Mas uma coisa é errar, outra coisa é pecar. Ninguém erra querendo errar, ninguém peca sem querer pecar. O pecar pressupõe um exercício de liberdade: escolhemos o mal sabendo que é mau. Pecado é matéria moral, erro é matéria da ciência. É certo que o pecado é sempre um erro, mas um erro pode não ser um pecado; o conceito de erro é mais abrangente que o de pecado que se restringe só à matéria moral.
Frequentemente, justificamos as fraquezas, defeitos e pecados próprios e alheios dizendo que somos humanos; como se ser humano significasse estar cheio de vícios, maus hábitos e defeitos. Outras vezes, quando queremos dizer bem de alguém, dizemos que é muito humano. Como pode a mesma palavra ter significados diametralmente opostos?
A medida do humano é Cristo; ele não pecou, portanto, o pecado não pertence à natureza humana. É possível, ainda que difícil, viver sem pecar. O Homem é criatura de Deus e Deus não faz coisas defeituosas - o pecado é criação do Homem, não de Deus. Houve um tempo em que Adão e Eva viveram em harmonia com a Natureza, consigo mesmos, com Deus e um com o outro, sem pecar. O pecado arruinou a natureza humana, mas não a mudou.
Devemos, portanto, usar o adjetivo humano no bom sentido, sabendo que Cristo foi 100% humano, em tudo igual a nós, exceto no pecado (Hebreus 4). A antessala do pecado é a tentação; a tentação pertence à natureza humana, por isso Jesus foi tentado. Sem tentação não haveria liberdade. Se bem que não igualmente válida, existe uma alternativa a Cristo, caminho, verdade e vida, modelo do ser humano - a tentação recorda-nos a existência desta alternativa para cada uma das nossas escolhas ou decisões existenciais.
Cristo foi tentado toda a sua vida
Terminadas todas as tentações, o diabo afastou-se dele até à próxima oportunidade. Lucas, 4, 13
Os três evangelhos sinópticos mencionam as tentações de Jesus no começo da sua vida pública; isto pode induzir o leitor no erro de pensar que Jesus foi tentado no princípio da sua vida pública e depois nunca mais foi tentado. A verdade é que, como todo o ser humano, Jesus foi tentado a toda a hora e momento. Há um filme sobre Jesus que se intitula “A última tentação de Cristo”; segundo este filme, esta última tentação ocorreu quando já estava pregado na cruz. Vejamos alguns exemplos:
Multiplicação dos pães – Depois da multiplicação dos pães, Jesus obriga os discípulos a entrar no barco e a atravessar o lago (Marcos, 6, 45). Pelos evangelhos sinópticos não sabemos por que Jesus obrigou os discípulos a subir para o barco e a atravessar o lago. A resposta a esta obrigação insólita está em João 6, 15. Depois da multiplicação dos pães o povo queria fazer de Jesus rei.
Fazer face a esta tentação sozinho era uma coisa, ter os discípulos com ele, era outra. Os discípulos não queriam outra coisa, seriam os primeiros a aclamá-lo rei; por isso, para evitar que caíssem na tentação, despachou-os para longe, de modo a lidar sozinho com a multidão. Depois despediu-se dela e subiu ao monte para estar a sós com o seu Pai em oração.
Agonia no Jardim das Oliveiras – Na agonia do Jardim das Oliveiras (Lucas 22, 42) sente que, apesar do espírito ser forte, a carne humana na qual encarnou é fraca. Sente o medo, não tanto da morte, pois todos temos de morrer, mas do sofrimento. De facto, temos menos medo da morte que do sofrimento e, para quem sofre muito, a morte é uma libertação; os torturados chegam a pedi-la.
Só há tentação quando existe uma alternativa, e Jesus tinha uma alternativa perfeitamente viável: apesar de estar em Jerusalém, não estava cercado, estava no monte oposto à colina do templo, ou seja, no Monte das Oliveiras - bastava subir de Getsémani até ao alto do monte e depois descer para o deserto da Judeia. Em poucos quilómetros, estaria num lugar onde nunca o encontrariam e depois poderia descer até ao Jordão, Mar Morto e passar para o que é hoje a Jordânia, desaparecendo para sempre. Mas não o fez.
Se eu quisesse, livrava-me da morte – Quando já tinha sido preso e Pedro tentou resistir, cortando a orelha ao servo do sumo sacerdote, Jesus recorda a Pedro e aos presentes que se ele tivesse querido escapar da morte podia ter pedido ao Pai que lhe enviasse de imediato 12 legiões de anjos para o resgatarem (Mateus 26, 52-54)
O conceito de tentação
Quando ouvimos ou proferimos a palavra tentação, do nosso coletivo imaginário vem-nos a imagem da serpente a tentar Adão e Eva. Tentar significa instigar, seduzir, induzir, levar-nos a uma determinada ação. A publicidade moderna é a serpente dos nossos dias que trata de nos ludibriar a comprar este ou aquele produto que vai trazer-nos a felicidade.
