Há três coisas que cada pessoa deveria fazer durante a sua vida: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. José Martí, poeta cubano (1853- 1895)
Certas frases ficam famosas porque foram ditas por gente famosa. Qualquer frase dita por Einstein ou Gandhi, por exemplo, fica “ipso facto” famosa porque foi assinada por um homem famoso. Mas muitas dessas frases dizem pouco. São como os quadros medíocres de um pintor famoso, aos quais é atribuído automaticamente um valor intrínseco, acabando por ser vendidos por milhões.
O autor do dito tridimensional que escolhemos para título deste texto não é universalmente conhecido como os autores que mencionamos. Portanto, não foi a sua fama que deu popularidade ao dito, mas foi pelo contrário o dito que deu popularidade ao seu autor.
A popularidade deste dito deve-se ao facto de direta ou indiretamente, apelar à verdade da nossa existência. Somos seres espácio-temporais, ocupamos um espaço durante um breve período de tempo. Por isso a nossa vida precisa de uma justificação, precisa de fazer sentido para nós, para Deus (no caso de sermos crentes) e para o nosso meio social.
É certo que, tal como está formulada, a frase pertence a José Martí; mas a mesma encerra uma ideia que já tinha sido expressa por Maomé muitos séculos antes e na qual o poeta cubano se terá inspirado:
A recompensa de todo o trabalho que realiza o ser humano, finaliza quando este morre, à exceção de três coisas: uma esmola dada continua, um saber ou conhecimento beneficente e um filho piedoso que peça por ele quando este estiver no sepulcro. Maomé
Apesar de a verdade do dito ou a versão original que inspirou Martí ir mais além do que o próprio autor pensou, por ser um pensamento verdadeiramente original e até de alguma forma insólito, é justo que digamos uma palavra sobre a identidade do autor que o popularizou.
Quem foi José Martí
Herói nacional de Cuba e símbolo da luta pela independência de Espanha, é reconhecido como o mais universal dos pensadores da Ilha de Cuba. Poeta, jornalista, autor, filósofo, político, guerreiro e apóstolo da independência de Cuba do domínio espanhol; neste sentido, inspirou as outras independências que se seguiram na América Latina. Apesar de ser um grande pensador e escritor, não morreu de velho escrevendo, mas sim jovem em combate, no dia 19 de maio de 1895 na batalha de Dois Rios. Com a sua efígie se cunharam moedas em Cuba e o seu nome designa hoje o do Aeroporto Internacional de Havana.
A letra da internacionalmente famosa canção popular Guantanamera é da sua autoria. A frase que inspira este texto não é um caso isolado em relação à obra e pensamento de Martí, sendo corroborada no contexto de tantas outras que revelam Martí como um grande humanista. Sendo José Martí cubano, aguerrido lutador pela liberdade e pela independência de Cuba, facilmente podemos apelidá-lo de socialista ou comunista.
Para quem tenha essa tentação, recordo que Martí é contemporâneo de Marx quando ainda não se tinha dado nenhuma revolução comunista e ainda só era vivo o pai de Fidel Castro. Na verdade, Martí é muito crítico em relação ao pensamento marxista e ao seu sistema de governo. Entendia que o que valia para a Europa não valia para a América Central.
· Contra a ditadura do proletariado dizia: O direito do trabalhador não deve ser o ódio ao capital, mas sim a harmonia, a conciliação, a aproximação entre os dois.
· Contra a abolição da propriedade privada dizia: É rica a nação que conta com muitos pequenos proprietários.
· Contra a privação da liberdade que seria uma das características dos Estados que aplicaram o comunismo e como ainda hoje acontece na China, dizia: A liberdade é a essência da vida, tudo o que é feito sem ela é imperfeito. (…) É uma desgraça para a liberdade que esta se transforme em partido político.
