Rosenberg pouco se preocupou com as implicações da sua técnica para saberes como a filosofia do direito, a ecologia, a antropologia cultural, a sociologia, a teologia e a ética. Fez afirmações aqui e ali sobres estes temas, mas não desenvolveu sistematicamente nenhum deles. Na verdade, escreveu muito pouco, praticamente só um livro, onde explicou de forma muito coloquial, a sua técnica. - A única exceção foram as escolas-girafa que ajudou a criar para que as crianças fossem educadas nesta nova linguagem e filosofia de vida, na esperança de que se alastrasse ao resto do mundo.
Muitos dos que entram em contacto com a comunicação não violenta, dão-se conta de que, mais que uma linguagem ou técnica linguística, a CNV é uma filosofia de vida. Vimo-nos na obrigação de desenvolver alguns temas porque entendemos que esta nova filosofia de vida requer uma mudança de mentalidade na forma como temos vindo a estudar as ciências humanas. A ética é talvez o assunto mais espinhoso sobre o qual Rosenberg fez afirmações soltas, mas que nunca abordou sistematicamente.
Sabemos que foi contra todas as avaliações moralistas e dualismos, como certo/errado, mau/bom, correto/incorreto, adequado/inadequado. Como ele disse: na vida, em vez de jogarmos o jogo “como tornar a vida maravilhosa”, jogamos o “quem está certo/quem está errado, quem tem razão/ - quem a não tem. Conheceis este jogo? É um jogo onde ninguém ganha, todos perdem”. Será que Rosenberg era contra a ética? Será que defendeu que esta devia desaparecer por sempre ter sido um instrumento de dominação?
A origem do mal
Eu sou o Senhor e não há outro, não existe outro Deus além de mim. (…) Formo a luz e crio as trevas, dou a felicidade e mando a infelicidade. Eu sou o Senhor, que faço todas estas coisas. Isaías 45, 5, 7
“Disseste-me, meu Deus para acreditar no inferno. Mas proibiste-me de pensar…em qualquer homem como maldito”. Pierre Teilhard de Chardin
O jesuíta francês Teilhard de Chardin, no intuito de reconciliar o livro do Génesis com a ciência da evolução das espécies, começa por afirmar sem rodeios que Adão, como figura histórica, que ao pecar trouxe o mal, o sofrimento e a morte, nunca existiu.
Logo a seguir, opõe-se a S. Paulo em Romanos 8, onde se diz que o sofrimento, o mal e a morte, são consequências do pecado de Adão e Eva, afirmando que o sofrimento, o mal e a morte sempre existiram. Para Teilhard de Chardin, e como sugere o texto de Isaías 45, se o mal existe no mundo é porque sempre existiu e, de alguma forma, Deus é responsável por isso pois, como afirma o mesmo texto, não há outro Deus.
O Jardim do Éden foi criado por Deus, a árvore do conhecimento do bem e do mal foi lá colocada por Deus; ou seja, Deus para preservar a liberdade do Homem, criou uma alternativa a si mesmo abrindo a possibilidade ao mal. Não criou o mal em si nem os males concretos, esses são da única responsabilidade do Homem pelo uso errado da sua liberdade.
Deus que existe na eternidade para além do bem e do mal, criou uma criação boa em si mesma porque Deus é bom, mas aperfeiçoável e colocou nesta criação um homem livre, com a capacidade para a aperfeiçoar; um mundo já perfeito seria uma pura extensão de Deus não diferente de Deus, e o homem não teria nada que fazer e, claro, não seria livre.
Porém, algo que pode ser aperfeiçoável pode ser também suscetível de se degradar. Logo, na sua primeira ação sobre a criação, Adão, em vez de a aperfeiçoar, arruinou-a; como dizem os provérbios, “Saiu-lhe o tiro pela culatra” ou “Foi pior a emenda que o soneto”.
O pecado original: usurpação do critério de bem e de mal
O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no Jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar. E o Senhor Deus deu esta ordem ao homem: «Podes comer do fruto de todas as árvores do Jardim; mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás.» Génesis 2, 15-17
Deus criou o ser humano e colocou-o num Jardim para que vivesse a vida em plenitude; tinha liberdade plena para fazer tudo o que desejasse, mas, como cláusulas de um contrato em letra pequenina, não podia comer do fruto, nem tocar na árvore do conhecimento do bem e do mal que estava no centro do Jardim.