ÀS vezes, para os mais jovens, aquele que tenta pode também ser um amigo ou pode ser a pressão social exercida por um grupo de amigos sobre um jovem incauto que necessita ser muito forte para resistir, porque a contrapartida é ser rejeitado pelo grupo. A tentação tem um sentido negativo, sobretudo porque a vemos como a antessala do pecado, ou seja, irresistível e determinista, no sentido de que é inevitável pecar quando somos tentados.
Na Bíblia, porém, tanto em grego como em hebreu, o conceito de tentação usado tem pouco a ver com os sinónimos acima descritos. Tentação é teste, exame, prova. Vim a saber isto não pelo meu conhecimento do hebreu, mas sim pelo meu conhecimento de outra língua semítica, o amárico . Quando estava na Etiópia, verifiquei que a palavra “tentação” na oração do Pai Nosso (Não nos deixeis cair em tentação (Fataná) era a mesma que usavam as crianças quando diziam que tinham exame (Fataná) na escola.
Neste sentido, a tentação não seria negativa, mas sim positiva: trata-se de examinar para determinar o valor de algo (Job 7, 18, Salmo 139, 23). O mesmo termo é usado para testar a pureza de um metal, (Job, 23, 10 Zacarias 13, 9, 1 Pedro 1, 7). Também se usa no contexto de testar o caráter de alguém (Romanos 5, 4; Tiago 1, 2-3).
A conexão entre a nossa natural inclinação para o mal, associada ao conceito de tentação, não é proeminente no Novo Testamento, mas também não está completamente ausente (1 Coríntios 5:5; 1 Timóteo 1:20; Tiago 1:14-15).
Em meu entender, a tentação no sentido de exame não é positiva nem negativa, é neutra, no sentido de que pode ser uma ocasião para crescermos e nos tornarmos mais fortes se a vencermos, ou uma ocasião para nos tornarmos mais fracos e ir de mal a pior se formos derrotados. Tanto para o bem como para o mal, cada tentação é uma batalha. Ter ganho uma batalha não significa ter ganho a guerra e ter perdido uma batalha também não significa ter perdido a guerra.
“Ninguém pode entrar no Reino dos Céus sem ser tentado, sem tentações ninguém se salva”, dizia Sto. António, Abade dos padres do deserto. Sem tentação no sentido de teste, seria impossível distinguir os bons alunos dos maus alunos, os verdadeiros amigos dos falsos amigos, as pessoas de caráter das pessoas sem caráter, os honrados dos que não têm honra.
“A ocasião faz o ladrão”, diz o provérbio. Ninguém nasce ladrão, é o sucumbir ante a possibilidade de roubar que faz o ladrão. A primeira vez é mais difícil, depois já nem constitui tentação. Dizem que custa matar a primeira vez, mas que depois se torna cada vez mais fácil, transforma-se num vício cada vez mais forte, a ponto de ser quase impossível a recuperação da liberdade que a virtude nos concede.
Origem da tentação
Feliz aquele que suporta a provação, porque, uma vez provado, receberá a coroa da vida, que o Deus prometeu aos que o amam. Ninguém, ao ser tentado, deve dizer: “É Deus que me tenta”, pois Deus não pode ser tentado pelo mal e tampouco tenta a alguém. Antes, cada qual é tentado por sua própria concupiscência, que o arrasta e seduz. Tiago 1, 12-14
Nada que, de fora, entra na pessoa pode torná-la impura. O que sai da pessoa é que a torna impura. Marcos 7, 15
Destes dois textos, um de Tiago, outro de Marcos citando o próprio Jesus, deduzimos que a tentação vem de dentro. O mal está dentro de nós e sai para fora em atos. As situações da vida só espoletam, ou provocam, mas não causam o mal, tentam-nos, testam-nos, mas depende de nós cair ou não cair. O mal não está fora de nós, personificado no diabo que nos tenta.
Na mesma linha deste texto de Tiago, Jesus também nos diz que o que faz o homem impuro não é o que vem de fora, mas sim o que está dentro dele. Dizer ou pensar que é o diabo que nos induz e seduz, é não assumir a nossa própria responsabilidade como fizeram Adão e Eva. É uma desculpa esfarrapada, que nos iliba e nos leva a não assumir a responsabilidade pelos nossos atos.
Quando vemos uma maçã com um buraquinho, somos levados a pensar que o buraco foi feito por um bicho que entrou na maçã e a infetou, mas essa não é a verdade: o buraquinho foi feito pelo bicho ao sair da maçã, não ao entrar; foi feito de dentro para fora, não de fora para dentro.
Quando a maçã era apenas uma flor, foi visitada por um inseto que nela depositou um ovo. Quando a maçã se formou, esse ovo deu à luz uma larva, essa larva saiu para fora da maçã para se transformar no inseto à imagem do seu progenitor. Somos uma maçã com bicho, fomos concebidos no pecado original, por isso não precisamos de aprender nada do que se refere ao mal. Quantos pais educam os seus filhos esmeradamente e, de um momento para o outro, apanham o filho a roubar, a mentir, a desobedecer; onde aprendeu ele estas atitudes?
