1 de maio de 2024

Cosmovisão do Crescente Fértil

Depois de nos debruçarmos sobre a cosmovisão pré-histórica, estudemos agora as cosmovisões que lhe sucederam depois do aparecimento da escrita que é a linha que divide a pré-história da história. Por muito tempo se pensou que a escrita apareceu na Suméria, antiga Mesopotâmia, e que dali se foi alastrando para as demais civilizações. A descoberta de uma forma de escrita na América Central, sem conexão com o Crescente Fértil ou o Extremo Oriente, prova que a escrita surgiu em diferentes civilizações desconectadas entre si.

Esta é apenas uma de tantas provas de que há apenas um único modelo de desenvolvimento e que a natureza humana é a mesma porque o planeta está povoado por um único hominídeo, o Homo Sapiens que deixou a África há cerca de 200 000 anos. A escrita é, portanto, concomitante ao aparecimento das primeiras civilizações. Em cada uma destas civilizações aparece uma versão diferente da mesma.

A primeira e mais antiga versão de escrita é a escrita cuneiforme que aparece de facto na Suméria (4000 a.C.). Por este motivo, a Suméria é também conhecida como a primeira civilização humana. Depois vem a escrita hieroglífica do Egito (3 000 a.C.). A escrita pictórica da China surge por volta de 1 200 a.C. e a escrita Maia, da América Central, no ano 500 a.C. Há uma incógnita sobre a escrita da civilização Harapa no vale do Indo e que seria a segunda, depois da Suméria. Esta forma de escrita data de 3 500 anos a.C., mas até à data não foi decifrada e, por isso, não conta como escrita, mas como símbolos desconectados entre si.

Vamos, portanto, estudar estas primeiras grandes civilizações antigas que estão na base das nuances civilizacionais que encontramos aqui e ali neste mundo globalizado e cada vez com menos diferenças. Estas civilizações são o Crescente Fértil, a civilização do vale do Indo, a civilização chinesa e, por fim, as civilizações da América Central, Maias, Astecas e Incas. Debrucemo-nos então sobre o Crescente Fértil (berço da civilização ocidental) e das culturas que ali se foram sucedendo, a começar pela Suméria, até ao aparecimento do Primeiro Império.

A civilização suméria surge com alguma anterioridade em relação ao Egito. No entanto, estas duas culturas crescem e desenvolvem-se contemporaneamente, com pouca ou nenhuma relação entre si, porque estavam separadas pelo deserto e nunca se confrontaram em guerra.

SUMÉRIA
Questiona-se hoje se a Suméria é anterior ao Egito. No entanto e enquanto não se prove inequivocamente o contrário, adotamos aqui a visão ortodoxa de que a civilização suméria, a primeira do planeta, surgiu um pouco antes da egípcia, 4 000 anos antes de Cristo, entre os rios Tigre e Eufrates no sul da Mesopotâmia (atual Iraque).

As inundações regulares dos rios tornavam fértil a terra e permitiam uma agricultura baseada sobretudo nos cereais que, como estudámos em outros textos, permitiam armazenar bens por muito tempo, libertando assim o Homem da tutela da natureza e da constante procura de alimentos, como acontece com os outros seres vivos.  

Estudaremos o Crescente Fértil desde a primeira civilização suméria até ao aparecimento do Primeiro Império.

Religião
Os sumérios sabendo que não podiam controlar o vento, o ar e o sol e outros elementos, acreditavam que um poder superior controlava estas realidades. A palavra suméria para universo era AN-KI, ou seja, o deus AN e a deusa KI. Os filhos deste matrimónio divino eram ENLIL, o deus do ar, que era visto como o deus mais poderoso, semelhante a Zeus na mitologia grega. ENKI era a deusa do amor e da guerra. Eros e Thanatos, afeição e agressão, eram controlados pela mesma divindade. Para além destes, havia muitos outros deuses mais pequenos e cada cidade-estado tinha o seu deus protetor.

Politeísmo antropomórfico
Os sumérios acreditavam que os seus deuses eram muito parecidos com as pessoas; comiam, bebiam, dormiam e casavam-se. Ao contrário dos humanos, os deuses viviam eternamente e exerciam poder sobre os humanos. Por este motivo, os humanos tinham de os manter contentes, com orações, oferendas e sacrifícios para que estes lhes fossem favoráveis e trouxessem fortuna e prosperidade à cidade. Se isso não acontecesse, podiam trazer guerra, inundações e outros desastres.

Zigurate, o primeiro templo da história
Na Mesopotâmia, no centro de cada cidade num lugar mais elevado, existia sempre um zigurate, ou seja, um templo em forma helicoidal ou em caracol ascendente. Este templo é comum a todas as civilizações à volta dos rios Tigre e Eufrates: Suméria, Acádia, Assíria e Babilónia.

