1 de novembro de 2016

Confessar-se directamente a Deus

É muito frequente encontrar católicos que dizem que não precisam de sacerdote para reconciliar-se com Deus; dizem, “se Deus conhece bem os nossos pecados, e é Ele que perdoa, para que serve o sacerdote? Confesso-me diretamente a Deus”.

Com efeito, no sacramento da reconciliação o sacerdote é somente um intermediário, que medeia entre o penitente e Deus; atua “in persona Christi”, ou seja, representa a Cristo que é quem de facto perdoa. Associados ao capitalismo, os intermediários estão hoje muito mal vistos. Mediando entre produtores e consumidores, são vistos como parasitas da sociedade pois são os que mais, e os que sempre lucram em qualquer transacção comercial.

O consumidor procura comprar directamente ao produtor porque compra mais barato; e o produtor procura vender directamente ao consumidor pois vende mais caro. Em cada vez mais situações os intermediários ficam de fora. Quer queiramos, quer não, a prática do sacramento da reconciliação tem sido negativamente influenciada por esta ideologia negativa a respeito da pessoa do intermediário.

No entanto, e apesar do dito, o sacramento da reconciliação continua a fazer sentido por razões que têm que ver com a mesma natureza humana assim como por razões bíblicas e teológicas.

Razões de natureza humana
O homem é intrinsecamente um ser social porque a sua individualidade - carácter e personalidade, é o resultado da interação com os outros, a começar pelos pais, seguidos dos irmãos, tios, primos, professores, catequistas, colegas de escola etc. Porque se formou na interação, esta mesma interação, muito mais que a introspecção, é um meio privilegiado para o ser humano se conhecer a si mesmo como pessoa.

Diz-se que a cara é o espelho da alma pois é a parte do nosso corpo que mais nos define; e precisamente a cara é também a única parte do nosso corpo que não podemos ver directamente. Vemos a sua imagem num espelho, não a vemos tal qual ela é, pois não há espelhos perfeitos. Só os outros a vêm tal qual ela é; da mesma forma, para ver bem o nosso íntimo precisamos da ajuda de outro.

A Janela de Johari diz-nos que o nosso EU, está dividido em 4 instâncias e dessas quatro só somos conscientes de duas:

  • Eu aberto – Constituído por tudo o que, eu e os outros sabem de mim pela minha partilha; actividades e projectos públicos e conscientes, assim como os sentimentos partilhados.

  • Eu Cego – Constituído pela linguagem corporal e por toda a espécie de mecanismos e dos quais os outros se dão conta e eu não. Eu posso ter um cisco na cara que é visível aos outros e não a mim; só os outros me podem ajudar a possuir esta dimensão da minha personalidade. Só quem está fora da floresta pode ver a floresta, quem está dentro só vê arvores. Até Jesus para possuir esta dimensão pergunto aos seus discípulos “Quem dizem os homens que eu sou?”. Precisamos do “feedback” dos outros para saberemos verdadeiramente quem somos.

  • Eu secreto – Constituído pelas motivações secretas do meu comportamento; sentimentos ocultos, a minha privacidade e os meus segredos; ou seja, aquilo que eu conheço, mas não quero que os outros saibam de mim.

  • Eu desconhecido – Constituído pelos mecanismos de defesa, e por tudo o que Freud chama de inconsciente, e que é a causa de uma variedade de comportamentos para os quais nem eu nem os outros têm explicação. Como conhecer significa poder e controle, o que eu conheço de mim eu posso controlar; o que não conheço controla-me a mim. Para conquistar cada vez mais terreno ao meu inconsciente também preciso da ajuda dos outros.

Para atingir a vida em plenitude, a pessoa humana deve possuir liberdade de movimentos e de expressão, ser independente e senhor do seu destino, ser autónomo e responsável pelas suas opções. Neste sentido, o ser humano não obedece a nenhuma instância para além da sua consciência moral que se supõe bem formada e informada.

Porém, como diz o proverbio, “Ninguém é justo juiz em causa própria”. Nem sempre a consciência moral está bem formada e informada; há consciências morais escrupulosas, que veem o mal onde este não existe, e se culpabilizam para além do que é razoável, e há consciências morais laxas que não veem o próprio mal.

Exemplo disto é o caso do rei David que cometeu adultério com a mulher de Urias e enviou este para a frente da batalha para que fosse ferido mortalmente; depois de tudo isto fazer não se sentiu culpado, foi preciso o profeta Nathan lhe contar uma parábola que espelhava bem a magnitude do seu pecado, para que David reconhecesse o crime por si cometido. (2.º Samuel 11- 12).

É certo que quando tenho problemas físicos recorro a um médico; quando tenho problemas psíquicos recorro a um psicólogo; a quem devo recorrer quando tenho problemas morais e a minha consciência me acusa? Como posso eu libertar-me da culpa sem a ajuda de alguém?
   
