1 de abril de 2024

Cosmovisão, Ciência e senso comum

Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a Terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra.» Deus disse: «Também vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da Terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para que vos sirvam de alimento.

E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a Terra, igualmente dou por alimento toda a erva verde que a terra produzir.» E assim aconteceu. Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia.
Génesis 1, 28-31

A ciência veio substituir o mito na explicação da realidade. Os romanos viam as tempestades como batalhas entre os deuses; os gregos entendiam que os raios eram lanças dos deuses contra os humanos. Hoje sabemos que as tempestades se formam quando ar quente e húmido sobe rapidamente para as camadas mais altas e mais frias da atmosfera, formando nuvens e chuva. Os raios são uma forma de eletricidade que se desenvolve dentro das nuvens. O trovão é provocado pelo ar quente que se dilata até rebentar.

Desde as origens da humanidade, a nossa espécie tem perseguido afanosamente o conhecimento. Chamamos ciência ao conjunto de técnicas e métodos utilizados para alcançar o conhecimento. Substantivo proveniente do latim, “scientia”, faz referência ao verbo scire, ou seja, saber.  O Homem foi criado no último dia da criação, pois Deus descansou no sétimo, é a ciência que faz dele o rei da criação. Por ela, o Homem, domina, controla e administra os bens que Deus colocou nas suas mãos.

Ciência – arte – cultura – cosmovisão
O ser humano expressa a sua idiossincrasia, a sua forma de ser, de proceder, o seu pensamento, os seus valores, religião, crenças, filosofia, etc., nas artes e não na ciência. A arte expressa conhecimento, a ciência é um instrumento para conhecer, compreender o mundo à nossa volta, explorando as suas possibilidades no sentido de tornar, pela tecnologia, a nossa vida mais aprazível.

A ciência tem que ver com o nosso pão quotidiano; como tal, é pragmática, objetiva e é trabalho. A arte não tem que ver com o nosso pão quotidiano, pois é o que fazemos por amor; por isso é subjetiva. Há sempre um objetivo naquele que quer conhecer, enquanto o que se expressa numa arte não tem objetivo preciso, procura simplesmente uma forma de expressão. O objeto da ciência é o não conhecido, o da arte é o já conhecido.

O ser humano cultural não se expressa na ciência e a sua cosmovisão não é objeto da ciência nem interessa à ciência. Porém, esta tem o condão de modificar a nossa cosmovisão de um momento para a outro. Pensemos, por exemplo, na revolução copernicana, quando o Homem descobriu que não era o Sol que girava à volta da Terra, mas, pelo contrário, que era esta que girava à volta daquele. Qualquer descoberta científica pode virar o nosso pensamento do avesso e obrigar-nos a repensar as coisas e a olhar para a realidade com outros olhos.

A cultura evolui, a ciência revoluciona
Há revoluções sociais que não têm nada que ver com a ciência. A chamada Revolução Francesa, pode antes ser vista com uma evolução lenta da monarquia absoluta até se tornar obsoleta. Neste sentido, todas as revoluções sociais podem ser vistas como evoluções, para quem tiver olhos para ver e prever, como os profetas de um tempo.

Pura e verdadeira revolução é uma descoberta científica – não se previa e a todos apanha de surpresa. Tem a potencialidade de nos tirar o tapete debaixo dos pés, de nos deixar boquiabertos, confusos, escandalizados, traumatizados e até agressivos. Imaginemos o que foi para as pessoas religiosas quando Darwin descobriu que o ser humano tinha o macaco como parente mais próximo, numa evolução das espécies onde toda as formas de vida vêm de um tronco comum e estão emparentadas umas com as outras. Ainda hoje há gente que rejeita a ideia.

E não é só o povo que rejeita certas descobertas. O próprio Einstein que revolucionou o mundo com a sua teoria da relatividade teve dificuldades em aceitar um postulado essencial da física quântica, o chamado princípio de incerteza de Heisenberg, chegando a dizer que Deus não joga aos dados.

A cosmovisão materialista da qual falaremos largamente é a que governa o mundo da filosofia, ciência e política atuais. Os intelectuais de hoje, se são religiosos, ou seja, se têm fé na existência de Deus, têm vergonha de o afirmar em público, pois a tendência atual é os intelectuais serem ateus ou agnósticos.

Esta atitude materialista perante a vida e a realidade, melhor se coaduna com a física determinista e mecanicista de Newton, que vê o mundo funcionando mecanicamente com a precisão de um relógio, que com a física e mecânica quânticas de hoje, onde até mesmo as leis da natureza escapam ao determinismo. O mundo da física quântica é um mundo mágico, onde o material e o espiritual se tocam, onde o tangível e o intangível se abraçam e o milagre se dá.

As universidades, a política, os intelectuais estão, portanto, desfasados, atrasados, fora de moda, na medida em que ainda não se adaptaram à nova realidade, ainda vivem com uma cosmovisão falsa. Para se atualizarem têm de se divorciar de Newton e casar-se com Heisenberg. O mundo não é nem funciona como eles pensam que é e funciona.