Que significa a árvore do conhecimento do bem e do mal e por que está colocada no centro do Jardim? Se o Jardim significa vida em plenitude, felicidade e a realização de todas as nossas potencialidades, um rigoroso discernimento entre o mal e o bem, entre o que contribui ou não para essa felicidade, é o centro dessa vida em plenitude.
De quem é a prerrogativa do discernimento entre o bem e o mal? Decerto não é nossa, pertence a Deus, o critério é Dele; sabe melhor o Criador como deve funcionar a criatura que a própria criatura. Portanto, se a prerrogativa ou o critério do discernimento entre o bem e o mal tivesse permanecido com Deus, a nossa vida teria sido até agora um mar de rosas.
Ao comerem do fruto proibido, na sua mente, na sua vontade e na sua liberdade, tornaram-se eles mesmos no critério do bem e do mal, usurpando essa prerrogativa a Deus. Fizeram o que Prometeu fez na mitologia grega: roubar o fogo aos deuses. De agora em adiante, somos nós quem decide o que é certo e o que é errado, o que é mau e o que é bom. Este foi o erro fundamental de Adão e Eva.
A serpente tinha razão, eles de facto seriam “como deuses”, por terem usurpado uma prerrogativa que era só de Deus. Mas é claro que, na realidade eles não se tornaram deuses, muito pelo contrário foi tudo uma ilusão, pois tiveram de pagar o preço da sua usurpação. Pensaram que estavam a fazer o correto – na verdade, ninguém faz o mal pensando que está a fazer o mal, nem mesmo Hitler que pensava que estava a livrar o mundo de uma peste, exterminando 5 milhões de judeus.
Enquanto Deus era Deus e a criatura era criatura, todos olhavam para Deus em busca de inspiração e orientação para as suas vidas, havia um único critério. Enquanto Deus era Pai todos éramos irmãos; a usurpação do lugar de Deus criou divisão, rivalidade e conflito, pois todos querem ocupar esse lugar.
Quando eu digo que sou o critério do bem e do mal e tu dizes que também o és; quando eu quero ocupar o centro e tu também queres, entramos em conflito, somos como dois grandes planetas que querem ocupar o mesmo lugar, o lugar do Sol.
A partir do momento em que os nossos pais comeram do fruto, sentiram-se nus, ou seja, inseguros e vulneráveis, pois todos queriam ser deuses. A violência, a rivalidade e a competição estabeleceram-se, porque todos tinham que se vestir e proteger para se defenderem uns dos outros. Os deuses não se dão bem uns com os outros: já encontramos esta rivalidade tanto na mitologia babilónica, como na grega e na romana.
Parafraseando Rosenberg a este respeito, podemos dizer que enquanto estávamos no Jardim do Éden jogávamos o jogo de "Como tornar a nossa vida maravilhosa"; quando roubamos a Deus a prerrogativa e o critério do bem e do mal, começámos a jogar o jogo de "Quem está certo/- quem está errado", e temo-lo jogado desde aquele tempo até agora…
Jesus devolve a Deus a prerrogativa sobre o bem e o mal
Quando se punha a caminho, alguém correu para Ele e ajoelhou-se, perguntando: «Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?» Jesus disse: «Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão um só: Deus». Marcos 10, 17-18
Parece insólita a reação de Jesus ao ser chamado “Bom Mestre”. Sabemos que Ele aproveita todas as deixas para ensinar algo. Se não quisesse ensinar nada neste caso podia ter ignorado a forma como o jovem o qualificou, passando ao ponto seguinte que, segundo o evangelho, era certificar-se do cumprimento dos mandamentos. Ao contrário Jesus rejeita a qualificação dizendo “Porque me chamas bom? quem és tu para me julgar, porque tomas para ti e o critério do bem e do mal?” A prerrogativa do bem e do mal pertence a Deus e somente a Ele.
Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Lucas 6, 37
Tanto na forma como viveu, no seu comportamento, como nos seus ensinamentos, Jesus devolve a Deus a prerrogativa do bem e do mal. Por isso Ele não condenou Zaqueu, o publicano, pelos seus muitos crimes financeiros (Lucas 19, 1-10) ou a mulher apanhada em adultério pelos seus pecados sexuais (João 8, 1-11), nem sequer a Samaritana pelos seus divórcios compulsivos (João 4, 1-42). Ao contrário dos fariseus, nunca se considerou a si mesmo justo e os outros pecadores. Nunca julgou ninguém e aconselhou-nos a fazer o mesmo.
