Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes; durante a noite, e não tenho sossego. (…) O meu coração murmura por ti, os meus olhos te procuram; é a tua face que eu procuro, Senhor. Salmo 22, 2; 27, 8.
Religião e revelação
O povo de Israel nunca se contentou com esta comunicação, tão deficitária, e vivia num contínuo desassossego. Religião, do latim “religare”, significa relação com Deus e com o próximo. Desde que a espécie humana tomou consciência de si mesma que acredita na possível existência de um ser superior, transcendente a tudo e a todos, por ser Criador de tudo e de todos. Em todo o tempo e em todo o lugar, o homem procurou comunicar-se com este ser superior, Deus, para obter o seu beneplácito.
As ondas de telemóvel, de televisão e de rádio cruzam o nosso espaço e nós não as ouvimos nem as vemos, mas sabemos que existem porque, quando temos os instrumentos adequados, as captamos. De forma análoga, Deus também procurou comunicar-se com o homem e o homem com Deus. Mas também esta comunicação não é acessível a todos, é preciso ter uma sensibilidade especial para entrar nesta comunicação.
Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não crê no nome do Filho único de Deus. João 3, 17-18
O cristianismo não é uma religião, pois não representa apenas o esforço ou tentativas do homem para chegar a Deus. Pelo contrário, o cristianismo é uma revelação porque é Deus que busca o homem e se revela a ele. Como diz Jesus no evangelho, não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e a dar fruto, e fruto que permaneça; e assim, tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome Ele vo-lo concederá. João 15, 16
No Natal celebramos a grande verdade, que Deus não está envolto em silêncio, mas sim em panos e depositado numa manjedoura. Com o nascimento de Jesus, Deus rompe o silêncio, elimina a distância e desfaz a inacessibilidade. Jesus é o Emanuel, Deus connosco, à nossa beira, companheiro de viagem na nossa vida, como o foi com os discípulos de Emaús.
Filho de Deus versus último profeta
Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho, que constituiu herdeiro universal, pelo qual criou todas as coisas. Hebreus 1, 1-2
Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, resume todas as religiões que em relação à religião cristã ocupam o lugar que o Antigo Testamento ocupa na Bíblia. Todas elas são acerca de profetas enviados por Deus; o cristianismo não apresenta mais um profeta, mas sim o próprio Deus connosco, o Emanuel.
O Islão aceita como válida a tradição religiosa judaica descrita no Antigo Testamento que eles consideram também seu. Maomé é, portanto, o último dos profetas que Deus enviou ao mundo, sendo o penúltimo Jesus.
Se a humanidade viver mais 10 000 ou 20 000 anos, que sentido faz que o último tenha vindo no ano 524? Mais mudanças sofreu o mundo e a humanidade desde o ano 524 que em todos os milhões de anos anteriores; porque será que os profetas se sucediam uns aos outros com frequência e depois do ano 524 deixaram de ser precisos?
No caso do Cristianismo, mesmo que a humanidade viva até ao ano 20 000, faz sentido que a revelação tenha acontecido no ano zero. Como explica o autor da carta aos Hebreus, “O enviado” não é mais um profeta, mas sim o próprio Deus que vem viver entre nós.
Há aqui um salto qualitativo; os profetas trazem mensagens para um tempo, a palavra de Deus é eterna para todos os tempos e lugares, porque Deus não precisa de falar duas vezes. Por outro lado, Cristo não é só uma palavra proferida, é uma palavra vivida e só se vive uma vez.
Em que sentido é o último profeta? É porque o Islão tem uma doutrina mais refinada e um caminho ascendente que já chegámos ao topo? Mas o topo até parece o cristianismo com uma narrativa muito mais humana e humanizante, como por exemplo o amor aos inimigos. O Islão na sua prática e doutrina até se assemelha mais ao Antigo Testamento que ao Novo, quando pensamos que ainda hoje se apedrejam mulheres e Cristo foi contra isso já nos seus dias.
O Islão é, em si, violento por natureza, pois não se trata de amar a Deus que nos amou primeiro, não se trata de “amor com amor se paga”; Deus no Islão é o senhor do Antigo Testamento que ordena submissão, Islão significa submissão, a pessoa submete-se a Deus, não ama a Deus que já não nos chama servos, mas amigos. De facto, a forma histórica como o Islão se expandiu não foi pela missionação ou catequese, mas pela força e submissão armada ou pelo negócio.
Natal, festa do Pai
De tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. João 3, 16
Como a Igreja tem reservado o domingo depois de Pentecostes para celebrar a Santíssima Trindade, a união e comunhão das três pessoas divinas, é justo que tenha uma solenidade para cada uma das três pessoas divinas. Ao ver que Pentecostes é claramente a celebração de Deus Espírito Santo, desejei ver nas outras duas, Páscoa e Natal, as celebrações do Pai e do Filho, e deparei-me com o problema de que as duas, tanto o Natal como a Páscoa, parecem ser celebrações do Filho, ficando o Pai sem celebração individual.