As descobertas científicas que revolucionaram a nossa cosmovisão
No campo da energia

A descoberta do fogo, a aplicação da energia animal (cavalo, burro, boi), os moinhos de vento, as caravelas, os moinhos de água, os moinhos de marés, a máquina a vapor (carvão), os motores de explosão, o automóvel, o barco, o avião (petróleo), a energia hidroelétrica, a energia eólica, a energia solar, a energia nuclear, as baterias que alimentam um sem número de pequenas aplicações que usamos no nosso dia a dia – cada fonte de energia modificou o mundo e a nossa forma de olharmos para ele e de com ele nos relacionarmos.

No campo da biologia e da medicina
O físico inglês Robert Hooke (1635-1702) publicou os primeiros desenhos de células observadas ao microscópio, impulsionando as pesquisas sobre as unidades fundamentais da vida.

A Evolução das Espécies, de Darwin, veio destronar o livro de Génesis como um livro histórico, e provou que a vida no nosso planeta nasceu no mar e proveio de um tronco comum que faz com que tanto plantas como animais tenham relações de parentesco.

A penicilina – o primeiro dos antibióticos, descoberto por acidente pelo escocês Alexander Flemming em 1928 (embora já existissem estudos anteriores sobre o tema), foi um verdadeiro marco na história da medicina, já que passou a salvar incontáveis vidas de várias doenças infeciosas.

A anestesia – o médico americano Crawford Long (1815-1878) usou pela primeira vez o éter como anestésico geral durante uma cirurgia.

O raio X – o alemão Wilhelm Conrad Röntgen é considerado o grande inventor do raio X (apesar de outros cientistas terem estudado os seus efeitos antes e depois da descoberta), uma forma de radiação eletromagnética que consegue penetrar em objetos sólidos e que passou a permitir que os diagnósticos médicos fossem mais rigorosos, não se baseando apenas em sintomas e cirurgias.

A genética – o monge austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884) criou a ideia de gene, ao estudar os diferentes tipos de ervilhas que nasciam de sucessivos cruzamentos.

A dupla espiral do ADN: a belíssima estrutura do ADN foi creditada aos cientistas Francis Crick e James Watson em 1953. O que surgiu daí: a engenharia genética cresceu muito nos últimos 50 anos, chegando à discussão ética de poder “copiar” seres vivos o que se fez com a ovelha Dolly.

O inconsciente – o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) publicou nesse ano o seu Estudo sobre a Histeria, demonstrando que o homem não domina completamente a mente e propondo a ideia de que o inconsciente é o responsável pelos desejos e sonhos e por tantos comportamentos reativos do nosso dia a dia.

No campo da guerra
Desde a descoberta do ferro, e da invenção da pólvora, o ser humano parece ser mais criativo e motivado pelo ódio que pelo amor. Muitas descobertas nasceram no âmbito da guerra e só depois foram encontradas aplicações pacíficas para as mesmas. A bomba atómica transformou-se em energia nuclear, o sistema usado nos mísseis teleguiados transformou-se em GPS para nos guiar a nós.

O radar – a equipa de pesquisadores liderada pelo físico escocês Robert Watson-Watt (1892-1973) criou o primeiro radar. Embora fosse originalmente um instrumento de guerra, o radar é atualmente fundamental para a navegação.

O raio laser – Theodore Maiman (1927-) construiu o primeiro laser. Entre outros usos, estes raios servem hoje como bisturis na medicina, réguas na ciência e arma militar.

No campo das comunicações
A prensa de Gutenberg, a fotografia, o cinema, a gravação de som, a rádio e a televisão, o computador que surgiu como uma máquina de escrever com memória, são hoje transversais a toda a atividade humana e integram a maior parte das máquinas que o homem criou, desde o automóvel ao avião, passando pela máquina de lavar.

O telégrafo, o telefone, o fax, a internet, o telemóvel, revolucionaram a forma como os humanos comunicam entre si   e transformaram o mundo já globalizado numa casa comum.

O transístor – os americanos John Bardeen (1908-1991) e Walter Houser Brattain (1902-1987) criaram o transístor. Imagine o mundo sem transístores: não haveria computadores pessoais nem telemóveis.

O satélite artificial – A extinta União Soviética lançou o Sputnik 1 – uma esfera de 58 centímetros de diâmetro e 84 quilos de peso. Os satélites revolucionaram o mundo das comunicações.

No campo da física e mecânica quântica  
A teoria do Big Bang, do padre Georges Lemaître, postula que o Universo teve origem na explosão de um ponto ínfimo, que condensava toda a matéria existente. Por esta teoria, já não é só a Bíblia que fala do princípio e do fim do mundo, pois estes são também o objeto da ciência. Por isso, muitos dizem agora que a Bíblia tinha razão.