· Como humanista disse: O ser humano necessita sair de si mesmo para encontrar descanso e se revelar a si mesmo. (…) A animosidade racial não pode existir porque não há raças (…) A humanidade é composta por duas classes de homens, os que amam e criam, e os que odeiam e destroem. (Carta a um agricultor cubano)
Ars lunga vita brevis
A arte é eterna, a nossa vida é breve. Geralmente, entende-se por arte toda a atividade humana ligada a manifestações de ordem estética. O nosso conceito de arte vai mais além da atividade humana materialista. Inspirados em Erich Fromm e na sua obra “A arte de amar”, entendemos que arte é toda a atividade humana que cultiva e visa desenvolver um valor humano.
O amor é uma arte, o diálogo, a harmonia, a não violência, a paz é uma arte. A expressão Belas Artes, referindo-se exclusivamente à pintura, escultura, música, dança, teatro e literatura, deveria desaparecer, pois, todas as artes são belas.
Porque a arte se refere ao cultivo de um valor humano, é eterna. Porém as artes não se cultivam a si mesmas, são cultivadas por seres temporais que somos nós. No meu entender, tanto do ponto de vista humano como do ponto de vista da fé, adquirimos a vida eterna na medida em que cultivamos valores que são eternos.
Mozart e Beethoven, por exemplo, entregaram a sua temporalidade à música, fizeram-na progredir e elevaram-na a novos máximos. O mesmo fez Picasso com a pintura, Gandhi e Mandela com a não violência, etc. Entre estes autores que mencionámos e a arte à qual dedicaram a sua vida deu-se uma relação simbiótica: eles deram a sua temporalidade caduca e mortal à arte, e esta recompensou-os com a sua eternidade.
Quando cultivamos valores eternos escrevemos o nosso nome na História da humanidade, pois adquirimos nome, popularidade, fama que neste sentido são sinónimos de “eternidade” e, ao mesmo tempo, também escrevemos o nosso nome no “Livro da Vida”, expressão tantas vezes citada na Bíblia como sinónimo do Céu e da vida eterna com Deus.
Pelo contrário, quando cultivamos valores temporais e caducos, ou seja, quando dedicamos o nosso tempo e a nossa energia a cultivar realidades como a riqueza, o poder, a beleza física, o luxo, a ostentação, o prazer físico em todas as suas formas e possibilidades, alienamos a nossa vida, porque estamos a usá-la para cultivar a morte.
Se durante a vida e com a nossa vida cultivamos a morte, que podemos esperar quando eventualmente a morte nos encontrar? É evidente que a morte eterna é uma forma de entender o inferno. A nossa vida temporal desemboca em vida eterna se cultivarmos valores eternos, ou em morte eterna, se cultivarmos valores temporais (ou seja, se usarmos temporalidade (a nossa vida) para cultivar mais do mesmo: temporalidade).
Fugit tempus carpe diem
Esta expressão, especialmente a segunda parte, “carpe diem”, tem sido usada como justificação para gozarmos a vida ao máximo. No entanto, no devido contexto do seu significado antigo, significa exatamente o oposto. É uma exortação à atividade: como o tempo é curto, não devemos desperdiçá-lo, mas devemos aproveitá-lo bem, vencer a preguiça ou o “dolce fare niente”; “não deixar para amanhã o que podemos fazer hoje”; “guardar que comer não guardar que fazer”.
O tempo escapa-nos. Aproveitemos o dia para nos tornamos eternos no cultivo da arte que os nossos talentos nos sugerem. Na mente de Deus, ninguém vem ao mundo por acaso, nem por acidente. Todos os que nascem, nascem porque Deus o quis e vêm a este mundo com um projeto que Deus traçou. Neste sentido, Deus dá a cada um os talentos suficientes para que a sua vida seja viável.
A cada pessoa cabe a tarefa de os descobrir, arriscando-se a fazer e tentar coisas para as quais não sabe se tem ou não talento; só o saberá se tentar. “Quem não se arrisca, não petisca”, uma pessoa apenas ficará a saber se tem talento para cantar se abrir a boca e soltar a voz.
