O criador e o administrador da criação
Muitos ecologistas como Lynn White, (em “A raiz histórica da nossa crise ecológica”), culpam a Bíblia e, através dela, a religião por terem sido as mentoras e as madrinhas do domínio e exploração desenfreada da Terra. Para nós, estudantes da CNV, esta acusação é inaceitável pois, no mito bíblico da criação, a violência aparece à posteriori como um problema, não foi querida nem criada por Deus.
A justificação da violência à direita e à esquerda com tudo e com todos vem do mito babilónico da criação, que é anterior ao bíblico e é a raiz daquela a que o teólogo Walter Wink chama a religião “civil” que desde sempre e ainda hoje tem mais fiéis. Como já vimos, antes no mito babilónico a mesma criação é um ato de violência. Para o mito babilónico, a violência não é um problema, mas uma faceta intrínseca da criação, da natureza e do próprio Homem.
Dominar vem do termo hebreu “Radah”, uma palavra da realeza que significa reinar - trata-se, portanto do ofício de um rei. Que nos diz a bíblia sobre a forma como deve governar um rei? Vejamos como a mesma palavra é usada no contexto da coroação do rei Salomão que, para Israel, é o símbolo da sabedoria:
“Dominará de um ao outro mar, do grande rio até aos confins da terra. (…) Ele socorrerá o pobre que o invoca e o indigente que não tem quem o ajude. Terá compaixão do humilde e do pobre e salvará a vida dos oprimidos. Há-de livrá-los da opressão e da violência, porque o seu sangue é precioso a seus olhos. Salmo 72, 8, 12-14
E qual é o tipo de reinado que Deus não quer: Ai dos pastores de Israel, que se apascentam a si mesmos! Não devem os pastores apascentar o rebanho? Vós, porém, bebestes o leite, vestistes-vos com a sua lã, matastes as rezes mais gordas e não apascentastes as ovelhas. Não tratastes das que eram fracas, não cuidastes da que estava doente, não curastes a que estava ferida; não reconduzistes a transviada; não procurastes a que se tinha perdido; mas a todas tratastes com violência e dureza. Ezequiel, 34, 3-4
À luz do mito bíblico da Criação do Mundo, da parábola dos talentos (Mateus 25, 14-30) e suas congéneres, Deus não dá ao homem o direito de propriedade nem nenhum outro direito sobre a Criação, mas sim a responsabilidade de cuidar dela de uma forma consistente com a Sua vontade.
Primeiro, temos de entender que o homem, e só ele, foi feito responsável pela Criação, pois de todas as criaturas só ele foi criado à imagem e semelhança do Criador Deus. Segundo, o domínio como sinónimo de exploração desenfreada só pode provir de uma leitura do mito bíblico da criação, à luz do mito babilónico, por ser este mito o que tem prevalecido ao longo da história da humanidade.
A exploração desenfreada e violenta do planeta só pode ter vindo da leitura do mito bíblico da criação com as lentes do mito babilónico, pois a mente humana está formatada por este mito e não pelo bíblico. Nos dias de hoje, se perguntarmos se os seres humanos são ou não naturalmente violentos, a maioria das pessoas vai dizer que sim, que a violência faz parte da natureza humana.
Portanto, originalmente, ou seja, interpretando a bíblia à luz da própria bíblia, usando outros textos da mesma, a palavra “domínio” não significa despotismo totalitário, mas adequada administração sob a alçada de Deus; pois Deus é o único proprietário, dono e Senhor da Criação e de tudo o que ela contém, incluindo nós próprios:
Ao Senhor pertence a terra e o que nela existe, o mundo inteiro e os que nele habitam. (Salmo 24:1).
