15 de dezembro de 2018

CNV - O idioma do Reino de Deus

“Someday, after mastering the winds, the waves, the tides and gravity, we shall harness for God the energies of love, and then, for a second time in the history of the world, man will have discovered fire.” (“Um dia, depois de dominarmos os ventos, as ondas, os mares e a gravidade, dominaremos para Deus as energias do amor, e então, pela segunda vez na História do mundo, o homem descobrirá o fogo.” Pierre Teilhard de Chardin

No fim desta longa digressão por esta nova forma de falar com os outros e connosco mesmos, de ouvir os outros e a nós mesmos e de pensar sobre nós, sobre os outros e sobre o mundo em geral; depois de verificar que esta nova linguagem, para além de ser um idioma ou forma de falar, é uma filosofia de vida que é transversal a todas as ciências humanas, uma nova matriz ou paradigma para a vida humana em todas as suas vertentes sociais e individuais, concluímos que se trata da língua que se fala ou falará no Reino de Deus.

A CNV leva-nos a ser compassivos e a dar e receber compassivamente; o que quer que façamos, os serviços que prestamos aos outros e a nós mesmos, tudo tem como motivação única enriquecer a vida - a nossa e a dos outros - e a felicidade. Por isso nada fazemos por obrigação, dever, medo de castigos, nem na esperança de um prémio, por vergonha ou por sentimento de culpa. Entendemos que está na nossa natureza, nos nossos genes, o gosto pela gratuidade; nada fazemos que não seja por gosto; servimos os outros porque nos faz felizes contribuir para a sua felicidade.

Em CNV, não fazemos juízos de valor moral ou ético sobre o desempenho dos outros: não insultamos, nem humilhamos, nem criticamos, nem etiquetamos, não fazemos análises nem comparações, porque sabemos que tais atitudes colocam as pessoas na defensiva. Avaliamos o nosso desempenho e o dos outros na medida em que satisfaz as nossas necessidades/valores e as deles, com vista a aprendermos com os nossos erros e não para nos sentirmos culpados ou para culpabilizar os outros.

Sentimo-nos responsáveis pelos nossos próprios sentimentos e ações. O que os outros fazem ou dizem pode desencadear em nós sentimentos e emoções, mas não os causa. A causa destes está na forma como recebemos, julgamos e interpretamos o que os outros dizem ou fazem, assim como no facto de irem ou não ao encontro das nossas necessidades e expectativas nesse momento. Ao expressar os nossos sentimentos, expressamos também a necessidade satisfeita ou insatisfeita que lhe dá origem, usando sempre a fórmula: “Sinto-me… porque tenho necessidade… ou dou valor a…”

O Reino de Deus não a Igreja
“Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas o que veio foi a Igreja.” - Alfred Loisy (1857-1940)

Há uma descontinuidade entre Jesus de Nazaré e a Igreja; de facto, enquanto que a palavra “Ekklesía” só aparece duas vezes, e apenas no evangelho de S. Mateus 16,18; 18,1, em dois textos muito discutíveis, a expressão Reino de Deus ou Reino dos Céus, como prefere Mateus, aparece quase cem vezes.

Jesus inaugura o Reino, não a Igreja; não uma organização cultual ao serviço de uma religião ou sistema político, como foi mais tarde, mas sim um movimento igualitário de homens e mulheres, que não admite discriminações por razões de etnia, cultura, sexo, religião, classe social, ou procedência geográfica, e que tinha como finalidade uma sociedade onde reinasse a justiça, e a paz.

O anúncio do Reino de Deus teve um carácter subversivo, inconformista, utópico e desestabilizador do sistema de dominação violenta vigente antes de Jesus, durante o seu tempo e até aos nossos dias. É claro que o Reino de Deus não era tarefa de um só homem, mesmo sendo Jesus de Nazaré, nem de uma só geração, a dos seus discípulos e apóstolos.

Neste sentido, a Igreja nasce como fermento do Reino de Deus, como depositária da doutrina de Jesus e como corpo místico de Cristo, a reincarnação de Cristo em todos os aqui(s) e agora(s) da História da humanidade.

A Igreja está ao serviço da Missão que começou quando Deus enviou o seu filho ao mundo. A finalidade da Missão não é a “implantatio Ekklesia”, a implantação da Igreja, mas sim o Reino de Deus.

A absolutização da instituição eclesiástica e a sua identificação com o Reino, são heresias e perversões do movimento de Jesus. A Igreja tem a tentação de se idolatrar a si mesma, para evitar isto, o melhor antídoto é, como Jesus fez, colocar-se ao lado dos pobres, assumir a sua causa e trabalhar pela sua libertação e pela vinda do Reino de Deus.

