15 de março de 2024

Cosmovisão e a sua expressão

Refletimos que a cosmovisão é como a placa-mãe de um computador à qual se agregam elementos como, mitos, lendas, contos populares, crenças, rituais, religiões, arquétipos, símbolos, normas ou regras e valores. Todos estes conteúdos são de alguma forma abstratos, virtuais e precisam de um suporte físico para se fazer ver.

Podemos estudar a cosmovisão de povos antigos que já não existem, os seus mitos e lendas, os seus símbolos e crenças, pelos documentos que nos deixaram. Sabemos muito da cosmovisão, da maneira de viver e pensar de povos como os Vikings do norte da Europa, dos Maias e dos Aztecas da América Central

Para descobrir a estrutura do pensamento de um povo, a sua cosmovisão e os elementos que a compõem, como os mitos e crenças, a religião, as regras e valores, precisamos de estudar os veículos onde esses elementos se encontram plasmados ou expressados. Essas formas de expressão coincidem com as sete artes clássicas. Preferimos dividi-las de uma forma mais antropomórfica, usando os nossos cinco sentidos: artes literárias, gráficas, visuais, auditivas, audiovisuais.

ARTES VISUAIS:  arquitetura, escultura
As primeiras coisas que o ser humano fabricou - martelos de pedra, machados e facas de pedra lascada – foram utensílios que mais tinham a ver com a ciência que com a arte. Estes utensílios estavam ligados ao conhecimento das coisas e à sobrevivência num mundo hostil. Referimo-nos à Idade da Pedra e dos Metais, há milhares de anos, portanto.

Imediatamente após a saída do homem de África, há cerca de 150 000 anos, as primeiras manifestações artísticas que porventura tinham também o objetivo prático de ensinar técnicas de caça, foram as pinturas rupestres, relacionadas com as artes gráficas, pois são, de alguma forma, antepassadas da escrita.  

As três construções mais antigas da humanidade pertencem à primeira civilização humana que o nosso planeta conheceu, o Crescente Fértil, hoje chamado Médio Oriente. São elas: Tell Qaramel, construída há cerca de 11 000 anos AC na Síria, 25 Km a norte de Aleppo; Göbekli Tepe, construída há 9 600 AC no sudeste da Turquia, a 12 km da cidade de Sanhurfa e a Torre de Jericó construída há 8 000 AC nesta que é a cidade mais antiga do mundo.

Podemos estudar as diferentes cosmovisões, desde as mais antigas à mais moderna, pelo tipo de construções criadas pelo ser humano. Os antigos não faziam palácios sumptuosos com piscina e todos os luxos para habitar.

Mais preocupados com o Além do que com o aqui e agora, verifica-se que desde as pirâmides dos egípcios, dos Maias e dos Aztecas, aos zigurates da Mesopotâmia, passando pelas catedrais góticas e pelos templos hindus e budistas, a transcendência, a religião são o principal motivo para construir, não a política nem o bem viver.

É caso para pensar… que deixa para a posteridade este mundo materialista, consumista, utilitarista, pragmático, ateu, agnóstico? Nada ou reflexos do seu vazio interior, arranha-céus, as pinturas chamadas de modernas e contemporâneas que não são mais que quatro rabiscos que uma criança do ensino básico também podia fazer. O ser humano moderno não cria arte, por isso o turismo de hoje vive da arte criada pelos antigos há muitos, muitos anos.

ARTES GRÁFICAS: pintura, desenho, escrita
As pinturas rupestres mais antigas encontram-se na Península Ibérica e França, sendo a mais antiga de há 62 000 anos. No progresso da pintura para a escrita, o documento mais antigo do mundo vem precisamente da cultura mais antiga também, a suméria do Crescente Fértil - a escrita cuneiforme da antiga Mesopotâmia, anterior aos hieróglifos egípcios.

As pinturas rupestres ilustram a cosmovisão do homem pré-histórico, a sua vida, os seus costumes e até os seus sentimentos. Estas gravuras ou manifestações artísticas do Paleolítico, Mesolítico e do Neolítico representam frequentemente cenas de caça, mas também danças e outras cenas da vida diária, fenómenos cósmicos, mitos religiosos, costumes, campanhas militares.