Pois Deus não entregou a criação ao homem e se desinteressou dela; ao contrário, o homem não deve esquecer-se de que ele é só o administrador da criação:
Quem mediu as águas do mar com a sua mão e quem mediu o céu a palmo, ou o pó da terra com o alqueire? Quem pesou as montanhas na báscula e as colinas na balança? (…). De quem recebeu ele conselho para julgar, para lhe indicar o caminho certo? (…) - Quem lhe ensinou a ciência (…). As nações são como uma gota de água num balde, como um grão de poeira no prato de uma balança;
Isaías 40 12, 14, 15
Quem gera as gotas de orvalho? Job 38, 28
Ele dá de comer aos animais e aos filhotes dos corvos, quando gritam. Salmo 147, 9
Subjugar a terra, portanto, não significa dominá-la e explorá-la, mas sim aprender a compreender todos os seus processos, as leis da natureza e todas as suas criaturas, em benefício da humanidade e da glória de Deus. Este mandato está em vigor ainda hoje para todos os descendentes de Adão e Eva, mas é ainda mais importante para os cristãos, porque tivemos conhecimento do Senhor não somente no seu trabalho como Criador do mundo, mas também como seu Redentor. A redenção que obtivemos de Cristo é extensiva ao planeta; o planeta precisa de ser salvo também.
Neste mesmo espírito de vida, em harmonia com a natureza, a Igreja tem um santo para propor aos ecologistas do nosso tempo: S. Francisco de Assis. Para ele não havia animais antagónicos, não havia inimigos, por isso chamava o lobo de irmão lobo; não só se irmanou com os animais da terra, as aves do céu e os peixes do mar, como com os próprios elementos, chamando à água sua irmã e ao sol seu irmão.
O “Novo Testamento” do mito babilónico
Assim, da guerra da natureza, da fome e da morte, tem origem direta o objeto mais exaltado que somos capazes de conceber, a produção dos animais superiores." A luta pela existência, com a eliminação dos fracos e incapazes, leva à sobrevivência dos mais aptos, pelo que esta guerra da natureza deve, eventualmente, levar a animais superiores, raças superiores e finalmente civilizações superiores. Charles Darwin Ultimo parágrafo do livro Origem das espécies
Pelo uso e abuso de palavras e conceitos violentos, o último parágrafo do livro de Darwin parece decalcado do violento mito babilónico da Criação. Portanto, já nos tempos modernos vemos em Darwin e nos seus seguidores mais fanáticos, um “Novo Testamento” do mito babilónico, essa religião que domina o planeta. E tal como o cristianismo depressa se fez sentir no mundo, assim os efeitos da aplicação desta filosofia, nos últimos dois séculos - XIX e XX - e fazem sentir agora no século XXI.
Entre outros, um dos resultados nocivos desta filosofia tem sido a exploração descuidada dos nossos recursos naturais – animal, mineral e humano, tudo em nome da evolução socioeconómica. Grandes recursos minerais e vegetais, sobretudo a madeira, têm sido mal-usados e desperdiçados; quebrou-se o equilíbrio de regeneração da natureza, pelo que muitas espécies de vegetais e animais se extinguiram. O ritmo desta extinção é de 1000 por ano ou 100 por dia, segundo Norman Myers.
Volta-se o feitiço contra o feiticeiro – O efeito da exploração desordenada, egoísta e arbitrária o nosso planeta resultou numa contaminação sem precedentes dos ecossistemas:
O solo está depauperado de elementos essenciais à nossa saúde, por causa do mono cultivo; está também contaminado por pesticidas e fertilizantes químicos que alteraram a sua composição química e envenenam os lençóis freáticos de onde provém a água que bebemos;
Os oceanos estão cheios de microfibras de plástico que saem das nossas máquinas de lavar roupa, desde que o plástico substituiu as fibras naturais, como a lã, algodão, linho e seda, juntamente com metais pesados, como o mercúrio e que são absorvidos pelos peixes que consumimos;
O ar está contaminado por dióxido de carbono que produz o efeito de estufa, responsável pelo aumento global da temperatura que derrete os glaciares e as calotas polares, faz subir o nível do mar, altera o curso dos ventos, modifica o ritmo das estações do ano provocando furacões, inundações e secas de uma intensidade sem precedentes;
O ambiente social também está empestado pelo facto de que hoje 1% da humanidade possui mais riqueza (54%) que os restantes 99% (46%). A brecha entre ricos e pobres não para de aumentar. Uns morrem de fome, outros morrem de fartura; se houvesse partilha, nem morriam uns nem outros. Esta situação deve-se à ideologia do senhor Adam Smith, pai do capitalismo moderno, que acreditava que se todos fossem egoístas, ou seja, se todos buscassem o seu interesse individual, uma mão invisível se encarregaria do interesse comum; tal mão invisível a fazer de Pai Natal nunca se materializou, pelo que a situação vai de mal a pior.