Por outro lado, não devemos perder tempo a admirar e até a invejar os talentos dos outros. Enquanto estamos focados nos talentos dos outros, perdemos o tempo de que precisamos para descobrir os nossos. Pior ainda, se tentarmos imitar os talentos dos outros, estaremos a fingir ser quem não somos. Nós somos a melhor versão de nós mesmos. Mas quando tentamos imitar ou copiar outra pessoa, facilmente somos ultrapassados pelo original dessa pessoa. Seguir a rota que conduziu outros ao êxito não garante, por si só, que tenhamos nós também êxito. Cada um deve seguir a sua própria via.
Segundo José Martí, as três coisas que estamos chamados a fazer para justificar termos nascido, ou para tornar a nossa vida produtiva, para deixarmos cá mais do que o que cá encontrámos, são:
Plantar um a árvore – uma clara referência à ecologia, a patrocinarmos um desenvolvimento que não comprometa a saúde do planeta e a vida dos que vierem depois de nós. Incita-nos a ultrapassar o momento presente e o consumismo, aquela mentalidade do burro que dizia “depois de eu morrer pouco me importa que cresça ou não erva, já não vou comê-la”. Faz-nos pensar no longo prazo.
Ter um filho – no Céu, como diz Jesus, as pessoas não são dadas em casamento porque não existe a morte. Porque existe a morte, tem de haver reprodução. Mas Martí não se referia apenas ao ato físico de continuar a espécie humana, mas sim à educação deste novo ser que trazemos ao mundo. Um mundo novo não pode ser formado por homens velhos; um mundo melhor não pode ser formado por homens piores.
Escrever um livro – quem diz um livro, diz uma partitura de música, uma peça de teatro, a criação de uma vacina, uma descoberta científica. Depois de contribuir para a melhoria do nosso habitat que é o nosso planeta, para um mundo melhor, formando pessoas melhores, trata-se agora de contribuir para o avanço da ciência e da técnica, da filosofia e de todas as outras artes e ciências que vão melhorar as condições de vida das gerações futuras.
ÁRVORE
“Aquele que antes da sua morte plantou uma árvore, não viveu inutilmente” Provérbio índio
No ano passado escrevemos acerca do desenvolvimento sustentável e dissemos que é uma dessas realidades tridimensionais pois, para ser sustentável, qualquer desenvolvimento económico deve pensar no impacto ambiental que o projeto em causa vai ter, se é económica e financeiramente sustentável, proveitoso e lucrativo. Por fim, devemos considerar a quem serve tal projeto, quais são as pessoas afetadas positiva ou negativamente, quem recebe os lucros, se vai criar desigualdades sociais ou não.
Como já tratámos do tema extensivamente num artigo escrito no ano passado, reproduzimos aqui excertos de dois discursos bem articulados sobre o tema, pronunciados em dois fóruns ecológicos historicamente importantes: o do Rio de Janeiro em 1992, no qual discursou Fidel Castro, e o da ativista Greta Thunberg, sueca de 15 anos de idade, na ONU no dia 23 de setembro de 2019.
Excelências:
Uma importante espécie biológica está em risco de desaparecer em virtude da rápida e progressiva liquidação das suas condições naturais de vida: o Homem. Tomamos agora consciência deste problema quando já parece tarde para o impedir.
Note-se que as sociedades de consumo são fundamentalmente responsáveis pela terrível destruição do ambiente. Nasceram das antigas metrópoles coloniais e políticas imperiais que, por sua vez, geraram o atraso e a pobreza que hoje assolam a grande maioria da humanidade.
Com apenas 20% da população mundial, consomem dois terços dos metais do mundo e três quartos da energia mundial. Envenenaram os mares e os rios, poluíram o ar, enfraqueceram e perfuraram a camada de ozono, saturaram a atmosfera com gases que alteram as condições climáticas com os efeitos catastróficos que já estamos a começar a sofrer. (...)