A parábola do trigo e do joio mostra isto mesmo claramente; o trigo cresce com o joio e um parece-se com o outro de tal forma que só Deus ao fim da ceifa pode discernir o que é trigo do que é joio (Mateus 13, 24-43). No nosso mundo, na nossa sociedade, há muitos lobos vestidos de cordeiros e cordeiros vestidos de lobos; só Deus conhece verdadeiramente a identidade de cada um, por isso dizemos “Livre-me Deus dos meus amigos, que dos meus inimigos me livro eu”. Nós julgamos pelas aparências, Deus vê o coração de cada um.
Só no Reino de Deus, ou segundo a parábola, só no tempo da colheita é que o bem e o mal podem ser perfeitamente diferenciados. Até lá, e enquanto vivemos ainda nesta terra, devolvamos a Deus o que só a Ele pertence e evitemos julgar os nossos irmãos tal como Jesus fez e nos aconselhou a fazer.
Alguém poderia ainda pensar que a capacidade para diferenciar o bem do mal afinal não é um castigo, mas sim um prémio, uma vez que, esta faculdade existe em todas as religiões e sistemas éticos. Maimonides, judeu do Reino de Granada, convertido ao Islão no século XII, aristotélico em quem S. Tomás de Aquino se inspirou, responde a esta questão dizendo que definitivamente foi um castigo e não um prémio.
Longe de ganhar uma faculdade, Adão e Eva perderam uma: quando roubaram a Deus o critério de diferenciação do bem e do mal, entrando no Seu domínio, perderam o paraíso real de estar em harmonia com a ordem natural das coisas.
Isto leva-nos mais uma vez ao coração da CNV que consiste em diferenciar observações ligadas ao que é objetivamente observável, das interpretações e avaliações subjetivas do que observamos e que nos levam à arbitrariedade e ao relativismo, definitivamente à área da opinião, ao campo da moral, ao declarar isto ou aquilo como bom/mau, certo/errado, agregando à realidade observável algo que objetivamente não está lá.
No momento em que avalio o meu próximo e o julgo como bom ou mau, abandono o mundo do que é direta e objetivamente observável, sou expulso do paraíso para entrar no campo do subjetivismo e arbitrariedade; abandono o campo natural do ver, sentir, necessitar e pedir, para ocupar o lugar Daquele que tudo sabe e se considera como o padrão, a medida exata de tudo - Deus.
Nunca poderemos saber se algo é verdadeiramente mau ou bom. “Não há males que por bem não venham” e “Deus escreve direito por linhas tortas”, diz o povo. Tudo o que podemos saber e nos interessa saber é se algo vai ao encontro e satisfaz, ou não, as nossas necessidades e as dos outros.
Até ao pecado, Adão e Eva, eram inocentes como crianças e, como tal, observavam sem julgar. Ao perderem a inocência com o erro que fizeram, passaram a julgar sem ver e julgaram mal, sempre julgarão mal porque o julgar pertence a Deus. Só Ele pode julgar porque só ele sabe tudo.
Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti. Nietzche
O que acontece quando colocamos de lado as nossas competências e começamos a emitir vereditos sobre o que está mal e o que está bem? Acabamos por interferir com a possibilidade de entendimento humano, ligação e colaboração, e semeamos as sementes da divisão, violência e guerra. É precisamente isto que temos feito nos últimos 10.000 anos, uns tentando convencer os outros da sua visão individual ou coletiva do que é o bem e do que é o mal.
O objetivo da CNV é voltar ao Jardim do Éden abdicando ou transcendendo a nossa tendência ou vício de julgar, voltando ao estado natural de observar e sentir, tomando consciência das nossas necessidades e das dos outros e, em conjunto, pedir e procurar a melhor estratégia para as satisfazer. Desta forma, seremos capazes de voltar ao estado de “verdadeiramente vivos”, de S. Ireneu, readquirindo a filiação divina que tínhamos perdido e finalmente ter vida e vida em abundância, como Jesus disse que veio trazer (João 10,10).
Sede perfeitos ou misericordiosos?
Sede perfeitos como Deus vosso Pai é perfeito… Mateus 5, 48
Sede misericordiosos para com os outros, assim como vosso Pai é misericordioso para convosco. Lucas 6:36
São Lucas deu-se conta da falácia do perfeccionismo e deu a volta ao texto judaizante de Mateus; não estamos chamados a imitar a perfeição de Deus pois nunca conseguiremos ser perfeitos como Ele. Estamos sim chamados a imitar a sua misericórdia e compaixão, palavras e conceitos bem conhecidos da bíblia que inspiraram Rosenberg a criar a técnica e a filosofia da comunicação não violenta.