Não temos nada contra os fundamentos da ciência da evolução das espécies; de facto, desde o Papa Pio XII, com a sua encíclica “Humani Generis” de 1950, que a Igreja Católica aceita os postulados fundamentais da teoria da evolução das espécies, ou seja, é mais que evidente que a vida vem toda de um tronco comum, que se foi diversificando em várias espécies ao longo de milhões de anos até aos nossos dias. O que não podemos aceitar é a interpretação violenta que o mesmo Darwin e os seus discípulos apresentam da teoria acima descrita no último parágrafo do seu famoso livro.
Com base no mito bíblico da criação e na CNV, acreditamos que a violência não faz parte da natureza, nem foi e nem é ela o motor da evolução, ao contrário do que pensava Darwin e os seus seguidores; esta foi introduzida pelo homem, pela forma com que se tem relacionado com a Natureza, sobretudo nos últimos dois séculos.
O efeito borboleta e o efeito dominó
Uma borboleta move as suas asas em Hong Kong e causa uma tormenta em Nova Iorque. Por pequeno que seja o que fazemos, afeta a ecologia global do planeta. Antigamente, porque a população humana do planeta era reduzida, o mundo parecia demasiado grande, demasiado poderoso e atemporal para que pudesse ser afetado pela ação do homem. Hoje, porém, para além da população ter aumentado de uma forma catastrófica e vertiginosa, sabemos que a ação do homem sobre o planeta é acumulativa, ou seja, os erros e os crimes contra o planeta vão-se acumulando porque, como dizia alguém, Deus perdoa sempre, o homem às vezes, a natureza nem perdoa nem esquece.
Embora o conceito já venha do 1890, o efeito borboleta ganhou aceitação popular em 1961, devido ao modelo de previsão do tempo usado pelo meteorologista Edward Lorenz. Este deu-se conta de que pequenas mudanças, que deveriam ter sido estatisticamente insignificantes, levaram a cenários exponencialmente diferentes.
A analogia de borboleta começou em 1972, quando Lorenz fez um discurso intitulado “Previsibilidade: pode o bater das asas de uma borboleta no Brasil desencadear um tornado no Texas?” Bem, tendo em conta as alterações que nós seres humanos já introduzimos no ecossistema complexo, conhecido como planeta Terra, é acertado dizer que fizemos o trabalho de milhares de milhões de borboletas.
Uma área de capital importância é a biodiversidade. Além do facto de a biodiversidade proteger os humanos contra os efeitos das catástrofes agrícolas, como a fome da batata irlandesa, a perda de uma espécie resulta em alterações significativas nos habitats naturais que podem prejudicar-nos gravemente a curto, médio ou longo prazo.
Tomando as mesmas borboletas como exemplo, se elas desaparecerem não só as crianças vão sofrer por não poderem brincar com elas, muitas plantas que estão intimamente ligadas às borboletas (e vice-versa) também estarão destinadas ao desaparecimento, pois umas não podem sobreviver sem as outras.
Quando pensamos na interdependência natural dos seres vivos entre si e dos ecossistemas entre si, é assustador pensar que tudo isto pode colapsar pela extinção de uma só espécie. As abelhas estão ameaçadas e são o maior polinizador do planeta; os esquilos estão ameaçados e plantam mais árvores que os seres humanos ao se esquecerem dos frutos secos que escondem no solo para sobreviverem no inverno.
O efeito dominó é uma realidade em ecologia; a mudança climática pode levar à extinção de animais e plantas deles dependentes e provocar uma reação em cadeia de consequências imprevisíveis, dada a interdependência dos seres vivos entre si e de serem todos eles dependentes das condições climáticas dos meios em que habitam.
Enquanto escrevia estas linhas recebi a triste notícia da morte do último rinoceronte branco macho; antes da sua morte, uma porção do seu esperma foi congelado na esperança de continuar a sua espécie, mas das duas últimas fêmeas existentes, uma é estéril. Isto faz com que o prognóstico da salvação do rinoceronte-branco seja muito reservado. Sabe-se que esta espécie foi impiedosamente caçada por causa da crença chinesa nas propriedades afrodisíacas do seu chifre.