Para que a humanidade seja salva da autodestruição, as riquezas e tecnologias disponíveis no planeta devem ser melhor distribuídas. Menos luxo e menos desperdício em alguns países, para que haja menos pobreza e menos fome em grande parte da Terra (...). Torne-se a vida humana mais racional. Aplique-se uma ordem económica internacional justa. Use-se toda a ciência necessária para o desenvolvimento sustentado sem contaminação (...).
Quando as supostas ameaças do comunismo desapareceram e não há pretextos para guerras frias, corridas armamentistas e gastos militares, que nos impede que esses recursos se usem para o desenvolvimento do Terceiro Mundo e para combater a ameaça de destruição ecológica do planeta? Cessem os egoísmos, cessem as hegemonias, cesse a insensibilidade, a irresponsabilidade e o engano. Amanhã será tarde demais para fazer o que deveríamos ter feito há muito tempo. Obrigado.
Fidel Castro, Rio de Janeiro, 1992
Estamos de olho em vós, líderes internacionais. Isto está completamente errado. Eu não deveria estar aqui. Eu deveria estar na minha escola, do outro lado do oceano. (…) Roubastes-me os sonhos da minha infância com as vossas palavras vazias. Em tudo isto, tenho que dizer que sou uma das pessoas com mais sorte. Há pessoas a sofrer e a morrer porque os nossos ecossistemas estão a morrer. Há mais de 30 anos que a ciência tem sido clara; como vos atreveis a ignorá-la?
Estamos a assistir ao começo de uma extinção em massa. E tudo o que fazeis é falar de dinheiro e de contos de fadas sobre um crescimento económico eterno. (…) os jovens já começaram a entender a vossa traição. (…) O mundo está a despertar e a mudança está a chegar, quer vós queirais ou não. Obrigada. Greta Thunberg, 15 anos, discurso perante a Assembleia Geral da ONU, 23 de setembro de 2019
A economia deve ser repensada, abandonando-se a ideia de que tem de crescer permanentemente. Num sentido puramente físico, uma economia em contínuo crescimento só seria possível num planeta que também crescesse, ou seja, num planeta onde os recursos crescessem. Vai contra as leis da física que uma economia fortemente baseada e dependente de recursos que são finitos possa crescer indefinidamente.
Os interesses mesquinhos do presente de alguns impedem que vejamos o problema na sua totalidade. A 2 de novembro de 2019, o líder indígena Paulo Paulino Guajajara, um dos denominados Guardiões da Floresta, um grupo de indígenas dedicado a proteger a floresta amazónica da destruição ambiental, foi morto por um grupo de invasores das terras indígenas.
Segundo a NASA, em 16 de agosto de 2019, uma análise dos dados de satélite indicava que o total de incêndios na Amazónia nesse ano de 2019 estava próximo da média, em comparação com os últimos 15 anos. A importância desta floresta está menos ligada à produção de oxigénio, pois a maior parte deste vem das algas marinhas, e mais à absorção do dióxido de carbono - a floresta é o filtro de ar do mundo.
Por mais inteligente que a raça humana seja e por mais científicas que sejam as investigações sobre as mudanças climáticas e a subida do nível do mar, as catástrofes de inundações e secas, a contaminação dos oceanos e dos ecossistemas, as doenças que constituem uma ameaça comum, o ser humano permanece egoisticamente numa atitude de negação, escondendo a cabeça debaixo da areia. Todos pensam que o pior não acontecerá no seu tempo, como pensava o burro acima citado e, quando esse tempo chegar já não haverá nada a fazer.
“Quem planta tâmaras não colhe tâmaras”
As melhores palmeiras de tâmaras do mundo estão plantadas na cidade mais baixa e mais antiga do mundo: Jericó. Por coincidência, esta palmeira tarda em dar frutos. Daí nasceu o provérbio que nos diz que quem planta tâmaras não chega a recolher o fruto do seu trabalho, outro o fará.