Versões do Pai Nosso -
et ne nos inducas in tentationem - Latim
e non ci indurre in tentazione - Italiano
Et ne nous soumets pas à la tentation - Francês
And lead us not into temptation - Inglês
no nos dejes caer en la tentación - Espanhol
não nos deixes cair em tentação - Português
A versão portuguesa e espanhola do Pai Nosso difere do texto original que vemos refletido nas restantes línguas. Há séculos que na Península Ibérica (Portugal e Espanha) começou a rezar-se o Pai Nosso com esta diferença que, teologicamente, parece mais correta que o original do qual todas as outras línguas são tradução literal.
Segundo o original e todas as línguas, pedimos a Deus para não nos submeter ao teste, à tentação. De acordo com os textos acima citados de Tiago e de Marcos, Deus não nos tenta no sentido de nos induzir ao erro ou convidar a enganar ou seduzir para o erro. No sentido de teste, prova ou de exame, é verdade que Deus nos testa ou permite que sejamos testados, nunca para além da nossa capacidade de resistir. Neste sentido, não vale a pena pedir que não nos teste porque testar-nos faz parte do crescimento espiritual rumo à santidade.
Abraão não se tornou o nosso Pai na Fé sem ter passado o exame que Deus lhe apresentou. Quando Abraão já se tinha deixado seduzir pelo seu filho, princípio da sua descendência que iria ser mais numerosa que a areia do mar e as estrelas do céu, Deus pediu-lho, e Abraão dispunha-se a sacrificar o seu filho para provar a Deus que o amava sobre todas as coisas e que o seu filho não se tinha transformado num objeto de idolatria.
Jesus testou fortemente a mulher sírio-fenícia, a sua fé e paciência, a sua resistência e amor próprio, antes de lhe curar a filha. Se ela tivesse reagido às investidas veladamente racistas de Jesus, teria provado que o seu amor próprio era superior ao amor pela sua filha. Mas pelo contrário, estava tão desesperada e queria tanto a saúde da filha, que não se importou de ser insultada. Por outro lado, também não foi passiva nem passiva agressiva, foi assertiva, não se deixou humilhar quando disse que até os cachorrinhos têm direito às migalhas que caem da mesa dos filhos de Israel. (Mateus 15, 21-28).
O pecado ofende: a Deus – ao próximo – a mim mesmo
Pecado é uma palavra exclusivamente religiosa, é uma dessas palavras que a sociedade civil nunca usa porque, para esta, a única coisa que conta é a lei - quem não observa a lei não peca, transgride. O hebreu tem várias palavras para designar “pecado”:
Pecado em Hebreu
Chata – errar o alvo, não alcançar a meta ou objetivo. Não fazer o que se espera, como obedecer e fazer a vontade de Deus (Génesis 4, 6; Ezequiel 18, 4).
Shagag – vaguear, desviar-se do caminho. É como perder-se numa floresta, sair fora do caminho traçado (Levítico 4, 13; Números 15, 28), não seguir as regras, as instruções.
Avon – iniquidade, ato de rebeldia, desafiar a autoridade de Deus ou da Lei (Êxodo 34, 7; 1 Samuel 15, 23).
Ra – mal, Avon já é mau, mas Ra é bem pior, é ser depravado (Genesis 6, 5; 8, 21; 13,13; 19,7).
Pesha – transgressão, rebelar-se, cortar relações, um deliberado ato de rebeldia contra Deus ou a sua Lei. Já não se trata de errar o alvo, não é um erro inocente, mais que Avon e Ra, é uma guerra declarada (Êxodo 34, 7; Isaías 43,7; Jeremias 2,8; Salmo 51, 2).
Somos livres para fazer o bem; a partir do momento em que fazemos o mal, quanto mais nos entranhamos nele, menos livres somos, mais dependentes nos tornamos desse mal, a ponto de ser difícil voltar ao estado de liberdade. O pecado é sempre cair na tentação de que existe uma alternativa igualmente válida à natureza humana, tal como a viveu Cristo.
Fundamentalmente, os termos acima descritos como pecado afirmam a ideia de sair fora do caminho, da regra, da natureza humana. Tomemos como exemplo o nosso fígado e a sua capacidade de sintetizar em segurança uma determinada quantidade de álcool.
O vinho consumido com moderação, um copo por dia, não arruína o fígado e tem efeitos positivos na nossa saúde. Porém, se abusarmos do álcool, sobretudo das bebidas brancas de alto teor alcoólico, ultrapassamos a capacidade do fígado de o sintetizar em segurança e causamos a sua deterioração. Somos livres de beber tanto quanto queremos, mas depois sofremos as consequências de uma cirrose hepática. Pecar, neste sentido, é consumir mais álcool do que a nossa natureza permite.
A tridimensionalidade do pecado
Pecar é não respeitar a nossa natureza, a Natureza que nos rodeia, a vontade de Deus e as suas leis. Nunca pecamos no nosso próprio interesse ou no interesse de outrem: o pecado é sempre um ato contra tudo e contra todos, contra Deus, os outros e nós mesmos.