Não é justo que o Filho tenha duas festas e o Pai nenhuma, por isso pensei qual das duas dar ao Pai e com que critério; podia ser a Páscoa, porque Jesus morre fazendo a vontade do Pai (Lucas 22, 42) ou o Natal, pelo que o próprio Jesus diz no seu diálogo com Nicodemos: “Porque Deus tanto amou o mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito (João 3, 16-21).
Para dirimir a questão, recorremos à gramática e ao que esta nos diz sobre voz ativa e voz passiva. Na Páscoa, parece que é Jesus que dirige a ação quando diz, “não são eles que me tiram a vida sou eu que a dou” (João 10,18). Na Páscoa, Jesus é o ator principal, ninguém tem maior amor que o que dá a vida pelos seus amigos (João 15,13). Não há a menor dúvida então que a Páscoa é a festa do Filho, pois nela é Ele o protagonista.
O mesmo já não acontece no Natal, Jesus não é o protagonista do Natal, porque gramaticalmente é pessoa passiva, Jesus não nasce, é dado à luz. Por isto, nunca gostei da formulação do terceiro mistério gozoso que em todas as línguas diz “contemplamos o nascimento de Jesus”. Como se Jesus tivesse caído do Céu de paraquedas ou como se Ele mesmo tivesse provocado o seu nascimento. Este mistério deveria dizer: “No terceiro mistério gozoso contemplamos Maria que dá à luz a Jesus”.
O Natal tem dois grandes protagonistas um divino e outro humano. Deus Pai é o protagonista divino e Maria é a protagonista humana. A ação começa em Deus Pai que envia o seu Filho unigénito ao mundo. Se bem que entre o Pai e o Filho não haja ordem de importância, do ponto de vista gramatical e humano, é mais importante quem envia do que quem é enviado; quem envia provoca a ação, quem é enviado sofre a ação.
Maria, a protagonista humana, não é passiva, também é ativa; ela representa toda a Humanidade que diz “Sim” ao plano de Deus. Um “Sim” livre porque foi dito de uma forma ponderada e sem nenhuma coação por parte de Deus que o propôs; um “Sim” que, por ser livre, podia ter sido “Não”. Tão importante é o que envia como o que recebe. Se um Rei envia um mensageiro a um outro Rei, este último é livre de receber ou não receber o mensageiro enviado.
A figura do Pai Natal
"Jesus is the reason for the season" - "Jesus é a razão da estação" (Slogan protestante do Natal)
Jesus não é a razão da época ou quadra do Natal, o Pai é que é. Nesta festa, Jesus é dado à luz: os verbos que se referem a Jesus nesta quadra vêm em voz passiva. O Natal, como encontro entre Deus e a Humanidade, tem uma protagonista humana, uma mãe, Maria, que recebeu Jesus no seu seio e contribuiu com o seu material genético; e tem um Pai divino, Deus.
Noutro tempo, também eu critiquei a importância que a sociedade civil dá à figura mítica do Pai Natal. Hoje entendo que é um desses casos de “voz do povo, voz de Deus”. O Pai Natal representa Deus Pai que enviou o seu Filho ao mundo. Venerável senhor idoso que não esconde a idade nem quer aparentar ser mais jovem, e que se desfaz em amabilidades dando presentes às crianças, acariciando-as e tomando-as ao colo. No imaginário de todas as pessoas, Deus Pai é sempre representado como um homem idoso de cabeleira e barba branca. O Pai Natal coincide com este imaginário coletivo.
As suas vestes são vermelhas como as de um bispo porque, historicamente, o Pai Natal está associado ao Bispo São Nicolau, razão pela qual se chama Santa Claus em inglês ou apenas Santa. Vive no Polo Norte, lugar apartado de tudo e de todos, numa região branca, num mundo puro que apela ao imaginário coletivo da forma como se conceptualiza o Céu, morada de Deus.
Visita-nos durante a noite, pois, como dissemos, a noite é tempo de salvação. Nunca é visto, mas fala pelas suas obras traduzidas nas graças e presentes que nós, como crianças e seus filhos, lhe pedimos. Podendo entrar por janelas ou portas, entra sempre pela chaminé porque se desloca voando, vem de cima para baixo e entra pela única parte da casa que está sempre aberta e em vigia, assinalando que nós devemos estar sempre em oração, abertos ao Altíssimo, olhando para cima de onde nos vem o auxílio.
De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado. (…) os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, conforme lhes fora anunciado. Lucas 6, 13-14, 20
Conclusão: o Natal, por ser a festa de Deus Pai, foi celebrado nos Céus pelos anjos que disseram Glória a Deus nas alturas, e na Terra pelos pastores que voltaram de Belém glorificando e louvando a Deus.
Pe. Jorge Amaro, IMC
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