É esta forma de pensar, diametralmente oposta à atitude do burro que só se preocupava com o seu próprio sustento, que temos de adotar para repensar o nosso mundo. Quem hoje come tâmaras está a comer o suor daquele que as plantou e não as comeu. Assim devemos nós pensar em relação às gerações futuras: plantar hoje as tâmaras que eles vão comer. Devemos preparar hoje o ambiente onde eles vão viver ou, pelo menos, não o estragar.
FILHO
Faça homens quem quer fazer povos. José Martí
O capítulo anterior era sobre o mundo que deixamos aos nossos filhos. Este capítulo, não menos importante e preocupante, é acerca do tipo de filhos que deixamos ao nosso mundo. Hoje muitos pais alcatifam a vida dos seus filhos, tirando-lhes todos os problemas do caminho, resolvendo-lhes os mais pequenos problemas, dizendo a nós mesmos como pais “eu não quero que o meu filho passe por aquilo que eu passei”. Ao fazer isto, esquecemo-nos de que hoje somos o que somos porque passámos por onde passámos.
Uma das regras de uma boa educação é responsabilizar a criança a partir do momento em que pode ser responsabilizada. Se uma criança já pode fazer algo, deve fazê-lo; se já pode lavar pratos, deve lavá-los, se já pode fazer a cama, deve fazê-la. Se já puder resolver os pequenos problemas que vão aparecendo, deve resolvê-los, pois eles farão com que a criança cresça mais forte e mais preparada para problemas mais graves e mais difíceis no futuro.
Demos-lhes todas as liberdades demasiado cedo e nunca lhes impusemos limites, nunca lhes dissemos que não; agora, não sabem o que querem, não têm capacidade de decisão. Dizem “eu quero manter todas as minhas opções em aberto” e, de facto, muitos mantêm essas opções em aberto grande parte das suas vidas, sem se comprometerem com nada nem com ninguém. A geração atual já não quer abandonar a casa dos pais porque não está preparada para a vida. Estes jovens perdem tempo nessa rotunda ou cruzamento e, com 30 ou mais anos de idade, ainda não sabem o que fazer na vida.
Por não se decidirem nem se comprometerem, o Estado foi obrigado a criar leis que os consideram casados quando vivem juntos por um determinado tempo, ativando o divórcio se decidirem separar-se. Não podemos viver a vida sem nos comprometermos com ela. Escolher significa dizer que sim a um caminho e não a todos os outros. Eventualmente, muitos destes indivíduos chegam a ser pais quando já têm idade para ser avós.
Pais ausentes
O fracasso dos filhos é quase sempre responsabilidade dos pais. A escola é igual para todos, a rua também, o que faz um rapaz ou rapariga fracassar na escola e não obter a educação que deveria ou fracassar na rua, sendo vitimizado pelos outros ou deixando-se levar pelos caminhos da droga, da delinquência juvenil ou do sexo demasiado precoce, é a educação que recebe em casa. Esta fortalece-o ou enfraquece-o para enfrentar a escola e a rua, ambientes sempre hostis em comparação com o lar onde recebe amor incondicional.
Muitos pais não estão preparados para o serem e repetem os erros que os seus pais cometeram com eles. Este mundo dá muita importância à preparação técnica e profissional dos trabalhadores, mas nenhuma à educação. Não há cursos para aprender a ser pai ou mãe. A criança está abandonada, vive abandonada. Passa a maior parte do tempo na escola que não educa, apenas forma profissionalmente. Chega a casa tarde e cansada, tal como os outros membros da família. Só há tempo para o jantar e para dormir, pois há que levantar cedo.
Apesar dos milhões de anos de evolução que nos separam dos primatas e demais mamíferos, a família humana é ainda bastante monoparental, como acontece com os mamíferos. O pai permanece ausente, em muitos casos, e entrega a educação das crianças à mãe que, consoante tenha ou não trabalho fora do lar, é mais ou menos omnipresente. O pai não acompanha a vida da criança e é relegado a um papel de tribunal supremo onde chegam as questões que a mãe não consegue resolver; antigamente, o pai era o poder punitivo que fazia cumprir as leis.