A minha perfeição pode ser uma razão de orgulho, como era para os fariseus no tempo de Jesus e certamente não aproveita a ninguém; pelo contrário, pode ser razão para discriminar e julgar os outros que achamos menos perfeitos que nós.
Ao contrário da perfeição, valor individual que me afasta dos outros, a misericórdia é também um valor individual, mas tem alcance social, pois não se pode ser misericordioso sem praticar misericórdia e não se pode praticar misericórdia sem fazer atos de misericórdia para connosco mesmos e para com os outros. O misericordioso é tolerante com os seus próprios defeitos e com os dos outros; o perfeccionista é intolerante para consigo próprio e para com os outros.
The goal of life is not to become perfect but to become progressively less stupid (O objetivo de vida não é tornarmo-nos perfeitos mas tornarmo-nos progressivamente menos estúpidos) M. Rosenberg – O perfeccionismo não é um valor, a perfeição objetiva não existe; não há uma meta objetiva uma bitola para todos. O perfeccionismo é doentio pois coloca-nos num estado de permanente angústia, stress e ansiedade. Não somos, portanto, chamados a ser perfeitos, mas sim a aperfeiçoarmo-nos, não somos chamados a dar o melhor, mas a dar o nosso melhor.
Tem, portanto, razão Rosenberg ao dizer que o objetivo da vida não é sermos perfeitos, mas sermos cada vez menos estúpidos, ou seja, o nosso objetivo é conquistar terreno à estupidez. É certo que conquistar terreno à estupidez tem como consequência sermos cada vez mais perfeitos, mas este não é o objetivo, é um subproduto do crescimento. Tomando como analogia os efeitos primários e secundários de um medicamento, a perfeição é um efeito secundário, o efeito primário é ser menos estúpido.
Anything worth doing is wort doing poorly…(Tudo o que vale a pena fazer vale a pena fazer mal) M. Rosenberg – Para conquistar terreno à estupidez devemos aceitar os nossos erros, como parte do progresso, e nunca deixar de atuar ou tentar pelo medo de não nos sairmos bem; vale sempre a pena tentar, mesmo que o resultado seja muito fraco, pois é errando que aprendemos.
“Pecado” em hebraico é falhar o alvo – A noção de pecado, tão central no cristianismo, vista como um ato horrendo que nos faz impuros e se cola à nossa consciência escrupulosa que não cessa de nos acusar e perseguir e que finalmente nos leva ao inferno, ou seja, ao eterno castigo, é alheia ao judaísmo. Em hebraico pecado é “chait” e não significa nada do que acabámos de dizer, apenas significa falhar a diana, falhar ou errar o alvo.
O livro dos Juízes, (20,16) fala de atiradores de funda que podiam acertar num cabelo sem falhar o alvo. A palavra pecado pode ser reenquadrada fora do paradigma moralista de pecado/virtude, mau/bom. No livro dos Reis 1, 20-21 Bathsheba visita o seu marido David já moribundo e diz-lhe que “se Salomão não for o seu sucessor, ela e o seu filho Salomão serão vistos e tratados como” chataim”, pecadores. Este conceito de pecado, aliás o original, não tem conotações moralistas pelo que se enquadra perfeitamente na CNV.
“Errare humanum est”, como errar faz parte da natureza humana, Jesus também errou; de facto, pensava que o fim do mundo estava muito perto; o mesmo pensava S. Paulo, mas equivocaram-se os dois e S. Pedro teve que dizer, num dos últimos escritos do NT, que mil anos para Deus são como um dia e um dia como mil anos. Cristo tarda em vir para dar uma hipótese a todos de se converterem. (2 Pedro 3, 8-9)
Enquadrando-se perfeitamente com a CNV, “pecado” significa então que erramos ou nos enganamos na nossa tentativa de satisfazer as nossas necessidades. O pecado é um erro de estratégia: o que pensávamos que as satisfazia não as satisfez; ou quando satisfizemos as nossas necessidades à custa dos outros, ou quando satisfizemos as necessidades dos outros à custa das nossas, ou até quando satisfizemos algumas das nossas necessidades à custa de outras nossas necessidades.