O pecado é, acima de tudo, contra Deus, nosso criador, porque nos rebelamos contra a sua vontade, pensando que sabemos mais que Ele, que podemos viver sem Ele, ser felizes sem Ele e até contra Ele. O pecado, na sua dimensão contra Deus, é sempre um ato de orgulho, de pensar que somos alguém que pode contrapor-se a Deus, e sentir-se realizado e feliz à sua maneira. É contradizer o dito de Jesus, “Sem mim, nada podeis fazer”.
Não há coisa mais errada que ser orgulhosos e autossuficientes perante Deus todo poderoso. Por isso, o orgulho é a raiz e o pai de todos os males, tal como a humildade é a raiz e mãe de todas as virtudes. Quando pecamos contra Deus, pecamos ipso facto contra nós mesmos. Por incrível que pareça, Deus ama-nos muito mais do que nós nos amamos a nós mesmos. Ele sempre nos perdoa, embora muitas vezes não nos perdoemos a nós próprios. Deus sabe, muito melhor do que nós, o que nos convém. Os seus planos para nós são os que nos convêm, conforme a natureza que Ele nos deu e conforme os talentos que nos concedeu. Por isso, dizer como Frank Sinatra “I’ ll do it my way” (farei as coisas à minha maneira) é pecar contra Deus e contra nós mesmos. O meu verdadeiro caminho não é o que eu traço para mim sem Deus, mas sim o que Ele traça para mim.
O mal fica com quem o pratica, diz o provérbio português, o pecado tem sempre um efeito bumerangue, como dizem em inglês “what goes around comes around” (o que vai, volta). Para além disto, todo o pecado, por mais íntimo, pessoal ou escondido que seja, tem sempre um efeito colateral sobre os outros. Para além do efeito bumerangue sobre a própria pessoa, o pecado tem um efeito dominó sobre os outros, semelhante ao efeito de um grão de areia numa montanha coberta de neve que desencadeia uma avalanche.
Como exemplo recente disto, temos a pandemia do COVID-19. Começou, muito provavelmente, num ato de uma só pessoa, ao colocar gaiolas de distintos animais umas sobre as outras, de modo a que o sangue, a urina, as fezes e outras secreções se misturassem, dando a possibilidade a um vírus de saltar de uma espécie para outra, de se fortalecer nesse processo, até chegar ao ser humano e infetar gente em todos os países.
As tentações de Cristo
Jesus, em tudo igual a nós exceto no pecado, foi modelo de humanidade na forma como venceu as tentações ao longo da sua vida, demonstrando que é possível vencer todo o tipo de tentações e viver sem pecar. Como já dissemos, cada tentação é um teste à nossa fortaleza, a cada tentação exercitamos a nossa liberdade ao escolher entre o bem e o mal, entre o conveniente e o inconveniente, entre o caminho que leva à vida e o caminho que leva à morte.
Jesus foi testado em três matérias: a de transformar pedras em pão, a de se exibir perante os homens, e a de possuir muitos reinos. Se por pão entendemos os bens materiais, a riqueza, se por exibição entendemos a vontade de ter fama, o prazer da popularidade, a vanglória, se pela possessão de reinos entendemos o amor pelo poder, podemos resumir as tentações de Cristo, assim como as de todo o ser humano, à tentação de ter muita riqueza, ser famoso e todo poderoso.
RIQUEZA
O tentador aproximou-se e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!” Ele respondeu: “Está escrito: ‘Não se vive somente de pão, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus’”. Mateus 4, 3-4
Há muita hipocrisia no falar contra a riqueza; sou mais recetivo às opiniões dos ricos contra a riqueza que às opiniões dos pobres. Primeiro, porque falam do que não conhecem. Segundo, porque o que os faz falar é, muitas vezes, motivado por uma inveja dos ricos que esconde o desejo de possuir como eles.
A fábula da raposa e das uvas ilustra muito bem este comportamento. A raposa declara que as uvas estão verdes e não prestam porque, depois de saltar várias vezes, não consegue alcançá-las; menospreza, portanto, o que não pode ter e porque o não pode ter, vingando-se do facto de não poder comer as apetitosas uvas, dessensibilizando-se da dor provocada pelo facto através de um conhecido mecanismo psicológico de defesa chamado racionalização. E para provar que toda esta sua reação era falsa, ao ouvir atrás de si o ruído de algo a cair, volta-se imediatamente, pensando que era um cacho de uvas para descobrir, exasperada, que era apenas uma parra que tinha caído.
“Quem desdenha quer comprar”, diz muito sabiamente o provérbio português. Nas feiras, quem desvaloriza um produto ou um instrumento, fá-lo no intuito de baixar o preço porque quer comprá-lo. Se não estivesse interessado na compra, não perderia tempo a falar sobre ele. Muitos dos que desdenham as riquezas só o fazem porque não as têm. Por isso, a tentação da riqueza não a sente quem é pobre, mas quem é rico e escolhe ser pobre.