Numa família onde o pai está ausente, os rapazes crescem sem modelo de identificação, pois pouco se relacionam com a figura paterna. As raparigas crescem sem a primeira experiência do masculino. Freud tinha razão: a relação que estabelecemos com o progenitor do sexo oposto vai ser mais tarde largamente repetida. As raparigas que carecem de pai namoram mais cedo e têm tendência a enamorar-se por rapazes mais velhos que elas, ou seja, inconscientemente não buscam um noivo ou um amigo, mas sim um pai.
Se pensarmos nos famosos, naqueles que alcançaram fama no mundo da política, das artes, da literatura, da medicina ou da música etc. veremos que na sua maioria se dedicaram inteiramente à sua arte, negligenciando os filhos acabando por ser maus pais. Estes são pais que não se conhecem pelos seus filhos e os filhos costumam ser pessoas anónimas, não herdando absolutamente nada dos pais.
Ter filhos ou animais de estimação
«Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos.» Marcos 7, 27
Há casais que equacionam ter animais de estimação em vez de terem filhos. Se se casaram pela igreja, o matrimónio é inválido, pois prometeram ter filhos e educá-los segundo a fé católica. Para quem não acredita na ressurreição e na vida eterna, os filhos são a única forma de a pessoa humana se imortalizar. Os seus genes não morrem, vivem nos filhos e nos filhos dos seus filhos, de geração em geração.
A quantidade de dinheiro que uma família gasta na manutenção de um animal de estimação daria para uma família num país pobre viver durante meses. Segundo o livro do Génesis, aprendemos que o animal está ao serviço do homem; um animal de estimação numa casa não presta qualquer serviço ao homem. Os cães podem guiar cegos, podem ajudar a polícia, podem ajudar o pastor, podem guardar uma quinta; os gatos caçam ratos. Hoje em dia que serviço prestam ao homem os animais de estimação? Nenhum. É o homem que está ao seu serviço.
Acabado de regressar da Etiópia e estando eu num parque de Barcelona à espera da hora da missa de uma paróquia, vi uma senhora passeando o seu cachorro. A dada altura, o animal fez as suas necessidades e a senhora tirou do seu bolso um saco com o qual apanhou os excrementos do animal e os depositou no lixo. Seguidamente, tirou também do seu bolso um lenço de papel e limpou o cão. Fiquei escandalizado, este mundo humaniza os animais e desumaniza os humanos.
Soube de um gato que estava ligado a uma máquina que mantinha artificialmente as suas funções vitais; o médico chamou os donos do animal de estimação, informou-os de que não havia nada a fazer: além dos rins, vários outros órgãos vitais já não funcionavam, pelo que ele sugeria desligar a máquina e solicitava autorização para isso. Os donos do gato, que aliás até se apresentaram como família do gato, além de não autorizarem que se desligasse a máquina, chamaram cruel ao médico veterinário.
Num programa radiofónico acerca de animais de estimação de uma estação de rádio londrina, uma senhora inquiria o locutor sobre a razão pela qual o seu gato, a quem tratava de filho, dormia uma vez com ela, outra vez com o seu marido. Não recordo bem o que respondeu o referido locutor, mas recordo muito bem que ficou nitidamente agastado com a pergunta.
Ser pai e ser mãe é a vocação de todo o homem e de toda a mulher
Como há muitos progenitores que nunca chegam a ser verdadeiros pais ou mães, assim há pais que não são progenitores. Tanto para a criança como para os adultos que exercem a função de pais adotivos, o mais importante não é ser progenitor, tarefa que demora poucos minutos para um homem e 9 meses para uma mulher. O mais importante é educar.