Ao definir o pecado desta forma passamos de uma moral heterónima para uma moral autónoma; não tenho que me medir em relação a um ideal de perfeição abstrato e fora de mim, mas tenho de procurar o melhor de mim mesmo. Desta forma, não dependo de uma autoridade externa para saber o que é bom ou o que é mau, mas somente da minha consciência moral que, bem formada e informada, me dita a cada momento o que devo ou não devo fazer.
A moral dos senhores vs a moral dos escravos
É pelas nossas virtudes que somos mais bem punidos” Nietzsche
Nos seus livros “Genealogia da moral” e “Para além do bem e do mal” Friedrich Nietzsche demonstra que a moral não é inata nem imutável, nem se deduz da natureza humana, mas é produto da história. Na pré-história, quando a linha entre o humano e o animal ainda não estava bem definida, alguns homens sobrepuseram-se aos outros subjugando-os pela lei do mais forte e mais capacitado que vigora entre os animais. Os vitoriosos são os senhores e os derrotados são os escravos.
Os senhores, ao terem êxito, julgam a realidade por si mesmos e pelos seus atos, em virtude da situação privilegiada de que gozam após a sua vitória sobre os escravos. O forte é criador de valores por isso para os senhores “bom” é o modo como sou e como ajo; é a violência, a guerra, a aventura, o risco, o poder, o prazer, a crueldade, a força física, a ação, a liberdade, o poder a autonomia e independência: foram estes valores que os colocaram numa situação privilegiada em relação aos outros.
Os senhores, os que podem, querem e mandam, podem exteriorizar todos os seus instintos, ou seja, podem atuar com base neles sem nenhuma limitação; podem matar e esfolar, roubar, violar, ter as mulheres que querem, banquetear-se, embebedar-se que ninguém os chama à razão pois eles são os aristocratas, os que mandam, estão a cima da lei pois são eles que a ditam. Por exemplo, ainda nos dias de hoje, o patrão tem mais liberdade para expressar os seus instintos que o empregado.
Quando os guerreiros, senhores ou aristocratas, lutam entre si pela hegemonia ou poder absoluto, os que ganham são chamados nobres de sangue azul, enquanto que os derrotados, não sendo da plebe ou escravos, encontram-se agora também submetidos aos senhores de mais alto estatuto. Ao ser-lhes negada, como outrora eles mesmos tinham negado aos escravos, a liberdade para expressarem os seus instintos, estes vêem-se obrigados a reprimi-los, interiorizá-los, ou seja, a voltá-los contra si mesmos.
Os instintos inibidos e reprimidos cavam uma caverna no íntimo do homem; nasce assim o mundo interior, o pensamento, a inteligência, a vida interior, a espiritualidade, Deus e é claro a religião e a casta sacerdotal. O instinto de crueldade, por exemplo, voltado contra o próprio indivíduo, transforma-se na consciência moral escrupulosa que o persegue e que nunca está contente com o desempenho uma vez que o ideal, por sua própria definição, é inalcançável.
Temos agora três classes, a nobreza, o clero e o povo. Como guerreiros derrotados, os sacerdotes ao não poderem exteriorizar os seus instintos como antes faziam, invertem a moral dos senhores: surgem os pensadores, a casta dos hábitos interiores, dos cientistas, dos filósofos e matemáticos que, tal como os sacerdotes, procuram agora dominar pela mente porque não conseguiram fazê-lo pela força física e das armas. São, por isso, pacifistas, contra a guerra ou qualquer forma de violência, são contemplativos em vez de ativos, pensadores em vez de atores.
Os sacerdotes ressentidos pela derrota e com um grande desejo de se vingar, ao não poderem defrontar e vencer os nobres fisicamente, tecem um plano para os vencer sorrateira e mentalmente. Tal como a raposa que, não podendo chegar às uvas, as declara verdes, assim fazem os sacerdotes à moral dos senhores.
Nasce assim a moral dos escravos, que não conseguiram impor-se no mundo real e inventam o mundo ideal ascético, o espírito, Deus; refugiam-se em mosteiros e negam a vida real que afirmam ser um vale de lágrimas, para afirmar a vida no além onde voltarão a ser felizes. Negam a terra para afirmar o céu, ou seja, transferem o valor da vida para fora da vida, o real para o abstrato. Surge Sócrates com os seus valores, o mundo das ideias de Platão.
Em nome de Deus e na outra vida abdicam desta, dos seus instintos sexuais, do poder, do prazer de tudo o que antes possuíam quando eram senhores. Valores agora são o pacifismo, a humildade, a obediência, a pobreza, a prudência, o jejum, a abstinência, a igualdade, a fraternidade, a justiça.
