"Solus Christus sola fede sola scritura"
Esta é uma das frases lapidares de Lutero, cujo intuito é negar o valor da tradição, valorizando só a fé do individuo abstraído da comunidade cristã, e a Bíblia como palavra de Deus. Esta afirmação é uma falácia e é totalmente falsa: primeiro, é hipócrita, porque o mesmo Lutero, nos seus escritos, aceitou todos os dogmas que a tradição definiu, a identidade de Cristo como verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, a Trindade em que Deus é uno e Trino, assim como todos os dogmas marianos. Os dogmas ou definições de fé são o resultado de séculos de reflexão da Igreja, ou seja, têm origem na tradição.
Mas até a Bíblia é filha da tradição. Primeiro, existiu a Igreja e só depois a Bíblia, no que se refere ao Novo Testamento. Cristo não escreveu nada a não ser na areia quando lhe trouxeram a mulher apanhada em ato de adultério; sobre Ele durante a sua vida, só Pilatos escreveu a causa da sua condenação, colocada no cimo da sua cruz. Os apóstolos, os 12, nenhum deles escreveu coisa alguma, apenas se dedicaram a pregar depois da Ressurreição de Cristo. Foi a Igreja, quando já estava bem constituída, na segunda geração depois da geração apostólica, que deu à luz as escrituras.
Primeiro, surgiram as cartas de Paulo que eram mesmo cartas, pois no envelope, digamos assim, tinham a Paulo como remetente e, de facto, ele começava as mesmas apresentando-se. No lugar do endereço estava a comunidade cristã de alguma cidade, a de Roma na carta aos romanos, a de Filipo na carta aos Filipenses, a de Tessalónica na carta aos Tessalonicenses, a de Éfeso nas cartas aos Efésios, ou pessoas concretas como Tito e Timóteo; ou mesmo outras comunidades, como a carta anónima aos Hebreus, etc.
Os evangelhos surgiram mais tarde, cada um deles escrito por um autor diferente com o objetivo de apresentar os factos de Jesus de Nazaré a um povo diferente. Marcos, o primeiro, escreveu o seu evangelho em Roma para os Romanos; para o efeito, inspirou-se na pregação de Pedro. Mateus, um judeu que usou o nome do apóstolo Mateus, talvez porque se inspirou na sua pregação, escreveu para os judeus. Lucas, um grego doutor em medicina, discípulo de Paulo, inspirou-se na sua pregação para escrever para os gregos. João é mais uma reflexão histórica que um narrar dos factos, e não tem em vista nenhum povo em particular.
Até a expressão “Solus Christus” é uma falácia porque não temos um Cristo puro sem a tradição. Temos um Cristo de João, outro de Marcos, outro de Lucas e outro de Mateus. O verdadeiro Cristo é uma soma de todos eles, mas nem sobre a figura de Cristo podemos colocar de lado a tradição da Igreja. Tradição e Bíblia na Igreja católica entrecruzam-se como as duas espirais do ADN. A tradição dá à luz a Bíblia, mas esta depois inspira a tradição subsequente ao longo da História, pois a tradição é modificável, a Bíblia não.
A Bíblia, uma vez fechado o cânone, é a essência; a tradição são os acidentes. A Bíblia é fixa, a tradição mutável. A tradição é uma atualização da Bíblia ao longo dos tempos.
Semelhança com as emendas à Constituição dos Estados Unidos – Muitos países, verificando que a sua Constituição ficou desatualizada, fazem uma revisão da mesma ou escrevem uma nova. Isso não acontece nos Estados Unidos, país com uma Constituição imutável como se fosse o Evangelho e que não pode ser redigida de novo ou modificada, o que causa grave problemas, como por exemplo a autorização para o porte de armas de fogo.
Mas, como também nos Estados Unidos a realidade vai mudando, vão surgindo emendas ou “amendments” à Constituição que, para serem válidas têm de ser redigidas à luz daquela, mas são uma interpretação ou atualização da mesma ou ainda uma adaptação desta aos tempos modernos.
Semelhança com o dinossauro – Nunca ninguém viu um dinossauro ao vivo, pois enquanto eles por aqui andaram a raça humana ainda não existia. Porém, sabemos da sua existência porque aqui e ali foram encontrados ossos deste enorme réptil. Começámos a juntar estes ossos e a colocá-los hipoteticamente naquele que devia ser o seu lugar no corpo deste animal e, tal como num puzzle, chegámos ao resultado final; depois, foi uma questão de revestir os ossos com carne e pele, para obter uma reconstrução exacta de como eles eram.
Nunca foram encontrados num só local todos os ossos que constituem o corpo deste animal. Nos espaços vazios, foram colocados ossos artificiais. É certo que os ossos adicionados não são reais, como a tradição não é a escritura; mas estão na sequência das escrituras e concordam e harmonizam-se com elas. Os dogmas da identidade de Cristo, de Maria, de Deus uno e Trino são como os ossos que faltam no corpo do dinossauro, mas que podem deduzir-se logicamente dos outros ossos presentes.