A filosofia de vida da Suméria no poema de Gilgamesh – primeira obra da literatura mundial
Na história épica do herói Gilgamesh, rei de Uruk, a primeira pérola da literatura mundial escrita em placas de argila por volta do ano 3 400 a.C. na escrita cuneiforme inventada pelos sumérios descreve-se a humanidade representada em Gilgamesh, despertando do seu longo sono de inconsciência, dando-se conta, ao mesmo tempo, da sua brutalidade, mas também da sua cultura e sabedoria.

Gilgamesh dá-nos uma ideia de como o ser humano se vê a si mesmo e o mundo à sua volta. Vence todos os seus inimigos e obstáculos que se apresentam, e vê-se como um ser todo-poderoso, por isso, não aceita as suas limitações, sobretudo a sua mortalidade. Não é perfeito e no poema começa por ser um mau rei, o que leva o povo a protestar junto de deus. Mas depois a sabedoria vai-o domesticando, revelando-se uma pessoa de grandes sentimentos, sobretudo de amizade pelo seu amigo Enkidu.

Muitas realidades se concentram nesta história, sentimento de solidão, amizade, perda de um ente querido (o seu amigo Enkidu), amor, vingança e o medo da morte. Gilgamesh é um líder, um varão forte, destemido e bonitão, meio deus meio humano. Rei da cidade-estado de Uruk na velha Suméria.

Tem uma vida sexual desenfreada, instintiva, sem sentimentos, mas quando conhece o seu amigo Enkidu descobre a afeição por um amigo, coisa que nunca tinha encontrado em nenhuma mulher. Este afeto leva-o a pôr de lado o sexo e o prazer, ou seja, a trocar o Eros pela Philia. Doravante não lhe interessam as mulheres e não se deixa seduzir nem por Enki a deusa da guerra e do amor.

Nesta cultura, o homem é dominante porque as mulheres não conseguem controlar o sexo e o amor (eros). Amor e guerra são atos emocionais, não da razão, daí o facto de ambas realidades serem representadas na mesma divindade ao contrário da mitologia grega e romana. O líder é masculino, alguém que sobressai em relação aos outros, pela sua força física, coragem e sabedoria. Porém, entre os reis da Suméria há uma lista que inclui uma mulher, Kubaba, como rainha da cidade-estado de Kish.

Gilgamesh luta contra a fatalidade de mortalidade e procura uma maneira de derrotar o inevitável. No final, após ser incapaz de encontrar a imortalidade e uma maneira de reviver a sua vida, Gilgamesh encontra paz na morte.

Invenções
A Suméria é famosa pela invenção da cerveja e tinha até uma deusa chamada NinKasi como deusa da cerveja. Os sumérios inventaram a roda, o arado, o arco, o bronze e a medição do tempo, dividindo a hora em 60 minutos, o minuto em 60 segundos.

O IMPÉRIO ACÁDIO
Ao não haver obstáculos nem a norte nem a sul, nem a este ou oeste, neste mesmo lugar da Mesopotâmia várias civilizações se sucederam até à consolidação dos grandes impérios. Enquanto isto acontece, o Egito, como adiante veremos, desenvolve a sua própria civilização, a escrita hieroglífica e a sua própria forma de entender a vida.

Por volta de 3 000 a.C., os sumérios tiveram um intercâmbio cultural significativo com um grupo do norte da Mesopotâmia, conhecido como os acádios – em homenagem à cidade-estado de Akkad. A língua acádia está relacionada com as línguas semíticas do hebraico e do árabe.

O termo semítico provém do personagem bíblico Shem, filho de Noé, o suposto progenitor de Abraão e, consequentemente, do povo judeu e árabe. Por volta de 2 334 a.C., Sargão de Akkad chegou ao poder e estabeleceu o que pode ter sido o primeiro império dinástico do mundo. O Império Acádio governou tanto os falantes acádios como sumérios na Mesopotâmia e no Levante – a Síria moderna e o Líbano. O Império Acádio entrou em colapso em 2 154 a.C., aos 180 anos após a sua fundação.

IMPÉRIO ASSÍRIO
A Assíria, deve o seu nome à sua capital original, a antiga cidade de Ashur, no norte da Mesopotâmia. Ashur foi originalmente uma das várias cidades-estado de língua acádia, governadas por Sargão e seus descendentes durante o Império Acádio. Centenas de anos após o colapso do Império Acádio, a Assíria tornou-se num grande império.