Desde que o Homem começou a pintar, nunca mais deixou de o fazer. Muito do que sabemos das primeiras civilizações da Mesopotâmia, Egito e Grécia foi-nos transmitido por estas gravuras, imagens, desenhos, grafitis deixados por estas civilizações.

A imagem foi a primeira forma de expressão do ser humano e foi a evolução desta forma de expressão por imagens que nos levou aos pequenos desenhos que traduziam ideias - a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, juntamente como os hieróglifos egípcios, que foram os antecessores do alfabeto grego e romano.

Outras línguas, como o chinês, mantiveram e mantêm até aos nossos dias uma escrita pictórica, ou seja, cada letra é uma pequena gravura ou desenho que representa um conceito, uma ideia; por isso necessitam de milhares de desenhos para se expressarem. Se considerarmos que o ser humano começou a usar imagens há 40 000 anos e que a escrita só foi inventada há 3 500 anos, a imagem pode ser considerada como a pré-história da escrita.

Desde o início, a imagem nasceu da comunicação e para a comunicação; nasceu da necessidade de comunicarmos e também como forma de comunicação. Atingiu o seu apogeu na segunda metade do século XX, quando foi inventada a fotografia, ou seja, a fixação ou gravação da imagem em fotografia. Na nossa sociedade visual, é frequente ouvir que “uma imagem vale mais que mil palavras”.

ARTES LITERÁRIAS: literatura, provérbios, ciências humanas
Se o ser humano fosse um ser solitário como o tigre, nunca teria desenvolvido uma língua. A língua nasceu no seio da sociedade, da comunidade, como forma de os seres humanos comunicarem entre si. Esta necessidade aconteceu quando os humanos se tornaram bípedes e conseguiram olhar-se nos olhos.
Começou provavelmente por expressar necessidades, como acontece quando viajamos para um país estrangeiro cuja língua não falamos e procuramos comunicar as nossas necessidades por sons e gestos. Numa fase posterior, os seres humanos expressaram emoções, sentimentos, e, mais tarde, pensamentos.

O que verdadeiramente cria um povo é uma obra literária. É impensável o povo judeu sem a Torah, sem os livros da lei e os profetas. O que define e caracteriza o povo grego são a Ilíada e a Odisseia de Homero; ex libris do povo italiano é a Divina Comédia de Dante Alighieri; o que define o carácter do povo espanhol é o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes; a alma russa encontra-se em Dostoievski no seu livro Os Irmãos Karamazov. A alma portuguesa ou lusitana está nos Lusíadas de Camões.

Para o rei D. Afonso Henriques, Portugal eram as suas terras, os seus domínios. Foi Camões que criou a nacionalidade; que nos deu uma pré-história, os feitos dos lusitanos, que descreveu o nosso caráter e a nossa história no decorrer da grande epopeia da nossa nação, a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Foi fiel às raízes da nossa língua, escrevendo em verso ao estilo das cantigas de amigo, berço do português.

O provérbio é decerto o género literário que concentra mais a cultura, a idiossincrasia e a cosmovisão em menos palavras. Fácil de recordar porque rima, frequentemente deita mão de uma metáfora ou comparação, ou seja, não usa nunca a linguagem abstrata, mas sim a narrativa e metafórica. O provérbio passa de geração em geração mais facilmente que outra forma de cultura porque é fácil de recordar; as pessoas usam-no na sua vida diária como conselho e como forma de justificar e encorajar comportamentos específicos.

ARTES AUDITIVAS:  música, oratória
A palavra música é de origem grega e significa a “arte das musas”. É constituída por uma associação de sons entremeados por pausas ou curtos períodos de silêncio ao longo de um determinado tempo. A música é, de facto, a arte de combinar sons com silêncio. A história da música acompanha a par e passo o desenvolvimento da inteligência, da linguagem e da cultura humanas. Também há quem pense que a música é anterior à humanidade, se considerarmos o canto melodioso de alguns pássaros.