Jesus e a violência religiosa
Jesus de Nazaré não cai de para-quedas na história de Israel, mas integra um movimento que começou antes dele e o levou até às últimas consequências: a destruição do Templo de Jerusalém (Mateus 24, 2), a destruição de si mesmo como Templo (João 2, 19) e a instituição de cada um de nós como templo do Espírito Santo. (1 Coríntios 6, 19-20)

Tudo começou quando uma seita do judaísmo, os monges do Qumran, abandonaram a religião oficial de Israel por a considerarem corrupta e violenta e se refugiaram em cavernas na margem do Mar Morto. Enquanto que todo o israelita para reentrar em comunhão com Deus, depois de violar a lei de Moisés, necessitava imolar um animal que atuava como bode expiatório: no mesmo momento em que Jesus morria na cruz, no Templo de Jerusalém imolavam-se mais de 3 mil cordeiros e cabritos.

A mim pertence todo o primogénito. E assim todo o primogénito macho do teu gado, quer graúdo quer miúdo, oferecê-lo-ás em memorial. Mas resgatarás com um cordeiro o primogénito do jumento ou, então, quebrar-lhe-ás a nuca. Resgatarás sempre o primogénito dos teus filhos e não aparecerás diante de mim de mãos vazias. Êxodo 34, 19-20

Não parece muito diferente das antigas religiões dos Maias e Aztecas onde se ofereciam sacrifícios humanos aos deuses. À volta do Templo criou-se a classe sacerdotal e, com esta, - o negócio e a corrupção instalaram-se; Anas e Caifás instruíam os oficiais do Tempo para que rejeitassem, classificando-os como defeituosos e impróprios para serem oferecidos a Deus, os cordeiros e cabritos que as pessoas traziam dos seus rebanhos, forçando-os assim a comprar os que procediam dos rebanhos dos sumos sacerdotes.

João Batista, sacerdote por ser filho de sacerdote, abdicou do Templo de Jerusalém para oficiar nas margens do Rio Jordão, trazendo assim a purificação dos pecados por via de água para fora dos muros do mosteiro de Qumran e, oferecendo-a a todos os descontentes da religião judaica.

Nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, (…) os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade. João 4, 21, 23

Jesus vai além do Batista e oferece não já um batismo de água mas sim do Espírito Santo: perdoa os pecados da mesma forma que cura e traz a religião para onde as pessoas vivem, não no Templo de Jerusalém, nem no deserto onde por 40 anos o povo se relacionou com Deus, mas nas vilas e cidades onde o povo está. Deus volta a habitar com o seu povo, como outrora no deserto, morando numa tenda e caminhando com o povo.

Em Jesus, Deus volta a caminhar com o seu povo como a Arca da Aliança que ia para todo o lado, até para as batalhas. Deixou de estar confinado a um Templo, do qual alguém tinha uma chave e o usava como instrumento de poder. Deus é Espírito e, como tal, está em toda a parte, é inerente a tudo o que Ele criou.

Fim do pensamento dualista
O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso, e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Isaías 11, 6-8

No reino de Deus não há ódios porque não há inimigos, os antagonismos são todos superados: os animais, antes inimigos uns dos outros, vivem agora em harmonia uns com os outros e com o ser humano.

Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. Gálatas 3, 27-28

Entre os humanos dá-se uma autêntica revolução francesa, extinguem-se as classes sociais e as castas, o sangue azul, a escravatura e o senhorio, o sexismo, a xenofobia e a homofobia; todos são iguais perante Deus que é Criador de tudo e Pai de todos, pelo que Jesus nos aconselha a que não usemos o título de Pai, ou mestre, ou doutor com outro que não Deus; não admitamos ninguém a  cima de nós, nem vejamos a ninguém abaixo de nós.

Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar já não existia. Apocalipse 21, 1

O reino de Deus é o novo céu, a nova terra, onde o mar, que para os hebreus era o símbolo do mal, já não existe; como nos encontramos para além dos antagonismos humanos e animais, também a diferenciação entre mal e bem deixa de existir: Deus é bom e só criou coisas boas. - O ser humano é a obra prima da criação de Deus, portanto só pode ser sumamente bom.

Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se adestrarão mais para a guerra. Isaías 2, 4

Como o mal deixa de existir, deixa de existir também a sua expressão máxima, a guerra, pelo que as armas de guerra, agora obsoletas, são forjadas e derretidas outra vez para fazer delas armas de paz. O próprio Jesus ao entrar em Jerusalém como rei não vem montado num cavalo, animal usado para a guerra e símbolo de poder e ostentação, vem montado num animal que é um verdadeiro símbolo de paz e humildade - o burro - pois os burros ainda hoje nos países pobres são o único transporte de mercadorias.

No monte Sião o Senhor do universo preparará para todos os povos um banquete de carnes gordas, acompanhadas de vinhos velhos, carnes gordas e saborosas, vinhos velhos e bem tratados. Neste monte, Ele arrancará o véu de luto que cobre todos os povos, o pano que encobre todas as nações. Isaías 25, 6-7

Por fim, tanto para Isaías como para Jesus, quatro séculos mais tarde, a melhor forma de representar o reino é através de um banquete, onde há prazer e alegria, diversão e convivência humana baseada no respeito e no amor. Um banquete no qual, na eventualidade de faltar o vinho da alegria, Jesus transformará a água, destinada à purificação, no vinho mais generoso que jamais se produziu. (João 2, 1-11)

CNV – A solução para todos os males
Our survival as a species depends on our ability to recognize that our well-being and the well-being of others are in fact one and the same. (A nossa sobrevivência enquanto espécie depende da nossa capacidade de reconhecer que o nosso bem estar e o bem estar dos outros são, na verdade, uma só coisa.) Marshall Rosenberg

A comunicação não violenta é a panaceia, o medicamento que cura todos os males, individuais e sociais, a pedra filosofal que transforma tudo em ouro, a teoria geral de tudo, o paradigma, a matriz de um mundo novo, do Reino de Deus.

A CNV pode ser eficazmente aplicada a todos os níveis de comunicação e em diversas situações: íntima, em relacionamentos, famílias, escolas, organizações e instituições, terapia e aconselhamento, negociações diplomáticas e de negócios, disputas e conflitos de qualquer natureza.

Ajusta a cosmovisão do ser humano, afirmando que o homem não é naturalmente mau como afirma o mito babilónico, mas naturalmente bom como afirma o mito bíblico e que a violência não está nos nossos genes, mas é antes uma doença, um problema que devemos resolver.

Desmascara também o mito da violência redentora, onde a violência se apresenta como a solução para si mesma. A violência não resolve nenhum problema e cria outros. Não é com ódio que se vencem os nossos inimigos; ao contrário do ódio que só os faz mais fortes, só o amor derrota verdadeiramente os nossos inimigos.

Ao amar os nossos inimigos, como Jesus nos disse que fizéssemos, expomos a falácia do mito da violência redentora e privamos o sistema de dominação de sua justificação moral. Ao longo da história, para sobreviver, o sistema de dominação acusava e declarava certas pessoas como "maus" e "inimigos" e assim justificava o uso da violência contra eles.

Substituindo a justiça retributiva pela justiça reparadora, reconcilia-se de uma forma sã e positiva a vítima com o criminoso de uma forma que os dois saram a ferida infligida e o infrator repara ou paga pelo seu crime não ao Estado, apodrecendo numa prisão, mas à vítima restabelecendo dignidade inicial desta e reabilitando-se a si mesmo para voltar a viver em sociedade

Estabelece uma nova relação com o nosso planeta baseada num desenvolvimento sustentável e numa coexistência pacífica e não numa exploração desenfreada dos recursos do planeta, pensando só nos próprios interesses mesquinhos de hoje, numa atitude irresponsável que pensa “quem vier depois de mim que se arranje”.

Nas escolas, como diz Rosenberg, para além das competências básicas de leitura, escrita e matemática, as crianças precisam de aprender a pensar por si mesmas, a encontrar por si mesmas o sentido e o significado do que aprendem, assim como a trabalhar e a viver juntas.

A CNV é a forma melhor e mais positiva de lidar com a ira e resolver conflitos, mesmo os de longa duração, desde que, como diz Rosenberg, as pessoas abdiquem de se criticar, julgar e analisar uns aos outros e entrem em contacto com as próprias necessidades e com as necessidades dos outros. Uma vez identificadas as necessidades de cada um dos envolvidos no conflito, é possível resolvê-las sem cedências e para satisfação de todos.

Subjacentes a toda a ação humana estão necessidades que as pessoas procuram satisfazer. O conhecimento, a identificação e a compreensão dessas mesmas necessidades, cria certamente um ponto de encontro e uma base que possibilite a cooperação e, mais globalmente, a paz.