Admiro os Santos Medievais da Igreja Católica, que eram todos ou quase todos filhos e filhas de famílias ricas e abastadas, com terrenos, castelos, grandes negócios ou empreendimentos, nobres de sangue azul com influência na corte real. Estes mancebos e donzelas eram jovens e belos, tinham fama e prestígio, riqueza e sangue azul, cultura, tudo o que de bom se podia desejar naquele tempo e, no entanto, tudo puseram de parte porque encontraram em Cristo uma riqueza maior. S. Francisco Xavier, Sto. António de Lisboa, Sta. Isabel de Portugal, S. Nuno Álvares Pereira, Stª. Beatriz da Silva, para nomear os portugueses.
Abandonaram tudo por Cristo; tiveram a mesma experiência que S. Paulo outrora tivera: “por causa dele, tudo perdi e considero esterco, a fim de ganhar a Cristo” (Filipenses, 3, 8). Tudo o que estes disserem sobre a riqueza podemos escutar com segurança, pois passaram pela experiência de ter tudo o que este mundo pode dar e rejeitaram-no porque encontraram em Cristo aquele que os preencheu completamente.
O pobre rico e o rico pobre
“Felizes os pobres no espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Mateus 5,3
Conta-se que um jovem sonhou que à entrada da cidade havia um venerável senhor que tinha na sua algibeira um diamante de grandes dimensões e que o daria a quem lho pedisse. Assim fez o jovem: ao acordar acreditou no próprio sonho e dirigiu-se para a entrada da cidade, onde efetivamente encontrou o venerável senhor que, sem hesitar, lhe deu o diamante. Regressou a casa muito feliz, mas durante a noite não conseguiu dormir. No dia seguinte, voltou ao venerável senhor e devolveu-lhe o diamante, dizendo “dá-me antes o que te faz desprenderes-te assim tão facilmente de algo tão valioso”. “Já o tens” respondeu o venerável senhor, “ao devolver-me o diamante, provas que também tu tens o dom do desprendimento”.
Para a Bíblia, ser rico ou pobre não depende da quantidade de dinheiro que se tem, mas da forma como nos relacionamos com a riqueza. Os ricos que vivem desapegados da sua riqueza, para a Bíblia, são pobres; os pobres que vivem apegados ao pouco que têm, para a Bíblia, são ricos.
Os pobres de espírito de S. Mateus são os que, sendo ricos, se desprenderam ou vivem desprendidos da sua riqueza, são pobres por opção. Os pobres de S. Lucas, são os pobres que sempre foram pobres porque nunca tiveram outra opção, muitos deles podem até viver obcecados pela riqueza que não têm, pelo que, para a Bíblia, já caíram na tentação, pois, ainda não tendo riqueza, estão já possuídos de alma e coração pela riqueza que desejariam ter e agarrados como carraças à pouca que têm.
Superemos, portanto, o maniqueísmo de pensar que as riquezas, os bens materiais são intrinsecamente maus. Tudo é criação de Deus, Deus não criou nada mau, por isso tudo é intrinsecamente bom. O dinheiro não dá felicidade, mas ajuda: não há felicidade sem dinheiro. O rico não é inerentemente feliz por ser rico, nem o pobre inerentemente infeliz por ser pobre.
Se as vossas riquezas crescerem, não lhes entregueis o coração. Salmo 62, 11 - As coisas foram feitas para ser usadas, as pessoas foram feitas para serem amadas. Quem ama as riquezas tende a usar as pessoas para obter mais riqueza, em vez de as amar. Quem entrega o seu coração às riquezas, vende a alma ao diabo, já não se possui, é possuído, da mesma forma que os possessos dos quais o evangelho nos fala. Um exemplo claro é o jovem rico, do evangelho de Mateus (19:16-23), que decidiu ficar com as riquezas quando Jesus o confrontou e lhe deu a escolher entre a riqueza material e a riqueza espiritual. Diz o evangelho que ele ficou triste perante a sua própria opção; as riquezas podem dar prazer mas não alegria e o prazer é quase sempre seguido pela tristeza.
Porque, onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. Lucas 12, 34. Quem ama as riquezas, entregou-lhes o coração, são elas que o possuem; foram elas que impediram o jovem rico de seguir o Mestre. Não é que ele não quisesse seguir o Mestre. Ele queria, mas as riquezas não o deixaram ir. Porque ele não as possuía, eram elas que o possuíam. Quando amamos as riquezas, só as possuímos do ponto de vista contabilístico, pois, do ponto de vista espiritual e psicológico, somos possuídos por elas, são elas que nos possuem a nós.
“Fizeste-nos Senhor para vós, e o nosso coração anda inquieto enquanto não repousa em vós”, dizia Sto. Agostinho – Só o amor de Deus nos enche por completo o coração, a ponto de já não andar mais inquieto. Só Deus basta, dizia Stª. Teresa de Ávila. O amor humano enche um pouco o nosso coração, mas nunca totalmente. Só Deus, o nosso Criador e Pai por graça de Cristo, nos enche plenamente.
O coração daquele que, em vez de amar a Deus e ao próximo, ama as riquezas, transforma-se num poço sem fundo: quanto mais tem mais quer ter. É como aquela adolescente que padece de anorexia nervosa e que já é mais que esquelética mas continua a ver-se gorda quando se olha ao espelho. Não tem a mente fixa na magreza que já possui, mas naquela que ainda pode possuir. Assim, o rico não tem a mente fixa na riqueza que já tem, mas naquela que ainda pode ter: por isso nunca diz basta.