Um colega meu, missionário da Consolata como eu, chamava mãe à tia e tia à mãe. Eram duas irmãs, uma teve um filho por acidente e, mais tarde, encontrou um noivo que queria casar com ela, mas não queria o filho dela. Este foi dado à irmã, que o perfilhou com muito amor e o educou com todo primor. Não pensava casar-se e de facto nunca casou, viveu para aquele menino que se transformou num grande missionário.
Ninguém negaria o título de Madre a Madre Teresa de Calcutá e, no entanto, ela nunca deu à luz qualquer filho; mas comportou-se como mãe para centenas de crianças órfãs e, com as suas irmãs, educou-as. Os sacerdotes católicos que não casam nem têm filhos são chamados de Pai, padre, enquanto que os sacerdotes protestantes e ortodoxos que casam e têm filhos não são apelidados de padres. A razão do sacerdote não se casar é precisamente a de ser pai espiritual dos seus fiéis, educando-os na fé e tantas vezes humanamente.
Um tiro no pé
A sociedade ocidental não tem crianças. As famílias ocidentais não conseguem ter mais de um ou dois filhos porque fica caro mantê-los. Vivemos num mundo rico onde a vida é dura e custa muito. Num matrimónio jovem, em que ambos acabaram de conseguir o primeiro emprego, não é fácil suportarem o pagamento da casa e das despesas de uma criança até à idade escolar, que custam mais que as despesas de um universitário.
Esse é o tiro no próprio pé que a sociedade ocidental está a dar. Nenhum casal jovem consegue pagar o correspondente a um salário mínimo para manter o seu filho ou filha num jardim de infância antes da escola primária. Depois do jardim de infância, é relativamente barato manter uma criança, mas não na idade pré-escolar. Esta é, no meu entender, uma das razões para a baixa natalidade: não se trata de má vontade das famílias, trata-se mais da dificuldade económica que transforma um filho num luxo.
LIVRO
(…) Todo o povo se reuniu, como um só homem, na praça (…) Esdras leu o livro, desde a manhã até à tarde, (…) e todo o povo escutava com atenção a leitura do livro (e) chorava ao ouvir as palavras da Lei Neemias 8, 1, 3, 9
No mundo antigo e medieval, a identidade de um povo, a sua forma de ser e existir, o seu carácter, a sua língua, a sua cosmovisão e idiossincrasia eram defendidas e preservadas por muralhas e construídas por livros, epopeias, obras literárias. Atualmente, há ainda muitas cidades fortificadas, como Óbidos e Marvão, castelos e muralhas como a que divide a Inglaterra da Escócia, construída pelos Romanos; e a famosa muralha da China, com milhares de quilómetros, que divide a China em duas.
O que verdadeiramente cria um povo é uma obra literária. É impensável o povo judeu sem a Torah, sem os livros da lei e os profetas. O que define e caracteriza o povo grego são a Ilíada e a Odisseia de Homero; o ex libris do povo italiano é a Divina Comédia de Dante Alighieri; o que define o caráter do povo espanhol é o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes; a alma russa encontra-se em Dostoievski, no seu livro Os Irmãos Karamazov. A alma portuguesa ou lusitana está nos Lusíadas de Camões.
Ler e viajar
“Quem quer saber, é viajar ou ler”, diz o provérbio. No mundo antigo, as rotas comerciais, como a rota da seda, a rota do incenso, a rota dos metais, não só serviam para o intercâmbio de produtos, como também para o intercâmbio de ideias e descobertas científicas. A pólvora foi descoberta na China, mas chegou ao ocidente pela rota da seda; o trabuco ou os primeiros lançadores de projéteis foram engendrados no ocidente, mas chegaram à China por meio de Marco Polo.
Os povos que mais se desenvolveram foram os que estabeleceram melhores vias de comunicação. Não é por acaso que os povos mais desenvolvidos nasceram à volta do Mediterrâneo e dos grandes rios que eram, em si mesmos, rotas comerciais. Os povos isolados, como os aborígenes na Austrália, os índios da Amazónia, permaneceram primitivos até aos dias de hoje.
