15 de janeiro de 2017

Fátima: Revelação Privada, mas não para uso privado

Revelação pública, privada ou qué?
A Igreja chama revelação pública à vinda de Cristo, filho de Deus ao mundo desde a sua encarnação no seio da Virgem Maria, a sua Vida, Palavra e Obra no meio de nós, a sua morte ressurreição, e ascensão aos Céus, e a vinda do Espirito Santo. Contraposta a esta, estão as revelações privadas, as aparições da Nossa Senhora em Guadalupe, Lourdes, Fátima, assim como as visões místicas dos santos ao longo de 2000 anos de cristianismo.

Se nos detemos um pouco a pensar, damo-nos conta de que nem a revelação pública é verdadeiramente pública, nem a privada é privada; ambas são ao mesmo tempo públicas e privadas. Toda revelação é pública, porque o destinatário dessa revelação, nunca é só, e exclusivamente, a pessoa, ou pessoas a quem a revelação é feita. Por outro lado, toda revelação é privada, porque não é nunca feita “urbi et orbe” para o publico em geral, mas sim em privado para uma pessoa ou grupo de pessoas. O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia; e o que escutais ao ouvido, proclamai-o sobre os terraços. (Mateus 10, 27)

Perguntou-lhe Judas, não o Iscariotes: «Porque te hás-de manifestar a nós e não te manifestarás ao mundo?» Respondeu-lhe Jesus: «Se alguém me tem amor, há-de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e Nós viremos a Ele e n’Ele faremos morada. (João 14: 22-23)

Ele não foi visto por todo o povo, mas somente por nós, que somos as testemunhas que Deus já havia escolhido. Nós comemos e bebemos com ele depois que Deus o ressuscitou. (Actos 10, 41)

A revelação pública de Jesus de Nazaré, deu-se em privado ao círculo intimo dos que viviam com Ele desde a Galileia e os que O viram na sua glória depois da Ressurreição. Tal como Judas Tadeu, quando eu era pequeno achava que Jesus ressuscitado se deveria manifestar a todo o povo especialmente a Anás, Caifás, Herodes e Pilatos e a todos os que tinham gritado “crucifica-o”! Só mais tarde entendi o que Jesus responde a Judas. Só o amor e a fé podem levar ao conhecimento, à revelação de Cristo. Cristo revela-se só aos que O amam e n’Ele crêem.

Concluindo, a revelação dita pública foi privada, Jesus revelou a Sua identidade somente aos Seus discípulos. Os destinatários dessa revelação, porém, são a humanidade, os homens e mulheres de toda a língua raça, povo e lugar de todo os tempos.

A revelação privada de Fátima, da mesma forma que a de Cristo,  apesar de ter aspetos públicos desde o principio, pois as crianças depois da primeira aparição nunca mais estiveram sozinhas, era uma revelação privada pois só os três pastorinhos foram visitados pela Nossa Senhora; no entanto os destinatários da revelação era o mundo inteiro no século XX e se pensamos na devoção ao Imaculado Coração de Maria que a Lúcia ficara encarregada de propagar, era para todas as pessoas de todo tempo e lugar.

Revelações privadas como ecos do Evangelho
Se não houver profecia, o povo degenera, por isso, em todas as épocas, os homens foram instruídos por Deus sobre o que era necessário fazer de acordo com o que era oportuno para a salvação dos eleitos. – Sto. Tomás de Aquino 

«Desde o princípio do mundo, Nossa Senhora tem aparecido muitas vezes, de diversas maneiras ... E é o que vale ... Se o mundo está mau, se não se tivessem dado muitos casos assim, pior estava ... O poder de Deus é grande! Não sabemos o que é, mas alguma coisa será . . . Seja o que Deus quiser.
Ti. Marto

Desde a sua ignorância, o Sr. Marto, pai de Francisco e Jacinta e o primeiro crente nas aparições, diz praticamente o mesmo que o maior teólogo de todos os tempos, São Tomás de Aquino. O povo é esquecido, já nos tempos da Bíblia Deus suscitava profetas para corrigirem e reorientarem o povo para Deus desde uma situação histórica concreta.

Nos meus tempos de estudante de teologia dizíamos que o Céu já falou em Jesus Cristo Palavra eterna e encarnada para todos os tempos, pelo que não vai voltar a falar. Naqueles tempos entendíamos que o Céu se tinha fechado, não por três anos e meio, como nos tempos do profeta Elias, (Lucas 4,25) mas para sempre.

As aparições marianas assim como outras revelações privadas não são objeto da reflecção teológica, nem mesmo na disciplina chamada Mariologia. A Teologia olha para estas revelações com desdém e relega-as à piedade popular. Ainda bem que o Espirito nem sempre sopra por intermedio da jerarquia, porque sopra donde quer (João3, 8) e a voz do povo, que como diz o proverbio, é a voz de Deus, no caso de Fátima, esta impôs-se aos doutores da Igreja.

É certo que depois de Cristo nada de novo vai ser revelado que substitua o revelado em Cristo, mas algo necessita ser feito para que a revelação de Cristo não fique perdida no tempo. Esta é, aliás, a função do Espirito Santo, repetir ou adaptar a uma cultura ou situação específica, aplicar o Evangelho às idiossincrasias de cada tempo e lugar.