Amar o próximo como a ti mesmo
“A terra de um homem rico deu uma grande colheita. Ele pensava consigo mesmo: ‘Que vou fazer? Não tenho onde guardar a minha colheita’. Então resolveu: ‘Já sei o que fazer! Vou derrubar os meus celeiros e construir outros maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, goza a vida!’ Mas Deus disse-lhe: ‘Tolo! Ainda nesta noite, a tua vida te será tirada. E para quem ficará o que acumulaste?’ Lucas 12, 16-20
A história de Elvis Presley ilustra de forma clara esta verdade. Elvis tornou-se muito rico. Possuía oito carros, seis motos, dois aviões, dezasseis televisões, uma mansão imensa e várias contas bancárias bem recheadas. Além disso, era idolatrado por legiões de fãs. Mas não era feliz. No meio de toda a sua riqueza e sucesso, sentia um mal-estar espiritual e queixava-se de solidão e tédio. “O dinheiro traz muitas dores de cabeça”, confidenciou ele a um entrevistador.
The story of Elvis Presley powerfully illustrates the truth of this. Elvis became very rich. He owned eight cars, six motorbikes, two planes, sixteen television sets, a vast mansion, and several bulging bank accounts. On top of all of that, he was idolized by legions of fans. Yet he wasn’t happy. In the midst of all his wealth and success he experienced a spiritual malaise, and complained of loneliness and boredom. ‘Money brings a lot of headaches,’ he confided to an interviewer.
A sua mãe preocupava-se com ele. Nunca tinha querido tudo aquilo para ele. Simplesmente queria que ele voltasse a casa, comprasse uma loja de mobiliário, casasse e tivesse filhos. Ele tornou-se paranóico e deprimido. Com vinte e dois anos, descobriu que não tinha mais nada a conquistar. Este mal-estar poderia ter sido uma oportunidade. Foi uma demonstração sombria de que “nem só de pão vive o homem”, ou seja, de que nem só de bens materiais vive o homem.
His mother was worried about him. She never wanted all this for him. She simply wanted him to come home, buy a furniture store, get married and have children. He grew fearful and depressed. At the age of twenty-two he found that there were no more worlds to conquer. This malaise could have been an opportunity. It was a stark reminder that ‘man doesn’t live on bread alone’, that is, on material things alone.
Todos sabemos como terminou Elvis – viciado em drogas. Afinal, não viveu assim tanto tempo como os bens materiais poderiam ter-lhe permitido viver. Os bens materiais podem facilitar-nos a vida em muitos aspetos, mas não são a vida em si mesma. Podem comprar-nos os prazeres mais refinados, mas não nos compram alegria. Quem entende a vida como pão e circo não tarda a perder a liberdade, ficando preso a algum vício.
Nem só de pão vive o homem: as riquezas só servem para nos manter vivos. Viver não tem nada a ver com as riquezas. É o amar ao próximo como a ti mesmo, ou seja, é o amor pelas pessoas que te livra do amor pela riqueza. Quando amas a alguém, é natural dar-lhe coisas e começar a dar, até te dares a ti mesmo.
Quando se ama, partilha-se o que se tem com quem o não tem. O amor obedece ao princípio dos vasos comunicantes; quando dois vasos, um deles cheio de água, comunicam entre si, muita da água do primeiro passa para o segundo, ficando os dois com o mesmo nível de água. Não há melhor comunicação entre pessoas que o amor. O amor leva à igualdade entre pessoas desiguais.
“Há mais alegria em dar do que em receber”. Atos 20, 35 – é certo que as crianças encontram mais alegria em receber que em dar, pois ainda são crianças, ainda não aprenderam a amar. Ainda vivem o Natal à espera do Pai Natal. Os adultos, quando o são do ponto de vista psicológico, encontram mais alegria em dar do que em receber, vivem o Natal não já como crianças expectantes, mas como o Pai Natal que dá. O adulto que ainda encontra mais alegria em receber do que em dar, não é ainda maduro psicologicamente.
Certamente conheceis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo: de rico que era, tornou-se pobre por causa de vós, para que vos torneis ricos, por sua pobreza. 2 Coríntios 8, 9
FAMA
Então, o diabo o levou-o à Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, deita-te daqui abaixo! Pois está escrito: ‘Ele dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te carregarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. Jesus respondeu-lhe: “Também está escrito: ‘Não porás à prova o Senhor teu Deus’!” Mateus 4, 5-7
Jesus nunca fez um milagre em proveito próprio, como seria o caso da tentação de transformar as pedras em pão por ter fome. Também nunca fez nenhum milagre para se exibir; pelo contrário, sempre pedia encarecidamente aos destinatários dos seus milagres que não dissessem nada a ninguém. Criticou os fariseus por serem atores, que em grego significa hipócritas - faziam as coisas não por convicção, mas para serem vistos pelos homens.
