15 de dezembro de 2022

A Cara oculta do Natal

Todas as realidades têm um reverso como as moedas. A lua apresenta-nos sempre a mesma cara, mas tem uma outra que nos é velada. Em tempos de Natal há presépios de toda a natureza: maiores, mais pequenos, mas todos têm uma parte que não se vê. Por debaixo do musgo verde está toda a estrutura, pedras, madeiras, tubos de água, fios elétricos, pequenos mecanismos, etc.

O primeiro Natal o verdadeiro Natal também teve uma cara oculta da qual pouca gente está ciente. Lemos a história de Natal à luz de muitos Natais que já vivemos, assim como do conceito que hoje a sociedade ocidental tem do Natal, e descuidamos pormenores que até sabemos que estão lá, ao menos teoricamente, mas que escondemos para não arruinar o espírito do Natal e a alegria natalícia que supostamente devemos sentir nesta época. “Tristeza bem ordenhada é nata de alegria” diz-se na serra da Estrela. Há por baixo da alegria natalícia uma tristeza bem ordenhada.

Maria apareceu grávida
Na volta da visita à sua prima Isabel que durou vários meses, Maria apareceu grávida. Que podia ela dizer? Como podia ela explicar o sucedido? Engravidar por obra e graça do Espírito Santo não tinha precedente, era um acontecimento único na história da humanidade; nunca acontecera nem nunca mais ia acontecer. Esperava-se que o Messias, que o povo de Israel aguardava e ainda aguarda, surgisse de uma forma natural na casa de David.

O Natal de Jesus foi a Páscoa ou paixão de Maria. A paixão do Senhor foi também a paixão de Maria. Ainda hoje, mesmo numa sociedade não puritana nem machista, o escândalo sexual faz as delícias da boca de muita gente. Parece que a nossa autoestima cresce, quando vemos os outros a afundarem-se. Não há nada mais degradante e estigmatizante que o escândalo sexual: todos te apontam o dedo, vives sem honra nem bom nome, é como morrer em vida.

“Calunia, que algo queda” diz um provérbio espanhol; lança a dúvida sobre alguém em áreas de comportamento sexual que a má fama dessa pessoa a acompanhará até à sepultura. Pode até vir a provar-se que era mentira, não importa, as pessoas ficarão sempre na dúvida, agarrar-se-ão à primeira notícia como sendo verdadeira e ao desmentido como sendo mentira. Estes escândalos abrem os noticiários da televisão e fazem primeira página nos jornais; os desmentidos aparecem como um quadradinho perdido dentro do jornal que ninguém lê.

A morte física por apedrejamento esteve também muito perto… Maria era considerada uma adúltera pois era prometida de José, e embora estes ainda não vivessem juntos, para os efeitos da lei ela já estava casada. Uma tal relação já não era separável, a menos que houvesse divórcio. Bem sabemos qual era o castigo que sofriam as adúlteras… (João 8, 1-11) eram apedrejadas.

Acontecia em Israel regularmente o que ainda hoje acontece nalguns países muçulmanos onde se aplica a lei da Sharia; aí estão os vídeos em certos sites da net que documentam estes tristes factos em pleno século XXI.

Já muitos, sedentos de sangue, tinham as pedras na mão preparadas esperando José, o ofendido para lançar a primeira pedra. Lançar a primeira pedra era um direito que pertencia ao ofendido. Lançar a primeira pedra era, ao mesmo tempo, a declaração do veredito pela pessoa injuriada e o primeiro ato da execução da sentença, que os hipócritas ávidos de sangue cumpriam com prazer.

Para Jesus, no episódio da mulher adúltera (João 8, 1-11) o direito a lançar a primeira pedra, ou seja, a julgar e aprovar uma sentença de morte, não é direito do injuriado nem do que tem autoridade por delegação ou eleição, mas sim do que tem autoridade moral, ou seja, do que não tem pecado.

Jesus não acredita na justiça retributiva pois é apenas uma vingança legalizada, é o antigo “olho por olho e dente por dente”, Jesus acredita na justiça reparadora, aquela que Deus pratica, pois não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva. (Ezequiel 18,23-32)

O sonho de José
José era justo não ia certamente apedrejar Maria; mas a razão pela qual não ia apedrejá-la não era tanto o ser justo e bom, mas o facto de amar Maria incondicionalmente; o amor vai mais além do que é pura e friamente legal, o amor incondicional perdoa. Não há crimes passionais no amor incondicional.

Um dia, um homem casado com 5 filhos disse-me “Se soubesse que a minha mulher me é infiel eu divorciava-me logo”. “Grande é o amor pela tua mulher”, disse eu em tom irónico e crítico, “tu não amas a tua mulher, tu amas-te a ti mesmo. A sua infidelidade nada faz a um amor incondicional, só perturba um amor-próprio”. Quem ama verdadeiramente fica triste, mas não faz mal ao que é objeto do seu amor; porque amar, como diz S. Tomás de Aquino, é querer o bem do outro.