Génese da violência no mito bíblico da criação
Segundo a religião violenta do sistema de domínio, que tem como Sagrada Escritura o mito babilónico, a violência é o mandamento principal, a matriz sobre a qual assentam todas as relações - a relação do homem com o seu semelhante, a relação do homem consigo mesmo, com Deus ao qual se oferecem sacrifícios violentos para aplacar a ira ou conquistar o favor, e com a natureza por esta não ser para nós uma mãe prodigiosa, mas sim uma madrasta.
A Natureza, aos animais deu-lhes tudo, até os vestiu, a nós não nos deu nada nascemos nus, e se queremos comer temos de trabalhar. Ao contrário do Neandertal, que se adaptava à natureza, já o Homo Sapiens procurou dominar a Natureza com a sua mente e adaptá-la às suas necessidades. Entendendo-se a si mesmo, em relação aos outros animais, como o patinho feio da Criação, a relação do homem com a Natureza parece ser uma relação de vingança.
«Porque atendeste à voz da tua mulher e comeste o fruto da árvore, a respeito da qual Eu te tinha ordenado: ´Não comas dela´ maldita seja a terra por tua causa. E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, todos os dias da tua vida. Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e ao pó voltarás.» Génesis 3, 17-19
Natural para o mito babilónico, a violência não o era para o rito bíblico. O que Deus criou era bom e houve um tempo em que o homem era como Deus o tinha criado, assim como a Natureza original, ou seja, o Jardim do Éden, Homem e Natureza viviam em simbiose e harmonia, a mesma harmonia reinava entre Deus e o homem que passeavam ao entardecer no jardim do Éden (Génesis, 3,8). Com o pecado, esta harmonia entre Deus e homem, entre este e a Natureza rompeu-se.
A filosofia “win win” e a ecologia
Cristo veio trazer a salvação não só para o homem, mas também para o ambiente em que o homem vive; esta Terra pode voltar a ser o paraíso que já foi um dia. Para isso temos de denunciar o Darwinismo exacerbado que se relaciona violentamente com a natureza; como já denunciamos a falácia do mito da violência redentora agora denunciamos o mito do domínio e da sobrevivência do mais forte sobre o mais fraco e menos capacitado, declarando que se trata de uma ideologia falsa, que trata de explicar as relações dos animais ao longos dos milhões de anos de evolução.
Não há violência entre os animais, só há satisfação das suas necessidades. Os animais não se matam porque sentem ódio uns pelos outros, mas para satisfazerem as suas necessidades dentro da cadeia alimentar. Se alimentarmos um gato com ração, ele acabará por brincar com ratos e pássaros, sem lhes fazer mal.
O objetivo da CNV é que todos satisfaçam harmoniosamente as suas necessidades. É possível voltar ao mundo que tínhamos antes da era industrial, encontrar uma forma de harmonia, de progresso que seja sustentável e amiga do meio ambiente. Em CNV, as necessidades do outro são também as minhas necessidades, não há antagonismo entre mim e o outro, mesmo quando ele diz um “não” eu ouço um “sim”.
A CNV é uma filosofia “win win” “em que todos ganham” pois estamos convencidos de que todos podem ganhar; como não existe vida humana fora deste planeta, o que é bom para o planeta é bom para o homem e vice-versa, o que é mau para o planeta a longo prazo também o é para o homem a longo prazo. As consequências dos males passados já começaram a sentir-se. Deixemos de ser inimigos do meio ambiente pois é nele que vivemos.
Se a mãe Terra sustém a vida, a nossa vida, então também ela está viva, é um organismo vivo. Relacionemo-nos com ela usando os quatro componentes da comunicação não violenta e observemos objetivamente a situação em que se encontra, peçamos aos xamãs índios da América do Norte que nos ajudem a perscrutar os seus sentimentos e as suas necessidades e, por fim, a intuir o que ela nos pede para se manter viva e para nos manter vivos.
Pe. Jorge Amaro, IMC
Sem comentários:
Enviar um comentário