Jejuavam, davam esmola e rezavam em público, para serem bajulados pelas pessoas. Como diz o evangelho, “já receberam a sua recompensa” que é precisamente essa, a de adquirir prestígio diante das pessoas (Mateus 6, 1-18). Um prestígio muito relativo, pois depressa as pessoas se dão conta que não é genuíno. Por isso, quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado (Mateus 23, 12).
É melhor fazer as coisas porque gostamos de as fazer, e por Deus; rezar no nosso íntimo, na privacidade do nosso quarto ou sozinhos, num lugar solitário, como Jesus fazia; dar de modo a que não saiba a mão esquerda o que fez a direita. Quem dá aos pobres, empresta a Deus, diz o provérbio português, ou seja, nada fica sem recompensa e, definitivamente, estamos a acumular tesouros no céu (Mateus 6, 19-34).
Natureza efémera da fama
A numerosa multidão estendeu os seus mantos no caminho, enquanto outros cortavam ramos de árvores e os espalhavam no caminho. As multidões na frente e atrás dele clamavam: “Hossana ao Filho de David! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hossana no mais alto dos céus!” Mateus 21, 8-9
Era o dia da preparação da Páscoa, por volta do meio-dia. Pilatos disse aos judeus: “Eis o vosso rei”. Eles, porém, gritavam: “Fora! Fora! Crucifica-o!” Pilatos disse: “Vou crucificar o vosso rei?” Os sumos sacerdotes responderam: “Não temos rei senão César”. João 19, 14-15
Domingo de Ramos não está longe de Sexta-feira Santa. A mesma multidão que gritava Hossana ao filho de David, que aclamava a Jesus como rei, por ser descendente de David, poucos dias mais tarde gritava para que esse mesmo rei dos Judeus fosse crucificado. É certo que Jesus nunca procurou ser rei, embora o fosse. Por isso, não se deleitou no Domingo de Ramos nem se deprimiu na Sexta-feira Santa.
“Os cães ladram e a caravana passa” – Os cães ladram sempre, é o seu papel. A pessoa genuína e autêntica não se regula pelo que os outros dizem de bem ou de mal, nem adapta o seu comportamento ao que o faz mais popular ou menos popular. Jesus era autêntico, a sua autoridade, como muito bem o notavam as pessoas do seu tempo, vinha de dentro, não dependia da opinião pública.
Jesus não fazia nem dizia nada nem tinha comportamentos extravagantes para atrair as pessoas a si. Nunca chamou ninguém a não ser os seus discípulos; é certo que as pessoas se sentiam atraídas por ele, mas ele não buscava as atenções para si mesmo mas para o seu Pai, e não pregava para se promover a si mesmo mas para promover o Reino de Deus.
Manter a fama, faz de ti um ator
Quem depois de fazer alguma coisa bem feita desinteressadamente, se deleita na bajulação das pessoas, fica exposto à tentação de se viciar nessa bajulação e, em vez de autêntico, começa a fazer as coisas não por gosto mas porque lhe dão fama e prestígio. Deixa de ser ele mesmo para ser um ator num palco.
Deixa de fazer o que ele gosta para fazer só o que as pessoas gostam, deixa de ser ele mesmo para ser quem ele não é. Coloca-se numa dialética de ansiedade progressiva, pois para manter a reputação tem de fazer obras cada vez maiores, já que a fama dura muito pouco.
É certo que todos gostamos de ter uma boa reputação e escutar louvores, porém não devemos ficar apegados a eles e fazer deles o objetivo da nossa vida, de tudo o que fazemos, para não deixarmos de ser autênticos. Deixamos de ser nós mesmos para sermos quem não somos e deixamos de viver a nossa vida para viver uma vida que não é nossa.
Muitos famosos, como o narciso do mito, enamoram-se da imagem que projetam para fora de si mesmos em público. Esta imagem funciona como a máscara que os antigos atores gregos colocavam para representar um personagem. Na verdade, máscara em grego significa personagem.
Manter a fama faz de ti um palhaço
Quem na vida busca os louvores das pessoas tem medo das críticas. Por isso, as críticas modelam o seu comportamento, no sentido de fazerem o que o povo quer e manda e evitarem o que o povo não quer. É bem conhecida a história do velho, do rapaz e do burro que iam para a feira.
O povo zombava deles porque nem o velho nem o rapaz montavam o burro. Para contentar o povo, montou o velho e foi criticado por deixar o rapaz a pé; montou o rapaz e foi criticado por não ter dó do pai; montaram os dois e foram criticados por não terem dó do burro. Acabaram por entrar na feira carregando o burro às costas e o povo zombou deles.
Quem é sensível às críticas e louvores recebe a sua motivação de fora e não de dentro - como tal, não é livre, mas dependente dos outros e das vicissitudes da opinião pública. Não tem caráter nem personalidade, não tem uma coluna vertebral e, como um camaleão, vai-se adaptando a tudo e a todos. Faz isto no intuito de ter a todos por amigos, acabando por não ter nenhum.