Durante grande parte dos 1 400 anos desde o final do século XXI a.C. até ao final do século VII a.C., os assírios de língua acádia foram a potência dominante na Mesopotâmia, especialmente no Norte. O império atingiu o seu auge perto do final deste período, no século VII. Nessa altura, o Império Assírio estendeu-se desde a fronteira do Egito e Chipre, a Oeste, até às fronteiras da Pérsia – atual Irão – a Leste.

BABILÓNIA
Por fim sucede-se a grande Babilónia, onde os judeus, segundo reza a Bíblia, estiveram exilados. Uma das obras mais importantes da cultura da Babilónia foi a compilação por volta de 1 754 a.C., de um código de leis, chamado Código de Hamurabi, que espelhou e melhorou as anteriores leis escritas da Suméria, Acádia e Assíria. O código de Hamurabi é o código de leis mais antigo do mundo. Escrito por volta de 1 754 a.C., pelo sexto rei da Babilónia, Hamurabi, o Código foi escrito em estelas de pedra –lajes – e tábuas de argila. É constituído por 282 leis, com punições em escala, em função do estatuto social, ajustando "um olho por um olho, um dente por um dente", para evitar a espiral de violência.

O Império Babilónio, fundado por Hamurabi, durou 260 anos, até que a Babilónia foi saqueada por invasores em 1 531 a.C. No período entre 626 a.C. e 539 A.C., a Babilónia voltou a afirmar-se na região com o Império Neo-Babilónio. Este novo império foi derrubado em 539 a.C. pelos persas que passaram a governar a região até à época de Alexandre, o Grande, em 335 a.C.

O mito babilónio da criação
Para além do código mais antigo de leis, a Babilónia possui também o mito mais antigo da criação do universo e dos seres humanos. Reza que, no princípio, existiam o deus Apsu e a deusa Tiamat que tiveram vários filhos. Como os mais novos eram barulhentos quando brincavam e Apsu não conseguia dormir nem trabalhar, decidiu matá-los. Entretanto, os jovens deuses descobriram o plano e anteciparam-se, matando Apsu.

Tiamat prometeu vingança pela morte do marido. Cheios de medo, os deuses rebeldes solicitaram a ajuda do primo Marduk. Este, capturou Tiamat e matou-a, despedaçando posteriormente o seu corpo e espalhando o seu sangue. Assim foi criado o Universo segundo o mito babilónio. Ou seja, a criação é um ato de violência e não de bondade, como no mito bíblico da criação.

A ordem cósmica requer a supressão violenta do feminino e é espelhada na ordem social pela sujeição das mulheres aos homens e dos homens ao seu governante. No princípio era o caos e a violência foi usada para estabelecer a ordem. Fica assim justificado o uso da violência pois, sem ela, não haveria ordem. O mito da violência redentora é a vitória da ordem sobre o caos por intermédio da violência.

Depois da criação do mundo, Marduk atirou para a prisão os deuses que estavam do lado de Tiamat. Como estes protestavam porque a comida na prisão não era boa, Marduk e o seu pai Ea (filho de Apsu), mataram um deles e, do seu sangue, criaram os seres humanos para serem servos dos deuses.

Portanto, segundo o mito babilónio da criação, a violência é natural e está incorporada nos nossos genes. Não foi a humanidade que criou a violência como ato de desobediência a Deus, como no caso do mito bíblico. No mito babilónio, a violência sempre esteve presente, fazendo parte da natureza cósmica e humana. Os seres humanos estão naturalmente incapacitados para a coexistência pacífica e a paz tem de ser imposta a partir de cima, pelo poder reinante. Muito mais tarde é esta a ideia subjacente à “Pax Romana”, imposta pelos romanos.

Os mais espertos e poderosos apresentam-se então perante os outros, como reis, faraós, czares, imperadores, príncipes, sacerdotes e mestres, representantes da bondade e justiça de Deus, com a missão de combater os maus e de os punir.

A violência “legal” dos líderes da sociedade opõe-se à violência “natural” para subjugar os maus, dissuadir os outros das suas más tendências e facilitar a convivência social. Daí nasce a lei de olho por olho e dente por dente, para conter a violência conatural ao ser humano e tornar possível a convivência.

O EGITO DOS FARAÓS
É certamente a cultura mais emblemática e fascinante do mundo antigo, não só pela grandiosidade das pirâmides e tantos outros monumentos que nos deixaram, mas por continuarem a despertar curiosidade no homem de hoje. A arqueologia até mudou de nome para egiptologia, pelos milhões de documentos históricos que esta civilização nos deixou.

