15 de maio de 2020

3 Fases da Ação Social: Ver - Julgar - Atuar

Entreguei-lhes a tua palavra, e o mundo odiou-os, porque eles não são do mundo, como também eu não sou do mundo. Não te peço que os retires do mundo, mas que os livres do Maligno. De facto, eles não são do mundo, como também eu não sou do mundo. João 17, 14-16

Os cristãos estão no mundo, mas não são do mundo, não vivem como muitos, instalados na pura mundanidade, mas entendem a vida como uma peregrinação para a casa do Pai - não temos aqui morada permanente, estamos a caminho da nossa verdadeira pátria (cf. Hebreus 13,14).

Esta é a verdade revelada e, como tal, indiscutível. No entanto, uma vez que os primeiros cristãos estavam convencidos que a segunda vinda de Cristo estava para breve (cf. 1 Tessalonicenses 4:15-17) ou talvez por influência da filosofia grega, acabaram por ser acusados no seu tempo de não serem bons cidadãos e de não participarem na vida social, vivendo à parte com mentalidade de ghetto.

O projeto individual e social de Jesus de Nazaré
Esta não era certamente a filosofia de vida de Jesus de Nazaré, tal como os sinópticos a descrevem. Jesus veio ao mundo não para o condenar, mas sim para o salvar (João 3, 17). Esta salvação, que devemos entender como saúde, aparece nos evangelhos com duas vertentes: uma individual e outra social.

A nível individual, Jesus apresenta-se como caminho, verdade e vida (João 14, 6), como modelo, como referência do que é verdadeira e genuinamente humano. Jesus é de facto verdadeiro homem e verdadeiro Deus: 100% Deus e 100% homem. Por isso, neste mundo, todo aquele que quiser ser autenticamente humano tem de ter Jesus como referência, como modelo e paradigma. Jesus passou grande parte da sua vida curando, devolvendo a saúde espiritual, psicológica, moral e física a todos os que se cruzavam com Ele.

Irmão universal, filhos adotivos
Ainda a nível humano, Jesus santificou purificou a humanidade ao fazer-se homem e, na sua ressurreição, fez da morte não um destino, mas uma passagem para a vida eterna. Na sua ascensão, levou para o Céu a humanidade purificada por ele na sua encarnação. Antes de Jesus, éramos simples criaturas de Deus, pois Deus só tinha um filho gerado não criado, enquanto que nós somos criados não gerados. Jesus constituiu-se irmão universal ao dar-nos o seu Pai como nosso Pai e ao fazer com que nos dirigíssemos, na oração que nos ensinou, ao seu Pai como nosso Pai. Jesus fez de nós filhos adotivos, e, portanto, co-herdeiros da vida eterna.

Transformar o mundo no reino de Deus
Venha a nós o vosso Reino, seja feita a Vossa vontade assim na terra como no Céu. Mateus 6, 9-10

É a primeira petição da oração que o Senhor nos ensinou, até porque Ele já nos tinha instruído noutra ocasião para, na nossa atuação neste mundo, buscarmos primeiro o reino de Deus que o resto nos seria dado por acréscimo (Mateus 6, 33); ou seja, o resto não devia ocupar-nos nem preocupar-nos.

E para os que não saibam ou de momento possam ter esquecido o que é verdadeiramente o Reino de Deus ou o Reino dos Céus para Mateus, a sua definição já se encontra no mesmo Pai Nosso: é a sociedade ou o mundo no qual se faz a vontade de Deus como esta já se faz no Céu. Como muita da pregação de Jesus se fez no contexto de uma refeição, utilizando o banquete como metáfora do Reino de Deus, muitos cristãos podem ter interpretado à letra as parábolas de Jesus, chegando a pensar que o Reino de Deus era um banquete. S. Paulo veio corrigir esta ideia dizendo “o Reino de Deus não é comida, nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Romanos 14, 17).

A nível social, vemos Jesus plenamente integrado na sociedade com o projeto de transformar o mundo no Reino de Deus. Todos os sinópticos o mencionam, em especial o Evangelho de S. Mateus que contém a maior coleção de parábolas sobre o reino de Deus, a que ele prefere chamar Reino do Céu.