O segundo José na Bíblia, o esposo da Virgem maria, depois de José do Egito seu antepassado, era também sonhador e guiava-se pelos seus sonhos. Os sonhos são de facto uma estrela na nossa vida; eles são uma mensagem do subconsciente ao consciente ou até do próprio Deus. São fantasmagóricos e exagerados para que haja mais possibilidade de serem recordados; se não o fossem, facilmente seriam esquecidos e, ao acordar, nada recordaríamos.

Os sonhos são sempre subjetivos; são nossos, mesmo quando sonhamos com outras pessoas ou lugares. Somos sempre o tema do nosso sonho, nunca um lugar ou pessoa; o que aparece nos nossos sonhos não são objetivamente os lugares nem as pessoas, mas aquilo que esses lugares e essas pessoas significam para nós.

Depois do sonho, José teve o mesmo conhecimento de Maria: os dois iam viver a sua paixão em silêncio pois não havia forma de explicarem a situação a quem quer que fosse… Maria seria uma qualquer e todos sabemos como José seria considerado – ainda hoje acontece o mesmo na nossa sociedade patriarcalista.

Após o seu sonho, José possuía o mesmo conhecimento que Maria; pelo que, ele ia partilhar com ela a mesma dor e sofrer a mesma paixão, sofrendo tudo isto com resiliência em silêncio como Maria foi proficiente em fazer (Lucas 2, 19) porque não havia humanamente nenhuma forma razoável, com que eles pudessem eles explicar a situação a qualquer pessoa e assim desculpar Maria... Maria estava destinada a suportar a mancha e a vergonha para o resto da sua vida.

Quanto a José, a nossa sociedade patriarcal, considera um homem que aceita tal mulher como despossuído da sua virilidade. E já que quero retratar real e graficamente a dor de Maria e José, atrevo-me a citar aqui a gíria usada para tais homens, "corno manso".

Jesus, o filho de Maria
Maria, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração (Lucas 2,19) e sofria em silêncio, não podendo defender-se das calúnias… O sofrimento durou toda a sua vida, como é natural nestes casos.

Aqui e além no evangelho, este estigma transparece, por exemplo numa das polémicas que Jesus tem com os fariseus, no evangelho de João, a um dado momento estes dizem «Nós não nascemos da prostituição” (João 8, 41) subentendendo “como tu nasceste”.

“Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?Marcos 6, 3.

Numa sociedade patriarcal, ninguém é conhecido como filho de sua mãe, ou seja, ninguém é conhecido por referência à sua mãe, mas sim por referência ao seu pai. Recordemos que Jesus, ao dirigir-se a Pedro de uma forma pessoal, para lhe perguntar se O ama, chama-o pelo seu nome de família por referência ao pai de Pedro e não à sua mãe: “Simão, filho de João… (João 21, 15-19).

O evangelista Marcos, apesar de ser hebreu de Jerusalém, escreve o seu evangelho em Roma para romanos e não está com meias medidas: relata a verdade tal como ela é. Jesus é chamado por referência à sua mãe e não por referência ao seu pai. Mesmo que o pai tivesse morrido, nunca um hebreu seria chamado por referência à sua mãe; se o fizeram, foi porque Jesus era, para os do seu tempo, filho de pai incógnito; para vexame de sua mãe e d’Ele próprio.

Mateus, o evangelho escrito para os judeus, corrige e diz: “Não é Ele o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas?” (Mateus 13, 55-56). Lucas, no seu evangelho, também menciona o episodio da visita do Senhor à sua terra natal, porém, por respeito ao Senhor não copia Marcos, mas também não diz uma mentira como Mateus, pelo que, omite o que os seus conterrâneos lhe chamaram.

Conclusão: O nascimento de Jesus foi experimentado por Maria e José como uma paixão e morte ao longo das suas vidas. Aquela que, para nós, fora concebida e concebeu sem pecado, no seu entorno social, viveu o resto da sua vida manchada com o pecado mais difamatório de todos os tempos.

Pe. Jorge Amaro, IMC





3 comentários:

  1. Obrigada padre Jorge. Um Santo e feliz Natal. Beijinho Arminda Trofa Portugal.

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  2. "O Mar de Deus
    e o Rio da Vida"....."A Cara Oculta do Natal"
    Foram 21 as partilhas de Reflexões/Catequeses, ricas em transmitir/aprofundar da Fé.
    Muito obrigada Pe. Jorge por nos ajudar a reviver o que muitas vezes cai no esquecimento/comodismo....
    As suas partilhas são meios para crescermos na Fé.
    Feliz Natal! (também para todos que seguem o seu Blog.
    Obrigada Pe. Jorge.

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  3. Quero desejar um bom e feliz Natal ao Rev.Padre jorge Amaro Diretor deradio Maria Toronto Canada a minha Gratidão pelos suas catequeses oSenhor Deus que esta para chegar o cubra coma sua Bençao bem haja F.C

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