Sócrates e Platão, toda a filosofia grega e a ciência encaixam-se no quadro da moral dos escravos, pois encontram a sua força não nos braços, mas na mente; todo o povo judeu encaixa neste quadro; de facto, começam a sua história sendo escravos no Egipto, derrotando posteriormente os seus mestres não pela força das armas, mas pela inteligência.
Eles mesmos assim interpretam a sua saga pela forma como contam a história de Jacob. Astutamente, com a ajuda de sua mãe, engana seu pai Isaac e derrota o seu irmão mais velho Esaú que era muito mais forte fisicamente, roubando-lhe o direito de primogenitura. Jacob, cujo outro nome é Israel gera 12 filhos que são as cabeças das 12 tribos de Israel.
Nietzsche chama aos judeus um povo sacerdotal e a moral dos escravos é de facto a moral do judaico- cristianismo que, pouco a pouco, se impôs. De facto, tanto o judaísmo como o cristianismo nasceram na escravidão: os judeus foram escravos no Egipto, os cristãos foram durante cinco séculos a classe mais pobre perseguida pelo império romano, acabando por prevalecer sobre este.
A moral dos senhores é autónoma, os valores são definidos a partir da experiência do indivíduo; a moral dos fracos ou dos escravos é heterónima, os valores são normas que surgem a partir de fora do indivíduo, a moral é ideológica: “Deus disse, a Bíblia manda”.
A moral dos senhores é vital, baseada no corpo e nos seus apetites e necessidades, a moral dos escravos é abstrata, baseada em valores que negam e sacrificam a vida real.
A moral dos senhores é naturista, avalia o desempenho na medida em que satisfaz ou não os instintos e as necessidades; a moral dos escravos, nega a necessidade, coloca-lhe a etiqueta de pecaminosa, feia, impura, coloca etiquetas, criminaliza em nome de uma ideologia e ideal inalcançável.
Ética naturalista ou regresso ao Jardim do Éden
Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar (símbolo do mal) já não existia. Apocalipse 21, 1
“Somewhere beyond right and wrong, there is a garden. I will meet you there.” (Algures para lá do certo e do errado, existe um jardim. Encontrar-me-ei lá contigo.) Jalaluddin Mevlana Rumi
Rumi é um poeta persa e místico sufi que viveu no século XIII; para ele o amor universal é a pedra angular da vida espiritual e a solução do binómio bem/mal. - Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal, pois o amor supera a dicotomia entre o bem e o mal.
It doesn’t matter who is right or wrong. It only matters that you are not hurt. And that we both can benefit. All true benefits are mutual.” (Pouco importa quem está certo ou errado. Apenas importa que não sintas mágoa. E que ambos possamos colher os benefícios. Todos os benefícios verdadeiros são mútuos. Donald Walsh
A dicotomia mal/bem não existe entre os animais e por isso eles não são violentos, unicamente procuram satisfazer as suas necessidades. As diferenças entre os humanos e os animais são apenas duas: os humanos têm mais necessidades que os animais e têm o uso da razão, que lhes dá mais recursos para satisfazer as necessidades de todos, não as de uns em detrimento das necessidades dos outros. A função da dicotomia bem/mal só pode ser a de uns, os que se designam como bons, dominarem aqueles a quem designam como maus.
Só temos que tirar conclusões e parafrasear o que já foi dito. Entendemos que a CNV não tem ética na medida em que se abstém de julgar as pessoas e os seus atos; situa-se, neste sentido, para além do bem e do mal na medida em que o seu objetivo não é avaliar quem é bom e quem é mau, quem procedeu bem e quem procedeu mal, mas sim verificar se as necessidades humanas foram ou não satisfeitas.
Neste sentido é naturista pois é terra, a terra que guarda semelhanças com a moral dos senhores; não é uma ideia abstrata, artificial e inalcançável de valores, ao serviço de uma religião ou de uma ideologia. Não julga as pessoas, nem lhes coloca uma etiqueta, ao contrário da moral dos escravos, cujos valores surgem de fora da vida, sendo, portanto, uma moral heterónima.
A moral da CNV é autónoma porque confere valor às nossas necessidades, das mais básicas e físicas até às mais altas e espirituais. É moral o que satisfaz as minhas e as necessidades dos outros e imoral o que nem satisfaz umas nem outras ou apenas satisfaz umas.