É certo que não somos do mundo, que não temos aqui morada permanente, mas enquanto peregrinamos por Ele podemos ser como aquele pote de barro quebrado que vai deixando um regueiro de água que depois se transforma em flores. Não devemos ser como o outro pote de barro sem nenhum furo que conserva intacta e imaculada toda a sua energia e não faz nada com ela.

“Eu estou no meio de vós como quem serve” Lucas 22,27. 
“Eu vim ao mundo para servir e não para ser servido” Mateus 20, 28.

Jesus não é alheio aos problemas do mundo e não está somente interessado em salvar o salvável, deixando que os seus discípulos e o resto do mundo se percam. Jesus vem para salvar o mundo inteiro e delineia para o efeito um projeto social que é o Reino de Deus. No Sermão da Montanha, capítulos 5 a 7 do Evangelho de S. Mateus, escreve a constituição, ou seja, a lei fundamental pela qual esse reino desse ser gerido.

Já… mas ainda não
(…) se é pelo Espírito de Deus que Eu expulso os demónios, então chegou até vós o Reino de Deus. Mateus 12,28

As atuações de Jesus, pelo seu comportamento, pela sua palavra e pela sua obra, são o começo deste Reino de Deus. É Ele que dá o pontapé de saída, embora entenda que o Reino não vai chegar à sua plenitude no seu tempo. Sabe isso desde o começo e por isso escolhe 12 entre os seus muitos discípulos para continuar a sua obra.

Estes discípulos constituem-se em Igreja que, em si mesma, deve ser o fermento que vai levedar toda a massa do mundo e transformá-la num pão para todos (cf. Mateus 13, 33). A Igreja não existe para si mesma, ela tem uma missão: a de levar a Boa Nova do Reino a toda a criatura (Marcos 16, 15).

Neste sentido, não deveria enfrentar atritos com outras religiões ou homens de boa vontade. Pelo contrário, como todas as religiões buscam humanizar o Homem e a Sociedade, a Igreja deveria unir-se a outras forças e esforços que procuram fazer deste mundo um lugar mais digno e desta sociedade um reino de justiça, paz e integridade para a criação.

A Igreja tem uma missão, a mesma que tinha o seu fundador: a de continuar a sua obra, o seu projeto de transformar este mundo no Reino de Deus. A Igreja opera isto em todo e cada cristão que vive comprometido com a luta pela justiça e pela paz, chegando alguns até a dar a vida como o Mestre. Mas tem também uma doutrina constituída por escritos, encíclicas papais, que foram sendo redigidos pelos papas ao longo dos tempos sobre temas sociais; o conjunto destes escritos chama-se doutrina social da Igreja.

Desde o Papa Leão XIII, com a encíclica chamada Rerum Novarum de 1891 (Sobre as coisas novas – sobre a condição dos trabalhadores) até à última intitulada Laudato Si de 2015 (O Senhor seja louvado – Sobre a Ecologia) do Papa Francisco, a Igreja tem vertido o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre todos os temas sociais que afligem a humanidade, procurando iluminar com esse Evangelho estes temas e procurando soluções juntamente com o resto da sociedade.

História do método
Tenho demonstrado confiança na liberdade dos jovens, de forma a melhor educar a liberdade religiosa. Ajudei-os a VER, JULGAR e AGIR por si mesmos, mediante a realização de ações sociais e culturais próprias, obedecendo livremente às autoridades, a fim de se tornarem testemunhas adultas de Cristo e do Evangelho, conscientes das suas responsabilidades pelos seus irmãos e irmãs em todo o mundo. Joseph Cardjin, 1965

Joseph Cardjin, era um sacerdote belga, guia espiritual da Juventude Operária Católica (JOC) que tinha como objetivo superar a dicotomia entre fé e vida, levar a fé para a vida e trazer a vida do dia a dia para os âmbitos da Igreja, de modo a ser analisada à luz do Evangelho. Estávamos nos anos 60 em que se dizia que devíamos ser cristãos no partido político e militantes na Igreja, que devíamos ter numa mão o jornal e na outra a Bíblia. O método, que inicialmente tinha nascido como método de revisão de vida da JOC, começou a ser também usado pela Ação Católica, organização que também procurava levar a fé à vida, com o intuito de transformar a história segundo os critérios do Evangelho.