Compreendermo-nos uns aos outros, ao nível das nossas necessidades, cria comunhão porque, a este nível humano mais profundo, as semelhanças entre nós superam as diferenças, o que origina uma maior compaixão.

Quando focamos a nossa atenção nas nossas necessidades mútuas, sem interpretar, criticar, culpar, esta observação nua e crua espevita a nossa criatividade, de tal modo que as soluções afloram naturalmente à nossa consciência. A esta profundidade, conflitos e mal-entendidos podem ser resolvidos com maior facilidade.

Seguindo os passos de seu mestre Carl Rogers, inspirado no conceito de compaixão presente em todas as religiões,  na compreensão teológica e antropológica de Walter Wink e na visão do futuro de Teilhard de Chardin, com a comunicação não violenta sendo, muito mais do que uma língua, Marshall Rosenberg recriou à sua maneira, o paradigma, a matriz, a cosmovisão do Reino de Deus, tal como Jesus de Nazaré a tinha idealizado há dois mil anos.

10 etapas para a paz
  1. Observa objetivamente o que os outros dizem ou fazem. Sempre que necessário, repete essa observação para os outros, sem incluir análises, interpretações, julgamentos ou avaliações de qualquer espécie. No caso de teres de incluir algum destes elementos, assume essa responsabilidade.
  2. Os sentimentos e as necessidades constituem a essência de uma pessoa; são a manifestação mais real da nossa vida no momento presente. Como tal, os sentimentos e as necessidades são universais, ou seja, todos os seres humanos de todos os tempos e lugares têm os mesmos sentimentos e necessidades.
  3. Conhece-te a ti mesmo, aumentando o teu vocabulário de sentimentos e necessidades para estares mais consciente do que se passa contigo e assim poderes ajudar os outros no mesmo processo. Certifica-te de que estás tão interessado em conhecer e satisfazer as necessidades dos outros como estás em satisfazer as tuas.
  4. Como alternativa ao tomar a peito o que te dizem, reagir, concordar ou discordar, tenta sintonizar-te com os sentimentos e necessidades implícitos no que a pessoa disse, pois, todas as críticas, insultos, explosões de ira e todo tipo de mensagens negativas são trágicas expressões de sentimentos e necessidades.
  5. Se te sentires, irritado, triste, deprimido, tenta descobrir que necessidade tua não está a ser satisfeita e que estratégia usar para a satisfazer, em vez de atribuíres um veredito e concluir que algo de mal se passa contigo ou com os outros. Usa o mesmo processo com os teus erros e faltas; faz o luto, em vez de te culpares e humilhares.
  6. Certifica-te de que estás ligado empaticamente a alguém antes de lhe pedires alguma coisa; e, quando eventualmente pedires, certifica-te de que é um pedido e não uma exigência.
  7. Em vez de afirmares o que não queres que os outros façam, na esperança que o outro adivinhe o que tu verdadeiramente queres, diz concretamente o que desejas que o outro faça.
  8. Em vez de declarar o que queres que alguém seja, afirma que ação em concreto gostarias que a pessoa realizasse de modo a orientá-la na direção do que queres que ela seja.
  9. Quando alguém te solicita algo, em vez de dizeres “não”, refere a necessidade que te impede de dizer “sim”. Quando alguém responder “não” a um pedido teu, ouve a necessidade que o impediu de dizer “sim”.
  10. Em vez de elogiar alguém por ter feito algo do teu agrado, expressa a tua gratidão referindo que necessidade tua a sua ação satisfez.

Termino com um pequeno conselho, do criador e fundador da linguagem da não-violência, (Marshall Rosenberg 1934-2015): por muito impressionados que estejamos com os conceitos da CNV, é somente através da sua prática e uso que as nossas vidas serão transformadas... e, acrescento eu, o Reino de Deus se tornará numa realidade.
Pe. Jorge Amaro, IMC

2 comentários:

  1. Obrigada Padre Jorge...
    Obrigada pelas excelentes reflexões
    com que , nos presenteou ao longo do
    do ano.Difícil, mas não impossível
    de as por em prática.Para ler e reler...e, guardar na memória e no coração.Continuação dum Santo Natal
    É um próspero ano Novo.
    Bem haja.

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  2. Quando em janeiro o Pe. Jorge iniciou a CNV, usou o provérbio: "Ano Novo, Vida nova"
    Realmente o convite que nos fez não foi,...não é ... e será fácil de concretizar ....mas é possível com esforço e boa vontade. ...e para que não haja muita..dificuldade o Pe. Jorge no seu último artigo deixa-nos as..."10 etapas para a paz".....

    Feliz ano de 2019

    Obrigada

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