A civilização egípcia estende-se por vários períodos diferentes: o Primeiro Reino (3 000-2 660 a.C.), I e II dinastias; o Reino Antigo no início da Idade do Bronze (2 660-2 180 a.C.), III a VI dinastias; o Primeiro Reino Médio (2 180-2 040 a.C.), VII a XI dinastias; o Reino Médio (2 040-1 780 a.C.), XI e XII dinastias; o Segundo Reino Médio (1 780 a 1 560 a.C.), XIII a XVII dinastias; o Reino Novo (1 560-1 070 a.C.), XVIII a XX dinastias; o Terceiro Período Intermédio (1 070-664 a.C.), XXI a XXV dinastias; a Época Baixa (664-332 a.C.), XXVI a XXX dinastias; o Domínio Grego (332-30 a.C.) e o Domínio Romano (30 a.C.-359 d.C.).

O sucesso da antiga civilização egípcia veio, em parte, da sua capacidade de adaptação às condições do vale do rio Nilo para a agricultura. As previsíveis inundações e a irrigação controlada do vale fértil produziram culturas excedentárias, relatadas também na Bíblia na história de José do Egito.

Esta agricultura racionalizada permitiu um aumento considerável da população. Com recursos de sobra, a administração patrocinou a exploração mineira do vale e das regiões circundantes do deserto, o desenvolvimento de um sistema de escrita, a organização de projetos de construção coletiva e agrícola, o comércio com as regiões circundantes e um exército destinado a afirmar o domínio egípcio.

Para motivar e organizar estas atividades existia uma força burocrática de escribas de elite, líderes religiosos e administradores, sob o controlo de um faraó que garantia a cooperação e unidade do povo egípcio no contexto de um elaborado sistema de crenças religiosas.

A vida no Egito
•    “Não separes a tua mente da tua língua e todos os teus projetos serão bem-sucedidos”
•    “Que os teus conhecimentos não sejam motivo de arrogância; aconselha-te tanto com o sábio como com o ignorante”.
Quase todas as pessoas estavam envolvidas na agricultura e provavelmente estavam ligadas à terra. Em teoria, toda a terra pertencia ao rei, embora, na prática, aqueles que nela viviam não pudessem ser facilmente removidos e algumas categorias de terras pudessem ser compradas e vendidas. As terras abandonadas voltavam a ser propriedade do Estado e transferidas para outros que as cultivassem.

Um Estado central forte tornou possível as construções em massa que conhecemos no Egito. A construção das grandes pirâmides da quarta dinastia (2 575–2 465 a.C.), ainda não está totalmente explicada. As casas das pessoas eram feitas de adobe ou tijolos de terra não cozida; os templos, pirâmides, palácios reais e tumbas eram construídos em pedra.

Ao contrário da escrita cuneiforme que permitia escrever outras línguas, a escritura hieroglífica só permitia escrever uma única língua. Porém, é destes hieróglifos que descende o nosso alfabeto, o alfabeto romanao. Esta civilização deixou-nos inúmeras obras literárias, como tratados sobre matemática, astronomia, medicina e magia, bem como vários textos religiosos, recolhidos mais tarde na famosa biblioteca de Alexandria.

No antigo Egito comia-se o todo tipo de carne, inclusive carne de porco. O casamento era monogâmico, o divórcio era possível e fácil, mas dispendioso. As mulheres tinham um estatuto algo inferior ao dos homens; as casadas tinham o título de donas de casa, mas trabalhavam também na agricultura ao lado dos maridos.

O Faraó era divino e a sua divindade era reafirmada em sumptuosos rituais. No entanto, era uma divindade inferior à dos grandes deuses. Ele era a garantia de unidade da sociedade egípcia, bem organizada e hierarquizada. Foi por isso no Egito que o monoteísmo foi inventado, precisamente como fator de união entre as pessoas e as classes sociais.

Foi o faraó Akenaten que promulgou a existência de um só deus, o deus Aten, ou seja, o deus sol em substituição de todo o panteão de deuses. Contudo, este monoteísmo durou pouco tempo. Os egípcios, como todos os povos daquele tempo e lugar, eram naturalmente politeístas. É provável que a ideia de um Deus único dos judeus tenha surgido nesta época e que eles a retivessem durante o período de escravatura no Egito e depois da sua libertação.

Conclusão: No final do Neolítico, entre o Calcolítico e a Idade do Bronze, nasceram as primeiras civilizações humanas à volta dos rios Tigre, Eufrates e Nilo. A terra fértil das bacias destes rios proporcionou uma agricultura excedentária e esta, por sua vez, uma cultura superior, patente nas invenções tecnológicas, na escrita e nos monumentos que nos deixaram estas civilizações, base da civilização ocidental.
Pe. Jorge Amaro, IMC


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