Desde o seu aparecimento, o método Ver-Julgar-Atuar tem sido o ex libris da atuação dos cristãos na sociedade. O Papa João XXIII cita o método na sua encíclica Mater ed Magistra 1961. Os bispos latino-americanos usaram-no na Conferência de Medellin, em 1968, na de Puebla, em 1979, na de Santo Domingo, em 1992 e na de Aparecida, em 2007. De todas estas conferências, a mais importante é a primeira, tendo dado origem a duas grandes correntes na Igreja latino-americana: uma para a igreja militante ou popular (as Comunidades Eclesiais de Base), a outra para a Igreja pensante (a Teologia da Libertação).

Fundamentos bíblicos do método
O Senhor disse: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel…» Exodo 3, 7-8

Deus é omnipresente, não dorme e bem vê o que acontece ao seu povo. Conhece a situação porque a avaliou, sabe qual é a raiz do problema, sabe qual a causa remota desse sofrimento: o exílio no Egito, a escravidão a que os judeus foram submetidos. Conhece as causas recentes desse sofrimento: leis mais duras, mais produção com menos meios e os inspetores que fazem cumprir essas leis. Por fim, Deus decide libertar o seu povo da terra do Egito, uma decisão radical, pois neste caso não havia meias medidas a tomar.

(…) para que vejam e saibam, considerem e compreendam, de uma vez por todas, que é a mão do Senhor que faz estas coisas, que o Santo de Israel as realizou. Isaías 41, 20

Depois de narrar tudo o que Deus fez pelo seu povo, conclui, convidando o povo a ver tudo quanto o Senhor realizou, a compreender isso intelectualmente e, finalmente, a render-se à evidência e a aderir de coração aos seus ensinamentos, a seguir a sua vontade. O cristão o mundo e os problemas que o afligem com os olhos do PAI, julga com os critérios do FILHO e atua sob o impulso e orientação do ESPÍRITO SANTO.

Ver com os olhos do PAI
A lâmpada do corpo são os olhos; se os teus olhos estiverem sãos, todo o teu corpo andará iluminado. Se, porém, os teus olhos estiverem doentes, todo o teu corpo andará em trevas. Portanto, se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão essas trevas! Mateus 6, 22-23

Observar sem julgar
É certo que o objetivo do “Ver” nesta primeira etapa da ação social do cristão não coincide com o “observar” da comunicação não-violenta. No entanto, podemos aprender e aplicar aqui algo da filosofia desta teoria. Uma boa observação é o que objetivamente uma câmara de vídeo capta e depois reproduz, sem tirar nem pôr. Descreve o que acontece, deixando de fora interpretações, julgamentos, avaliações.

Fácil de dizer, mas muito difícil de pôr em prática: quando relatamos o que acontece, normalmente fazemo-lo com uma avaliação e, muitas vezes, até esquecemos o que aconteceu e apenas referimos a nossa avaliação. Por exemplo, dizemos que o João é um bom rapaz, quando deveríamos dizer que vimos o João a defender um colega que estava a ser vítima de bullying.

Ver com olhos de criança
A criança não tem preconceitos nem ideias pré-concebidas, olha para a realidade e relata-a com extrema precisão e sinceridade, chegando até a desconcertar-nos a nós, adultos. Do ponto de vista físico, se não sofremos de miopia, não conservamos em adultos a visão nítida que tínhamos em crianças e, tal como na visão física se vão formando cataratas, na visão interior estas correspondem aos filtros que colocamos nos olhos por forma a ver apenas o que queremos ver e a fazer vista grossa ao que não queremos ver.

Perdemos a visão periférica e ficamos com uma visão redutora ou visão de túnel, como as mulas que puxam carroças com palas colocadas para não se distraírem nem se assustarem com o trânsito.

Ou vemos ou interpretamos
Não podemos ver e interpretar conscientemente ao mesmo tempo, pois são duas funções cerebrais diferentes. Ver é recolher dados, como quem faz a colheita de um produto agrícola. Nesta primeira etapa, o importante é recolher a maior quantidade possível de dados, sem olhar ao que colhemos.