Há estudos que revelam que os católicos praticantes, porque têm o sacramento da reconciliação, precisam menos de psicólogos e de psiquiatras que os protestantes que não o têm. Todos conhecemos a necessidade de desabafar, para isto precisamos de um amigo, de um sacerdote ou de um psicólogo para faze-lo em segurança; não podemos desabafar sozinhos para uma parede, precisamos de alguém que nos ouça empaticamente.

Só me liberto da culpa se a partilho com alguém o que não sai fora de mim, e é escutado por alguém, fica dentro de mim envenenando o meu íntimo. Os judeus experimentavam uma catarse libertadora quando projectavam todas as culpas sobre um bode, chamado bode expiatório. Há certos pecados e certas culpas das quais não nos podemos libertar sozinhos, e confessa-las directamente a Deus não ajuda, precisamos de as assumir e chorar sobre uns ombros concretos e só assim nos podemos libertar delas.

O remorso da culpa e a obsessão do trauma são mecanismos psicológicos e morais dos quais a pessoa não se pode libertar sozinha. Recordemos o primeiro filme do Exorcista, a rapariga só se sente libertada do demónio que a possui quando este sai dela e entra no sacerdote que a está a exorcizar. Da mesma forma só nos sentimos verdadeiramente livres de assuntos que nos perturbam quando alguém psicologicamente e moralmente qualificado nos ouve.

Porque somos seres sociais, só nos podemos livrar de certas coisas que envenenam a nossa alma, desabafando com uma pessoa qualificada para nos ouvir. Por esta razão, Jesus deu aos sacerdotes a faculdade para perdoar os pecados em seu nome, tanto individualmente no confessionário como comunitariamente numa absolvição geral no contexto de uma celebração penitencial comunitária.

Razões bíblicas ou teológicas
Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem, na terra, poder para perdoar pecados - disse Ele ao paralítico: 'Levanta-te, toma o teu catre e vai para tua casa.» E ele, levantando-se, foi para sua casa. (Mateus 9, 6-7)

Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que
desligares na terra será desligado no Céu.» (Mateus 16, 19 e João 20, 21-23)

“Confessai, pois, os pecados uns aos outros e orai uns pelos outros para serdes curados. A oração fervorosa do justo tem muito poder”. (Tiago 5,16)

O sacerdote, Homem de Deus consagrado para representar a Cristo “bode expiatório” dos pecados de toda a humanidade, cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, é de por si um sacramento, ou seja uma pessoa visível que representa Deus invisível. Continuador da obra de Jesus que incluía a faculdade de perdoar os pecados; pontifex ponte entre Deus e os homens pelo que, não estando ainda com Deus, vive já na terra a vida que todos viveremos no céu, por isso representa a Cristo e é o seu embaixador para continuar na terra aqui e agora o que Cristo iniciou à dois mil anos em Israel.

Absolução individual ou comunitária?
Para que haja sacramento tem de haver alguém que represente a Cristo; esse alguém é o sacerdote que pelo sacramento da Ordem foi revestido e investido com as mesmas funções que Cristo exerceu enquanto viveu entre nós.

Não é imprescindível que o sacerdote ouça os nossos pecados; como acontece em celebrações penitenciais comunitárias e individualmente quando confessamos alguém que fala uma língua que nós desconhecemos, como acontece nos primeiros anos nas missões. O que é imprescindível para que haja sacramento, é a presença do sacerdote.

Em Marcos 2, 1-12 Jesus disse ao paralítico: “Os teus pecados estão perdoados” Jesus perdoou os pecados do paralítico sem os conhecer, sem ouvir o paralítico confessa-los. Perdoo-lhos porque grande era a sua fé de que encontraria saúde junto de Jesus.

Quando o sentimento de culpa é grande, precisamos de desabafar ou de direção espiritual, é bom recorrer à confissão individual; como somos seres sociais, do ponto de vista pastoral, psicológico e pedagógico, a confissão e absolução individual têm mais força e a alegria de nos termos libertado do peso da culpa é muito superior pelo que a confissão individual é de preferir sempre que possível.

Porém quando não é possível e de todo impraticável a confissão uma celebração comunitária onde depois de um exame de consciência extensivo e intensivo guiado pelo sacerdote, que traz à consciência as nossas faltas e provoca no nosso coração o arrependimento, a absolvição geral e comunitária do sacerdote tem o mesmo valor teológico e sacramental que a individual.
Pe. Jorge Amaro, IMC



1 comentário:

  1. Bom dia Jorge um belo texto que todos deviam ler ,nós católicos temos tantos defeitos e um deles e acharmos que nos bastamos a nós próprios ,o egoísmo pessoal e a fragilidade nos consomem tantas vezes sobrepondo-se tantas vezes a tudo o que nos ensinaram ,abençoada terça-feira ,um grande abraço

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