Imaculada Conceição de Maria
É uma doce e piedosa crença esta que diz que a alma de Maria não possuía pecado original; esta de que, quando ela recebeu a sua alma, ela também foi purificada do pecado original e adornada com os dons de Deus, recebendo de Deus uma alma pura. Assim, desde o primeiro momento de sua vida, ela estava livre de todo o pecado. (Martinho Lutero, Sermão sobre o Dia da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, 1527)
Os grandes reformadores protestantes, Lutero, Calvino e Zuínglio, aceitam todos os dogmas marianos. A indiferença, o desprezo e o quase ódio por Maria que certos protestantes manifestam nos dias de hoje, não provêm dos reformadores, mas de fanáticos posteriores a eles.
A Imaculada Conceição da Virgem Maria, solenidade que a Igreja celebra no dia 8 de dezembro, já perto do Natal do Senhor, é uma outra forma de começar de novo. É a substituição do dilúvio que destruía o antigo, o pecado, para começar de novo. Em Maria, Deus desistiu da destruição do mundo. Por isso, Maria é um “dilúvio não destruidor” porque, pouco a pouco, com o Reino do seu filho, vai inundar o mundo da Graça divina que mata o pecado. Maria é, portanto, a nova arca de Noé que salva a humanidade do pecado, porque contém este Salvador que é Cristo, seu filho.
Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho… Hebreus 1, 1-2
Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher… Gálatas 4,4
Maria não é o começo da história da Salvação: esta começou com Abraão e foi continuada de geração em geração por profetas, juízes, reis e outros líderes do povo escolhido. Maria é o culminar desta história, é, como refere acima o autor da carta aos Hebreus, os últimos dias ou, como diz S. Paulo, a plenitude do tempo.
A história da Salvação trata de pessoas que vão passando de geração em geração o germe do Bem, no meio de um mundo que vive a história do Mal. Porém, este germe do bem convive na mesma pessoa com o mal. Os que eram portadores do germe do Bem ou do testemunho do Bem nesta corrida de estafetas, não eram pessoas perfeitas, como sabemos pela Bíblia, onde os seus defeitos e pecados estão bem documentados, desde Abraão, Moisés, David a tantos outros que eram, como diria mais tarde Sto. Agostinho ao definir o Homem, “simul justus et peccator”, ao mesmo tempo justos e pecadores.
Maria é o último elo desta cadeia do Bem. Através de Maria, Deus fez os últimos retoques para eliminar todo o vestígio do mal na preparação da Encarnação do Seu Filho. É lógico que se Deus ia assumir a natureza humana para falar aos homens, não ia assumir a natureza humana caída em pecado, não ia assumir a natureza humana decadente de pecado dos nossos pais, mas sim a natureza humana que Ele tinha criado no princípio. Ou seja, ia assumir a natureza de Adão e Eva antes do pecado. Por isso se diz que Maria é a nova Eva e Cristo o novo Adão.
No momento em que o material genético da meia célula de Joaquim se uniu ao material genético da meia célula de Ana para formar um novo código genético, o ADN de Maria, Deus interveio na engenharia genética e substituiu os genes estragados ou corrompidos pelo pecado que vinham de geração em geração desde Adão e Eva, pelos novos genes, aqueles que o próprio Adão e Eva possuíam antes de arruinarem a natureza humana pelo pecado. Por outras palavras, substituiu as peças estragadas pelas peças originais.
Quando o Anjo Gabriel visita Maria, reconhece nela a nova Eva, ao pronunciar este mesmo nome ao contrário como saudação (Eva/Ave), Maria é obra da engenharia genética de Deus, Maria é a recriação de Deus em virtude da sua direta e intencional intervenção na História da humanidade. Porque Maria, em comunhão com o mesmo Deus, vai gerar, produzir a vacina contra o pecado que é Cristo Seu Filho. Maria não é apenas o início da Salvação para o mundo; na sua Imaculada Conceição, como preparação para a vinda de Jesus, ela é a primeira a ser salva.
Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto, a fim de que todo o que nele crê tenha a vida eterna. João 3, 14-15
O filho de Maria é o que vai substituir a serpente erguida no deserto por Moisés, o salvador do povo judeu, para curar a todos da mordida da antiga serpente que envenenou Eva, Adão e os seus descendentes de geração em geração.
Conclusão
Se Cristo é em tudo igual a nós exceto no pecado, tem de ser filho de uma mulher que foi, por especial privilégio, também ela em tudo igual a nós exceto no pecado, ou seja, foi criada à imagem e semelhança de Deus. Maria é a segunda Eva, a Eva que não pecou e que nunca perdeu a semelhança com Deus.
Pe. Jorge Amaro, IMC