Neste sentido, as aparições e as visões são como um eco do Evangelho; surgem para relembrar algum aspeto, mais esquecido e menos vivido deste. Tal como as antenas de telemóvel que passam as nossas mensagens e a nossa voz de torre em torre até ao destinatário, ou as antenas repetidoras e aumentadoras de sinal de Televisão, as revelações privadas, aparições ou visões, prestam um serviço ao evangelho, para que este não se perca nem no tempo nem no espaço e desta maneira, um dia no futuro, possamos responder positivamente à pergunta enigmática que o Senhor nos deixou no evangelho de São Lucas: quando, porém, vier o Filho do homem, porventura achará fé na terra? (Lucas 18:8)


As aparições no contexto de uma Revelação mais abrangente
Quando muitos teólogos desconsideram as visões e aparições, chamando-as “privadas” e dando-lhes um valor secundário e opcional no sentido de que não as precisamos para a nossa salvação, Karl Rahner, sem dúvida o maior teólogo do século XX considera-as uma ampliação da Revelação no sentido de uma precisão e ou de uma clarificação do querer divino em ordem a uma ação precisa da Igreja ou a uma determinada situação histórica.

Desta forma, Rahner supera a diatribe da revelação Público/Privado e a sua mútua exclusão fundindo as duas numa única Revelação que se dá ao longo e ao largo da história da humanidade. Ao fim e ao cabo a Igreja é em si mesma Revelação ou reveladora em tanto em quanto é a atualização do Evangelho de Cristo aqui e agora.

As Palavras divinas crescem juntamente com quem as lê, dizia São Gregório Magno. A Revelação de Deus não é algo imutável, que ficou congelado no passado, é um processo contínuo e de alguma forma interativo. Esta interação não se dá só entre as Escrituras e quem as lê, mas também entre as escrituras e os processos e contextos históricos em que são lidas e encarnadas.

A função da Igreja no interior da história da humanidade, é fazer desta história uma história de salvação. Neste sentido a Igreja é fermento do Reino de Deus, um fermento vocacionado a levedar toda a massa - o mundo -  para que paulatinamente se vá transformando em Reino de Deus.

Como no mundo há evoluções e revoluções assim acontece no interior da Igreja; uma atividade ordinária e outra extraordinária; a ordinária tem que ver com a evolução gradual do mundo com vistas a tornar-se no Reino de Deus. A extraordinária ou revolucionária tem que ver com o profetismo, com a ação do Espírito Santo que sopra onde quer e quando quer.

Os profetas não são figuras só do passado velho testamento. Todo o batizado é batizado numa vocação comum de ser sacerdote, profeta e rei. Na vida real cada cristão desenvolve mais uma ou outra vocação. No Antigo Testamento os profetas eram catalisadores da vontade de Deus para uma época precisa.

Tanto naquele como neste tempo, o profeta é sempre o portador de uma mensagem concreta de Deus para um tempo concreto; o profeta não só proclama essa mensagem, mas também a encarna faz dela a sua vida. É neste sentido que devemos olhar para os videntes de Fátima Lúcia Jacinta e Francisco; os três, segundo as suas personalidades, encarnaram diferentes aspetos da mensagem de Fátima.

Revelação geral e revelação particular
Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas.
Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo. Hebreus 1, 1-2

Revelação pública, é, portanto, a Palavra de Deus proferida e encarnada pela pessoa de Jesus de Nazaré. Esta Palavra apela à natureza humana que não se muda. O que era amor há dois mil anos será amor daqui a dez mil. Os valores, como o amor, verdade e justiça, sobre o qual a vida humana está ancorada, são atemporais, não mudam com o passar do tempo.

Se a natureza humana mudasse, Cristo teria de encarnar várias vezes na história para ser caminho, verdade e vida para os seres humanos de cada geração. Como a natureza humana não muda, no momento em que Lhe pareceu mais adequado, Deus encarnou na história dos homens uma só vez, ou, como se costuma dizer, de uma vez por todas. Neste sentido, o Céu falou e não voltará a falar. Todo aquele que se queira salvar, tanto nesta vida como na que há-de vir, tem de confrontar-se ou medir-se com Cristo, como modelo único de humanidade.

Seja membro de outra religião, ateu ou agnóstico, todo aquele que busca a felicidade e a autorrealização aqui e agora nesta vida e na próxima, tem de medir-se com Jesus de Nazaré, pois ele é o único modelo, o único paradigma humano para todos os que se esforçam para ser plenamente e autenticamente humanos.

Fátima, Lourdes, Guadalupe e muitas outras são revelações privadas; como tal, não são estritamente essenciais para a salvação do género humano, mas podem ser complementares. Para que assim seja, os elementos que elas contenham não podem ser contrários aos do Evangelho. Aliás, este mesmo é o critério principal para discernir sobre a veracidade e validade destas revelações.

Talvez não haja uma palavra ou conceito, para além do público/privado que faça justiça e defina com exatidão os dois tipos de revelação:

Publica, geral ou essencial - porque é para toda a gente de todo tempo e lugar e imprescindível para a salvação.

Privada, particular não essencial-  por ser, de alguma forma, restrita a um tempo, um lugar e a determinadas pessoas, e não ser imprescindível para a salvação do género humano
Pe. Jorge Amaro, IMC


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