No momento em que começamos a analisar algo do que colhemos, deixamos de colher novas informações. Os nossos olhos podem até permanecer abertos, mas já não veem. Toda a nossa atenção se volta para dentro e se fixa no dado que nos impactou e nos fechou ao resto. A partir deste momento, avaliamos, interpretamos, analisamos, mas já não vemos.

Contra factos não há argumentos, diz o povo. Saibamos os factos e coloquemos de lado os argumentos, pois levam à interpretação, à ideologia e a fechar os olhos - é mais a realidade que nos escapa que a realidade que recolhemos. Segundo Aristóteles, a visão é o sentido mais perfeito porque oferece evidência; a audição tem a mediação da palavra. A interpretação também não é possível sem palavras e conceitos: o que se observou e relata é uma tradução da realidade, com palavras e conceitos alheios ao que vemos. Como diz o provérbio italiano “traduttore traditore” já não é o mesmo.

Projetar ideologia no que se vê
Há uma pequena história que prova este ponto; partimos para o campo de visão com a nossa bagagem cultural, os nossos diplomas e o que fazemos. Não se trate de ver como uma criança veria, desapaixonadamente, sem colocar na realidade nada que não esteja lá. Partimos à procura de factos que provem os nossos argumentos.

Um sacerdote espanhol, com toda a sua bagagem europeia, depois de haver contemplado por algum tempo a situação deplorável e miserável em que vivia uma comunidade de camponeses latino-americanos, perguntou-lhes, “Mas vós não tendes fome e sede de justiça?” Eles responderam “Que é isso de fome e sede de justiça? Nós, senhor Padre, só conhecemos a fome de pão e a sede de água”.

Muitas se não mesmo todas as revoluções se fizeram por aproveitamento do povo e da sua ignorância: não foram queridas pelo povo. Alguém com uma ideologia, informa de maneira simplista e unilateral o povo para levantar os seus ânimos. Assim foi a revolução bolchevique e assim atua o populismo atual.  São revoluções que não partem da base nem vão ao encontro dos problemas reais que o povo tem na sua perspetiva.

Conta-se que um macaco e um peixe eram muito amigos e brincavam no rio todo o dia até que um dia choveu muito, o rio engrossou e o peixe tentava nadar contra a corrente para não ser levado pela água; o macaco viu a situação e foi salvar o seu amigo, trazendo-o para terra. É claro que o peixe sem oxigénio debatia-se entre a vida e a morte, abanando-se; o macaco ao ver isto disse, “Acabo de te salvar a vida e ainda protestas?”

Mesmo quando o militante social está bem-intencionado, se o que faz é feito unilateralmente segundo a sua ideologia, inferindo e imaginando o que possam ser as necessidades do povo sem o consultar, será paternalismo. Nós, missionários, vimos e fizemos muito isto com os povos indígenas e, como consequência, restam os “elefantes brancos” que deixámos para trás: depois de nos retirarmos, a obra não teve continuação.

Ver e questionar: questões exploratórias
No entender do Pe. Joseph Cardjin, assim como de todos os que na Igreja fizeram uso deste método, o nosso olhar deve ser um olhar que questiona. Quanto mais questionarmos, mais realidade se vai abrindo ante os nossos olhos. Mais uma vez, devemos ser como crianças de 5 anos que tudo questionam com os seus infindáveis porquês, ávidas de saber.
  • Que está a acontecer, onde, como e quando começou?
  • Quais as causas, as consequências, quem está envolvido, quem não está envolvido? Factos isolados ou gerais.
  • Que dizem, pensam e sentem as pessoas envolvidas e afetadas, como conceptualizam a sua experiência? Que tentaram fazer como solução?
  • Descobrir atitudes, modelos, paradigmas, traições, valores que podem estar na raiz do que acontece.
Olhar empático com os olhos do Pai
O centro de atenção é a pessoa, não as ideias nem as coisas. É um olhar empático, um olhar que suscita sentimentos; neste sentido, não é indiferente nem neutro, como não era neutro o olhar de Deus sobre o sofrimento do povo hebreu na terra do Egito. Deus é um Deus que desce, que chora com quem chora, assim como Jesus chorou a morte de Lázaro e a ruína de Jerusalém.