A ética da CNV difere, porém da moral dos senhores e aproxima-se da moral dos escravos ao considerar a satisfação das necessidades dos outros tão importante como a satisfação das minhas; e mais: as necessidades dos outros também são necessidades minhas. A CNV entende que todos ganham quando um ganha e todos perdem quando um perde; ou ganham todos ou perdem todos; ninguém pode ser feliz à custa da infelicidade dos outros.
Assemelhando-se à moral dos senhores, a ética da CNV é autónoma, natural e naturista, porque os seus valores brotam da natureza do homem:
- BOA - é a estratégia ou a ação que vai ao encontro das minhas necessidades, bem como das necessidades dos outros.
- MÁ - é a estratégia ou a ação que só vai ao encontro das minhas necessidades em detrimento das necessidades dos outros ou, vice-versa, vai ao encontro das necessidades dos outros em detrimento das minhas.
- BOA - é a estratégia ou a ação que espelha e é subserviente à ideologia dominante e ao que arbitrária e autocraticamente os poderes instituídos comandam, mesmo que vá contra a natureza humana, desconsidere a liberdade da pessoa, as suas necessidades e valores.
- MÁ – é a estratégia ou a ação que se rebela contra a ideologia dominante e os seus valores artificialmente impostos. Aquele que tenta ser fiel mesmo e busca a emancipação é visto como uma ovelha negra e é rotulado como egoísta pelos poderes instituídos. Se as suas ações chegassem a constituir uma ameaça aos poderes instituídos, seria declarado “persona non grata” e depois ostracizado ou eliminado.
Isto pode parecer muito simplista e de facto é; a simplificação é propositada para facilitar o entendimento. Quanto a como as coisas realmente são, sabemos que a ética que governa o nosso mundo moderno não corresponde 100% à moral dos escravos, adotada pelo sistema de dominação, nem à moralidade dos mestres, mas a uma combinação de ambas. Isto faz com que a ética atual, não estando já totalmente contra a natureza humana, seja ainda acentuadamente ideológica.
A CNV é uma volta ao Jardim do Éden, à inocência primogénita, à natureza antes do aparecimento da avaliação moral dos atos, num tempo em que a nossa única preocupação era satisfazer as nossas necessidades e as dos outros. Jesus dizia que se não formos como crianças não entraremos no Reino dos Céus; a criança observa e não julga, situa-se para além do bem e do mal ou fora deste binómio; tem consciência das suas necessidades e naturalmente solicita a sua satisfação. A ética não violenta é, portanto, uma ética naturalista, a sua única preocupação é que todos satisfaçam as suas necessidades.
A moral da CNV baseia-se na satisfação ou não das necessidades e valores de todos. Como assenta radicalmente no mandamento do amor ao próximo como a mim mesmo, e como ninguém pode ser feliz sozinho ou à custa dos outros, em CNV as necessidades dos outros são também minhas: não há vitoriosos nem derrotados, não há ganhadores nem perdedores, ou ganhamos todos ou perdemos todos.
Contrária à moral dos escravos, por ser uma ideia artificial e mais semelhante à moral dos senhores uma vez que se baseia nas necessidades e valores humanos que são universais, a moral da comunicação não violenta é uma moral natural, naturalista ou ecológica. É, portanto, bom o que satisfaz as minhas necessidades e as dos outros e mau o que não satisfaz as minhas necessidades nem as dos outros ou o que só satisfaz as minhas, ou o que só satisfaz as dos outros.
A falácia da dicotomia do Bem contraposto ao Mal
Pondo-se a caminho, correu para ele um homem, o qual se ajoelhou diante dele e lhe perguntou: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” E Jesus lhe disse: “Por que me chamas bom? Ninguém há bom senão um, que é Deus.” Marcos 10, 17-18
Quando pensamos sobre as implicações morais ou éticas do bem e do mal, na prática, na ética real, que é ainda em grande medida a ética do sistema de dominação, chegamos à conclusão de que tal dicotomia é fictícia, artificial, ideológica e arbitrária. Se existe, é porque serve os interesses de alguém; serve aqueles que, farisaicamente, se consideram bons designando os outros como maus.
Jesus recusou-se a ser chamado bom pelo jovem rico.
