido ou a verdade por intermédio da palavra. A verdade é única na sua formulação, mas plural no seu descobrimento. A verdade é com um puzzle que deve ser construído e para o qual várias pessoas têm diferentes peças. O erro está em pensar que a minha visão parcial da verdade representa toda a verdade, pelo que procuro impô-la aos outros.

A atitude sine qua non para que haja diálogo entre duas pessoas é a humildade e o entender e aceitar que, se duas pessoas discutem, a verdade está dividida em dois, se três discutem, está dividida em três. A questão está em reconhecer a parte da verdade do outro antes de eu propor a minha, pois cada um tem uma peça do puzzle que é a verdade.

Se o número seis estiver gravado no chão entre duas pessoas, uma vê de facto o seis, mas a pessoa que está do lado oposto vê um 9; quem tem razão? As duas têm razão. A verdade é como um diamante. Imaginemos um diamante no meio de várias pessoas; a visão que cada uma tem é diferente, consoante a luz que penetra no diamante e reflete várias cores; as cores que cada um vê são diferentes, consoante a sua posição. A verdade é a soma de todas as visões ou cores possíveis.

O mesmo acontece com a objetividade que entendemos como sinónimo de verdade. A objetividade, tal como a verdade, é uma realidade abstrata que se deduz ou intui a partir das realidades concretas e observáveis. Tanto uma como a outra podem existir sem sujeitos, mas na sua génese envolveram sujeitos - EU e TU - funcionando como NÓS. A objetividade é um acordo de cavalheiros ao fim de um processo de diálogo.

O NÓS do matrimonio
Amai-vos um ao outro, mas não façais do amor uma prisão; deixai antes que seja um mar ondulante entre as margens das vossas almas. Enchei a taça um do outro, mas não bebais de uma só taça. Parti o vosso pão ao meio, mas não comais do mesmo pão. Cantai e dançai juntos, mas deixai que cada um de vós fique sozinho.

Como as cordas de uma lira estão sozinhas embora vibrem ao som da mesma música. Entregai os vossos corações, mas não ao cuidado um do outro. Pois só a mão da Vida pode conter os vossos corações. E ficai juntos, mas não demasiado juntos. Pois os pilares do templo estão afastados, e o carvalho e o cipreste não crescem à sombra um do outro. Kalil Gibran, O Profeta

Os dois podem até ser uma só carne, como sugere o evangelho (Marcos 10, 8) mas são sempre duas pessoas que não vivem em função uma da outra, mas em função de um objetivo comum para o qual cada uma contribui com a sua individualidade. Amor matrimonial não é os dois olhando um para o outro, isso seria um egoísmo a dois, mas os dois olhando na mesma direção, que pode ser um filho ou qualquer outro plano.

Como diz Gibran com a metáfora das cordas de uma guitarra ou das colunas de um templo, para que a união seja forte, cada um dos dois deve cultivar espaços de individualidade para poder crescer, pois como diz Gibran, o carvalho não cresce bem à sombra do cipreste nem este à sombra do carvalho; os dois precisam do sol direto nas suas folhas para poderem fazer a fotossíntese e viverem. Cada um dos cônjuges precisa de ler os seus livros, cultivar as relações com os seus familiares e os seus amigos. A união vai desaparecer se faltar a liberdade individual e cada um dos cônjuges não se sentir bem como pessoa.

O NÓS da amizade
Conta-se que um macaco e um peixe eram muito amigos um do outro e brincavam no rio todo o dia até que um dia choveu muito, o rio engrossou e o peixe tentava nadar contra a corrente para não ser levado pela água; o macaco viu a situação e foi salvar o seu amigo trazendo para terra. É claro que agora o peixe sem oxigénio debatia-se entre a vida e a morte abanando-se, o macaco ao ver isto disse, “acabo de te salvar a vida e ainda protestas?”

A melhor forma de amizade é ser empático com os nossos amigos: ver a realidade como eles a veem e não tentar impor a nossa ajuda. É chorar com quem chora, rir com quem ri, é colocar-se no lugar do outro. Longe de dar conselhos, a empatia usa mais o silêncio que a palavra, o sentimento que o pensamento.

Empatia é entrar em contacto com o que está vivo na outra pessoa, com o que está a acontecer com ela, é colocar-se no lugar dela. É calçar os seus sapatos, é ver a realidade da perspetiva do outro, vê-la como o outro a vê. Muitas vezes, quando os outros se apercebem de que não estamos a conseguir ligar-nos empaticamente a eles, dizem de forma desesperada "põe-te no meu lugar". Pensando eu que estava a ser empático ao dar conselhos ao meu pai, procurando consolá-lo nos últimos dias da sua vida, ele calou-me dizendo, “bem fala o são ao doente”.

Ao ouvir estas palavras dei-me conta de que estava bem longe de demonstrar empatia pelo meu pai e ele fez-me ver que eu não estava com ele. Ele não precisava de uma solução rápida que sabia não existir, nem de conselhos, mas só de empatia e eu fui incapaz de lha dar. Pensamos que oferecendo soluções, dando conselhos, consolando, fazemos com que o outro se sinta melhor, mas a crua realidade é que, longe de o fazer sentir-se melhor, apenas acrescentamos ao sofrimento.

Pe. Jorge Amaro, IMC.

 

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