Quando alguém não consegue fazer-nos entender a sua situação, diz “coloca-te no meu lugar”. Deus em Jesus Cristo praticou isto: mesmo ao assumir a nossa natureza humana, foi empático connosco, olhou a realidade pelos nossos olhos, calçou os nossos sapatos, vestiu as nossas roupas, provou o mesmo sofrimento que nós e, por isso, conseguiu ajudar-nos.

Apesar de não ser neutro, Deus não toma o partido de uns contra os outros. Toma o partido da verdade e da justiça, mas não o partido de uns contra os outros. Deus quer a salvação do que sofreu o pecado e a salvação do que o provocou; do filho pródigo e do irmão mais velho. Deus não deita o menino fora com a água do banho Ele que faz chover sobre justos e injustos, diferencia entre pecado e pecador.

Julgar com os critérios do FILHO
Julgar é o ato mental pelo qual formamos uma opinião sobre algo; também é o ato mental pelo qual decidimos conscientemente que algo é de um modo e não de outro e o que fazer. Mas antes de chegar à decisão há muito trabalho prévio a cumprir.
É frequente alguém que está ao nosso lado a observar o mesmo que nós, perguntar-nos o que é que se passa, o que é que está a acontecer. Uma coisa é ver, outra é entender o que vemos, interpretar o que vemos, encontrar o sentido do que vemos, o que significa subjetivamente para cada um de nós e objetivamente para todos.

Os Evangelhos estão escritos desde o século I e, no entanto, a Igreja debateu a entidade e a missão de Jesus de Nazaré durante cinco séculos. Finalmente, conseguiu conceptualizar a identidade de Jesus ao defini-lo verdadeiro Homem e verdadeiro Deus, no concílio de Calcedónia, no ano 451. Tal como para ver uma floresta temos de sair dela, pois dentro dela só vemos árvores, também para interpretar verdadeiramente um facto - neste caso, Jesus de Nazaré - foi preciso distância e tempo para poder julgar melhor. Os homens e mulheres do seu tempo não chegaram a esta definição da identidade de Jesus, apesar de terem sido testemunhas oculares dos factos.

As aparências iludem
É um provérbio muito conhecido, mesmo no âmbito da ciência. Apesar de a ciência precisar dos cinco sentidos para analisar e conhecer o real, até a ciência sabe que há mais realidade que aquela que os cinco sentidos conseguem captar.

Por exemplo, usamos microscópios para chegar ao mundo do minúsculo e usamos telescópios para chegar ao mundo do maiúsculo. E, mesmo assim, há mais realidade que aquela que o microscópio ou o telescópio consegue captar. O mesmo acontece com o som e com os objetos dos demais sentidos.

Um outro problema é que os próprios cinco sentidos que nos ajudam a conhecer a realidade também nos enganam sobre a verdade dessa mesma realidade. Hoje sabemos que a Terra gira à volta do Sol, mas o que vemos é o Sol girando à volta da Terra.

É preciso ver para além das aparências, ter visão de raio X para ver o que está por detrás das coisas, para saber interpretar o que acontece e ver no que acontece os “sinais dos tempos”. Os animais estão mais atentos a estes fenómenos, e detetam tormentas, furacões, trovoadas, terramotos muito antes destes acontecerem e tomam precauções.

Foi neste sentido que o Papa João XXIII olhou para o mundo moderno e para a Igreja e se deu conta de que esta estava desfasada do mundo moderno. Por isso, convocou o Concílio Vaticano II para adaptar a Igreja aos tempos modernos. Na tradição de Israel, tal como a descreve o Antigo Testamento, esta era a função dos profetas: a de anunciar a vontade de Deus, denunciar os comportamentos contrários a ela e guiar o povo para Deus pelos caminhos tortuosos da História.

Julgar, questionando-se: questões de compreensão
Depois das perguntas exploratórias para recolher o máximo possível de dados sobre determinado problema, é tempo de colocar os dados, os acontecimentos, os factos, as realidades sobre a mesa, para serem analisados, interpretados, julgados. Para além de analisar, julgar também significa discernir o que está certo e o que está errado e depois partir para uma ação transformadora.