O livro é um veículo de comunicação, de transferência e intercâmbio de conhecimento e é mais eficaz que a rota comercial porque não só une povos entre si no momento presente, como também os une de geração em geração. O livro veio substituir a cultura e tradição oral de passar os conhecimentos de pais para filhos. Pela tradição oral, perdiam-se conhecimentos, pela cultura livresca, nada se perde a não ser que se queimem os livros, como aconteceu com a biblioteca de Alexandria, a melhor e mais apetrechada do mundo antigo.
Existem hoje outros meios de comunicação, como a rádio, a televisão e a Internet, bem mais simples de utilizar do que o livro. Por isso, os livros, os jornais, as revistas estão a desaparecer como veículos de cultura; mas talvez não desapareçam por completo. Alguns estudos recentes indicam que retemos mais o que lemos num livro que o que aprendemos através da TV ou rádio. “Palavras leva-as o vento” Eu diria que as palavras que nos chegam por via oral, pelo som, o vento leva-as porque é o vento que as traz; porém, as que nos chegam por via da leitura ficam.
Estudos semelhantes têm sido levados a cabo comparando a digitação num computador com a escrita à mão que também parece estar a desaparecer. Estes estudos provam que retemos muito mais o que escrevemos à mão que o que digitamos no computador. Esta conclusão é importante para estudantes que preparam exames: em vez de se limitarem a ler a matéria, é bom escrevê-la, fazer resumos à mão, copiá-la dos livros.
Durante toda a Idade Média, antes da invenção da imprensa por Gutenberg, em 1439, a difusão dos livros era feita pelos copistas; milhares de monges no ocidente se dedicaram a copiar livros para que estes não desaparecessem. O Renascentismo foi possível porque durante a Idade Média houve monges que copiaram os clássicos e os guardaram em lugares secretos.
No tempo dos copistas, a Bíblia foi certamente o livro mais copiado e, com a invenção da imprensa, foi o primeiro a ser impresso e é, ainda hoje, o livro mais vendido em todo o mundo. Os livros publicam-se se houver quem os leia: entra também aqui a lei da oferta e da procura. A Bíblia continua a ser publicada porque é o ex libris dos cristãos e judeus, porque é Palavra Revelada que não diz respeito a um tempo, mas a todos os tempos, não pertence a uma cultura, mas a todas as culturas, não pertence a um povo, mas a todos os povos. É o encontro entre Deus e o Homem e a história que têm construído juntos.
Libris ex libris fiunt
Os livros nascem dos livros, diz o provérbio latino. O progresso a todos os níveis, científico, espiritual, filosófico, é como uma corrida de estafetas. Cada um de nós recebe o estado a que chegou a cultura, a ciência, a filosofia ou a teologia da geração dos seus pais, como um testemunho, e durante a sua vida ativa desenvolve essa cultura, ciência, literatura, filosofia ou teologia, dando-lhe o seu contributo, antes de passar esse mesmo contributo para a geração seguinte dos seus filhos.
Feitos à imagem e semelhança de Deus, somos também criativos e criadores como Deus. A única diferença é que Deus cria do nada enquanto que o Homem cria dos elementos já existentes, por dedução ou intuição, misturando diferentes elementos.
Neste sentido, tem razão ainda o provérbio latino que diz que os livros nascem dos livros. Ninguém escreve sem ter lido, investigado e absorvido todos os avanços existentes na arte ou ramo da ciência que cultiva. Se escreve sem investigar arrisca-se a reinventar a roda ou a pólvora e a ser ridicularizado pelos seus semelhantes.
Conclusão – Se fomos criados à imagem e semelhança de Deus e somos chamados a ser perfeitos como Ele, recordemos que Ele plantou a árvore da vida e do conhecimento no Jardim do Éden, teve um Filho - Jesus de Nazaré - e inspirou ou escreveu um livro - a Bíblia.
Pe. Jorge Amaro, IMC
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