É provável que na espécie humana a música tenha surgido há 40 000 anos, a julgar pelas cenas de dança que aparecem nalgumas pinturas rupestres e que sugerem um provável acompanhamento musical. Ao longo do tempo, foram aparecendo flautas primitivas e outros instrumentos, como o xilofone. Os instrumentos musicais dividem-se em três tipos: de percussão, de cordas e de sopro. A voz humana é o instrumento musical mais complexo, pois é, ao mesmo tempo, de cordas e de sopro.

A palavra comunica o pensamento, a música comunica o sentimento, a emoção. Neste sentido, é a linguagem de comunicação universal, utilizada como forma de sensibilizar para uma causa, para fins religiosos, para protestar, para acompanhar filmes e intensificar uma mensagem ou emoção. Um filme de terror sem música que lhe é própria, não aterrorizaria ninguém. Tal como a língua, faz parte da idiossincrasia de um povo e fala da sua cultura - por isso existe a chamada música popular. Traduz atitudes, sentimentos e valores culturais de um povo.

Oratória é a arte de falar em púbico comunicando ideias, ideologias e pensamentos com eloquência, articulação e clarividência, no intuito de ensinar ou persuadir os ouvintes e motivá-los a determinada ação. É uma arma muito importante na política e na religião, para o bem e para o mal. Tanto os grandes políticos e filósofos como os profetas foram bons oradores, como Nelson Mandela, Mahatma Ghandi, Martin Luther King. Porém, também os grandes ditadores tinham o mesmo poder de convencer, como Hitler e Estaline.

A oratória tem o dom de unir as diferentes e dispersas vontades numa só, faz de muitas cabeças uma só; transforma os indivíduos numa comunidade ou numa massa, num rebanho, tanto para o bem como para o mal.  

ARTES AUDIOVISUAIS: teatro, cinema, dança
As artes audiovisuais combinam o som e a imagem. Por isso têm mais força que o som e a imagem em separado. O teatro, o cinema e a dança são algumas das mais importantes artes que movem as multidões e também a economia.

Antigamente, os grandes atores de cinema iniciavam a sua carreira no teatro, e o cinema era mais parecido com o teatro. Favoreciam-se aptidões como a expressividade, tanto linguística como corporal, a dicção, o timbre de voz. Hoje, o cinema é mais ação que diálogo, pelo que os dotes do ator de teatro ficam mais reservados ao teatro e menos ao cinema. O teatro está em franca decadência se o compararmos com o cinema.

Inicialmente, o cinema pretendia comunicar valores, dentro do binómio herói/vilão, em que o herói sempre vencia. O cinema moderno, porém, já não é usado com fins pedagógicos, mas sim para mostrar a realidade tal qual ela é; por isso, vemos muitas vezes a injustiça triunfar sobre a justiça, a mentira sobre a verdade e o crime sobre a lei e a ordem. Esta situação é perigosa, pois quem vê estes filmes, sem consciência crítica, sobretudo as gerações mais jovens, pode crescer na convicção de que o ser e o dever ser são uma e a mesma coisa, de que na vida vale tudo…

A dança sempre foi uma manifestação cultural muito importante. Culturalmente, pode dizer muito pouco o ballet ou a dança clássica; mas um tango diz muito da cultura argentina, um passo doble diz muito da cultura espanhola, e o samba representa bem a cultura brasileira. Todos os povos têm uma forma própria de bailar. Se quem canta reza duas vezes, quem dança reza três.

“Ars lunga vita brevis”, a arte é eterna, a vida é breve. Ao cultivar uma arte, o indivíduo entra numa relação simbiótica com ela. Ele dá-lhe a sua temporalidade, elevando essa arte a um novo máximo ou record; ela dá-lhe a sua eternidade, tanto na mente da comunidade humana, humanizando-o, como na mente de Deus, fazendo-o seu filho.

Conclusão: "Ars lunga vita brevis" - "As artes são eternas, a vida é curta" Usa a tua vida para cultivar artes e valores humanos e serás eterno, viverás para sempre, em Deus e na memória da humanidade.
Pe. Jorge Amarao, IMC




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