PODER
O diabo levou-o ainda para uma montanha muito alta. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua riqueza, e disse-lhe: “Dar-te-ei tudo isto, se caíres de joelhos para me adorar”. Jesus disse-lhe: “Vai embora, Satanás, pois está escrito: “Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto”. Mateus 4, 8-10
Repetimos aqui algo que já dissemos sobre a riqueza: é “a situação que faz o ladrão”, ou seja, só sabemos se uma pessoa é honesta ou não quando ela é confrontada com uma situação na qual pode roubar. Os que nunca roubaram, porque nunca tiveram a oportunidade de o fazer, não sabemos se são ou não honestos, a sua honestidade tem de ser posta à prova.
Os que nunca tiveram riqueza, nunca experimentaram o perigo de se apaixonarem por ela; para quem não tem nada, é fácil amar a Deus sobre todas as coisas. Mas, como dissemos, não são estes os verdadeiros pobres; os verdadeiros pobres são os ricos que se despojam da sua riqueza, não os pobres pelas vicissitudes da vida que muitas vezes não têm outro desejo que não o de ser ricos.
“Se queres conhecer o vilão mete-lhe a vara na mão” – A mesma ideia pode ser aplicada a algumas pessoas que parecem humildes porque não têm nenhum poder. Porém, quando lhes dás poder, revelam a sua verdadeira natureza. Para isso adverte outro provérbio: “não sirvas a quem serviu, nem peças a quem pediu”.
Como sabemos frequentemente, o que foi abusado quando era criança vulnerável e indefesa, depois de adulto, pode transformar-se em abusador, passando o resto dos seus dias vingando-se dos abusos que recebeu na infância.
Jesus de Nazaré, o anarquista
«Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão.» Mateus 20, 25-28
Jesus é anarquista, não no sentido de defender que a sociedade não deve estar organizada e disciplinada, mas no sentido de afirmar que ninguém tem o direito de exercer poder sobre ninguém. O poder, ou é serviço ou é malévolo. Por isso diz aos seus discípulos para não usarem com ninguém os títulos de Mestre, Pai, Doutor, (Mateus, 23, 8-12), dizendo que esses títulos devem apenas ser atribuídos ao único que é todo poderoso - Deus. Na filosofia de Jesus, não devemos considerar ninguém superior a nós, nem ninguém inferior a nós, e como só há uma pessoa acima de nós que é Deus Pai, todos somos iguais, todos somos irmãos.
Para Jesus, todo o governo autocrático é naturalmente violento e opressivo. Jesus entende o poder como serviço e não como domínio sobre as pessoas. Jesus substitui o amor pelo poder, pelo poder do amor e do serviço aos outros. É este o caminho da grandeza e da popularidade que tanto buscam os poderosos.
Os que exercem o poder autocraticamente são temidos, e não amados; os líderes amados pelo povo são os que exercem o poder servindo; estes são os grandes na História da humanidade. Os grandes na nossa história pessoal são também aqueles que nos serviram e não aqueles que nos dominaram. Os nossos pais, professores, catequistas, etc…
Os reis antes e depois do tempo de Jesus, após uma grande batalha, entravam na cidade montados no seu imponente cavalo, animal usado na guerra, seguidos do seu exército, para serem aclamados pelo povo. Jesus, como rei dos judeus, também entrou em Jerusalém e foi aclamado pelo povo, mas ia montado num burro, animal de paz, não num cavalo (Lucas 19, 28-40). Um ato que raia o ridículo para ridiculizar o poder e dizer ao povo o que mais tarde disse a Pilatos: sou Rei, mas o meu reino não é como os deste mundo”.
Três tipos de autoridade: moral – eleita - nomeada
Todos ficaram admirados com o seu ensinamento, pois ensinava-os como quem tem autoridade, não como os escribas. (…) Todos ficaram admirados e perguntavam uns aos outros: “Que é isto? Um ensinamento novo, e com autoridade: ele dá ordens até aos espíritos impuros, e eles obedecem-lhe!” Marcos 1, 22, 27
A autoridade no nosso mundo chega a um indivíduo por eleição democrática, ou por nomeação, uma vez que, numa democracia, o poder pertence ao povo que o delega temporal e periodicamente naqueles que considera dignos de exercer cargos públicos.
Nos nossos tempos, a autoridade, tanto eleita como nomeada, não obtém automaticamente o nosso respeito e admiração: estes devem ser ganhos. Como os contemporâneos de Jesus que lhe reconheciam autoridade apesar de não ser Ele um eleito ou nomeado, escriba ou sacerdote, a verdadeira autoridade vem de dentro, é carismática, é a autoridade do profeta que surge de entre o povo sem ter sido eleito ou nomeado.
Este tipo de autoridade obtém o nosso respeito automaticamente porque se vê uma completa coerência e correspondência entre o que a pessoa diz, o que faz e como se comporta, tanto em público como em privado. Esta autoridade moral é a que verdadeiramente dá autoridade aos eleitos e nomeados. Eleitos e nomeados sem autoridade moral não são aceites, seguidos ou obedecidos.
Conclusão
Como Jesus, vencedores das três tentações são os ricos não enamorados da sua riqueza, os famosos, não enamorados da sua imagem e os poderosos não enamorados do poder.
Fr. Jorge Amaro, IMC
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