A descoberta do telescópio por Galileu para observar a macro realidade e a do microscópio para observar a micro realidade, estão na base dos avanços registados na física moderna, a começar pela teoria da relatividade que revolucionou a forma como o ser humano entende o universo, o espaço e o tempo; que nos disse que a matéria é uma forma de energia e a energia uma forma de matéria. A descoberta das partículas subatómicas e do mundo mágico e imprevisível que elas formam ainda não mudou a nossa forma de pensar, a nossa cosmovisão, mas não tarda que isso aconteça.

Ciência e “cultura aplicada”, ou seja, senso comum
O senso comum é uma forma de conhecimento com base na experiência quotidiana e na opinião pública de um determinado grupo social ou cultura, que é transmitido de geração em geração. É composto por valores e tradições e opera com base numa lógica de probabilidades que garante a confiança do indivíduo de poder viver e relacionar-se da forma mais adequada com o seu mundo, ou seja, que garante a sua forma de ser e estar na vida.

Muito deste senso comum vem da nossa própria experiência, quando aprendemos com os nossos erros. No entanto, a vida é curta, não há tempo para efetuar todas as experiências, além de que seria perigoso fazê-lo, pelo que também podemos aprender com os erros dos outros. Por exemplo, não preciso tomar drogas para saber que são nocivas para a saúde.

Neste sentido, o senso comum é positivo. Por outro lado, o assimilar acriticamente postulados que vêm do passado sem os comprovarmos, abre a porta aos clichés culturais e preconceitos que vão passando de geração em geração, sem que ninguém os ponha à prova ou os confronte. No confronto com o conhecimento científico, com a realidade do presente, alguns destes postulados podem revelar-se como completamente irracionais e, no entanto, as pessoas continuam a agarrar-se a eles porque lhes dão um sentido de segurança. Há um provérbio que explica esta atitude: “Vale mais o mal conhecido que o bom por conhecer”.

O cientista é o que pesquisa para obter conhecimento, para esclarecer uma dúvida, para resolver um problema, para explicar uma reação ou um fenómeno da natureza. Ao contrário do senso comum que muitas vezes consta de uma crença que, mesmo sem verificação empírica, ninguém põe em dúvida, a ciência começa por duvidar de tudo e de todos, já que as aparências iludem.

A ciência nasce como reação ao senso comum. Porém, o senso comum integra a descoberta científica que passa a fazer parte da opinião pública e a ser sinónimo de senso comum. A ciência de ontem vulgarizada, ou seja, assimilada pelo povo, transforma-se em senso comum, da mesma forma que uma descoberta científica encontra a sua aplicação prática na tecnologia.

A ciência mudou a forma como olhamos para o mundo. Esta constatação deu origem ao positivismo como corrente filosófica, que entende que a ciência é o caminho para o progresso e ordenamento da sociedade. É precisamente neste ponto que choca com o senso comum que não quer perder o lugar que ocupa na mente das pessoas.

Há muito que a ciência deixou de ser a expressão da curiosidade inata do ser humano que quer conhecer pelo mero prazer de conhecer. A investigação de ponta requer dinheiro e gera muito dinheiro em patentes tecnológicas. A ciência não é desinteressada no nosso mundo capitalista, é uma mina de ouro. Por isso, o povo ataca-a com mil e uma teorias da conspiração, umas verdadeiras, outras falsas, disseminadas pelas redes sociais.

No caso da medicina, os médicos receitam químicos por tudo e por nada. Em vez de aconselharem as pessoas a fazer exercício, a mudar de dieta, dão um comprimido para reduzir o colesterol que vai desestabilizar o equilíbrio natural do corpo, isto porque os lucros das farmacêuticas são enormes. Uma das razões da morte da minha mãe, confirmada por um médico, foi o facto de estar excessivamente medicada. Não deixa de ser irónico, pois se estava excessivamente medicada é porque excessivamente a medicaram os próprios médicos.

Dissemos que a ciência parte da dúvida e que o senso comum assenta numa crença. Em relação à ciência em si, os cientistas têm uma crença cega na sua capacidade de construir um mundo melhor, enquanto o senso comum, hoje na vanguarda da cultura, duvida mais do que nunca da ciência e dos seus objetivos pouco claros.

A ciência dá lucro, o senso comum é grátis, está orientado para a defesa da vida humana; a ciência nem sempre é a favor da vida humana, procura solucionar o imediato sem ter em conta as repercussões ou efeitos secundários. Por exemplo, o trigo e o milho geneticamente modificados para combater as pestes, acabam por matar as borboletas monarca e desequilibram a natureza. Muitas vezes, a ciência soluciona um problema criando dois ou três. Como diz o povo e bem, não morreu da doença, morreu da cura.

Conclusão: Uma descoberta científica modifica primeiro a nossa maneira de ver a realidade, ou seja, a nossa cosmovisão; posteriormente, a aplicação tecnológica dessa descoberta vai, eventualmente,  modificar a cultura.
Pe. Jorge Amaro, IMC


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