Durante a sua vida e em todos os casos que lhe foram apresentados, sempre se recusou a desdenhar ou condenar aqueles considerados maus ou pecadores pelo sistema de dominação. A este respeito, é muito icónica a sua oposição à monda das chamadas ervas daninhas que crescem lado a lado com o trigo (Mateus 13:24-30), também aqui, tal como no texto anterior, transfere para Deus a prerrogativa do bem e do mal, pois só Deus pode diferenciar um do outro. Qualquer tentativa de o fazer por parte dos seres humanos, é ideológica e serve sempre um propósito oculto ou seja uma ideologia.
Por outro lado, acerca do mal, nunca ninguém fez o mal por mal; aliás em português é típico que quando alguém faz algo de mal diga logo, “não foi por mal”. Todo os que na nossa perspetiva fizeram coisas más, na sua perspetiva, estavam a fazer o bem.
Nenhum suicida islamista acha que está a dar sua vida por uma coisa má. No momento da redação deste texto, um marido e uma esposa usaram os seus quatro filhos numa sequência de ataques suicidas mortais em três igrejas na cidade de Surabaia, na Indonésia. Ao sacrificarem as suas vidas, segundo eles por um bem maior, aquela família de 6 pessoas pensava certamente que estava a fazer o bem.
Ética das necessidades
A originalidade da CNV é a promoção do conceito de “necessidade” ao estatuto de valor. O sistema de dominação considera a “necessidade” como algo negativo. Não deveríamos ter necessidades, mas se as temos não devemos ceder ao seu poder sobre nós. Pelo contrário, é salutar aquele que consegue abdicar delas, sacrificá-las por altos valores e ideais no altar do sistema de dominação.
Um agricultor alemão na cidade de Schilda tinha um bom cavalo que trabalhava no campo. A sua única queixa contra o animal era que ele consumia muita aveia; gradualmente, foi-lhe cortando a ração, na esperança de chegar ao dia em que o animal trabalhasse sem comer. Esse dia de facto chegou, o animal trabalhou o dia inteiro sem ter comido, só que no dia seguinte de manhã foi encontrado morto.
Houve um tempo em que o ato sexual era visto com algo sujo, feio e pecaminoso; só era visto como um mal menor quando era realizado dentro de um matrimónio com a única finalidade de procriar. Mas mesmo nesse caso, os casais cristãos eram aconselhados a não desfrutar do prazer do sexo e a abster-se por completo de relações sexuais durante a Quaresma. De resto, era visto como um “remedium concupiscência” paliativo para a voluptuosidade, não como um ato de amor.
Em CNV necessidades e valores são usados indistintamente como sinónimos; as necessidades são valores e os valores são necessidades. Para o sistema de dominação, satisfazer as próprias necessidades é ser egoísta; para a CNV, é simplesmente ser fiel a si mesmo. Em CNV só as necessidades são valores e os valores que não são atribuíveis a uma necessidade não são valores de modo algum; porque se opõem à natureza humana são instrumentos ideológicos do sistema de dominação.
A moral do amor
Precisamos ter em mente que em CNV o amor não é um sentimento, embora existam sentimentos ligados a ele, mas sim uma necessidade. Todas as necessidades têm, de facto, sentimentos ligados a elas, pois são os sentimentos que nos alertam e dizem se a necessidade está a ser satisfeita ou não. O amor como necessidade não parece, à primeira vista, estar ligado com a moral, mas realmente está.
Quando julgamos não amamos, quando amamos não julgamos; o amor universal sobretudo o amor aos inimigos supera o pensamento dualista do bem contraposto ao mal, o que nos leva para a eternidade que é Deus que faz chover sobre justos e injustos e ama a todos incondicionalmente. Somos chamados a ser como Ele.
Diz-se também que o amor é cego; que os amantes tendem a não ver os defeitos e deficiências um do outro e que se abstêm naturalmente de se julgar um ao outro. E também parece que quando o amor desaparece só se vêm defeitos e deficiências. Isto leva-nos a concluir que só o amor nos pode livrar de ser hipercríticos com os outros, levando-nos de volta ao Jardim do Éden.
Quando os amantes estão juntos perdem a noção do tempo e do espaço e experimentam virtualmente a eternidade, provando que ela existe. Porque Deus é amor, só o amor te pode conduzir à eternidade real. Só o amor pode trazer o céu à terra e fazer esta voltar ao Jardim do Éden. O próprio Nietzsche diz: “Aquilo que se faz por amor está sempre para além do bem e do mal”
Pe. Jorge Amaro, IMC
Excelente texto. Parabéns Padre Jorge.
ResponderEliminar