As questões de compreensão são parecidas com as questões exploratórias, com a diferença de que as primeiras eram colocadas para saber mais, para recolher mais dados relevantes, enquanto que estas últimas são questões que o investigador coloca a si mesmo e às quais precisa de responder para encontrar uma solução satisfatória para o problema ou situação em questão:
  • Quais são as causas do que acontece a curto e longo prazo, quais os agentes envolvidos?
  • Quais as repercussões do que acontece, quais são as possíveis consequências a curto e longo prazo e quem vai sofrê-las?
  • Quem beneficia, quais os benefícios, quem tem poder, quem abusa do poder, quem não o tem?
  • Quais as soluções para que todos ganhem, para que haja justiça, paz e harmonia?
Como usamos tubos de ensaio para analisar certas substâncias e colocamos reagentes para ver como se comportam, assim fazemos com as realidades sociais. Estas devem ser iluminadas, confrontadas, sobretudo com o Evangelho, a doutrina da Igreja, a tradição, o magistério, assim como com a História e outras ciências sociais relevantes para o tema em questão.

Julgar com o critério do Evangelho
Somos cristãos e como tal medimo-nos por referência a Cristo, tanto no nosso pensar como no nosso atuar. Procuramos chegar ao ponto a que S. Paulo chegou ao dizer “Já não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2, 20). Cristo é o nosso critério pessoal, mas, quando se trata de analisar problemas ou situações sociais, o Reino de Deus é o nosso paradigma ou modelo de sociedade de convivência fraterna entre irmãos, filhos do mesmo Pai.

Há critérios que servem de meio para avaliar a realidade, lei, constituição, etc. - neste caso, o Evangelho. Um tribunal também julga, vê e atua. Quando julga um ato, contrapõe-no à lei vigente e determina se infringiu ou não a lei. O ato é o que é, o Evangelho é o dever ser; o ato é a realidade, a lei e o evangelho são o ideal.

Jesus fez isto mesmo ao julgar, perante os fariseus acusadores, se os Apóstolos tinham ou não infringido a lei do sábado por terem nesse mesmo dia comido espigas que arrancaram das searas por onde passaram (Cf. Marcos, 2,23ss). Abriu mentalmente a sua Bíblia e procurou um episódio em que o rei David tinha feito algo que também não lhe era permitido fazer (Cf. 1 Samuel 21,6ss) mas que fez guiado pela sua consciência, que deve discernir em cada momento o que fazer e não apenas obedecer cegamente à lei.

Tudo o que o Evangelho refere, sobretudo o de S. Mateus, acerca do Reino de Deus é normativo para nós, é a referência nas relações sociais e representa o caminho para uma sociedade mais justa, mais fraterna e pacífica. A situação que temos diante de nós tem certamente respostas na Bíblia, sobretudo no Evangelho, e nele podemos encontrar situações semelhantes e respostas sobre o que fazer.

Julgar com o critério das ciências humanas
O cristão, ao contrário de outros na sociedade civil, não tem medo da ciência em geral, muito pelo contrário. As últimas descobertas, como a teoria da relatividade, o Big Bang, etc. parecem confirmar a fé, mais que negá-la.

Na encíclica Humane Generis de Pio XII, a Igreja aceita as descobertas de Darwin, o que veio ajudar a que muitos cristãos não lessem o livro do Génesis à letra no que respeita à criação do ser humano, pois não se pretende que este seja um livro de ciência.

No caso do aborto, a Igreja aceita a ciência que determina que a vida humana começa quando uma célula de um varão se junta a uma célula de uma mulher. A Igreja, baseada na ciência, defende a existência de vida humana desde este ponto. É a sociedade civil que nega esta evidência científica e legisla com base na mentira e na pseudo-conveniência de alguns contra os seres humanos desprotegidos que são os bebés abortados.

A Igreja até inspira ação social e legislativa por intermédio das suas encíclicas. Exemplo disto é o princípio de subsidiariedade que hoje faz parte da Constituição da Comunidade Europeia, assim como da Constituição dos Estados Unidos e que apareceu pela primeira vez em 1891, na encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII que acima citamos.

Dentro das ciências humanas – Sociologia, Psicologia, Filosofia - devemos dar crédito à História. Não sei até que ponto é verdade ou mito que a História se repete. Provavelmente é verdade, quando as mesmas circunstâncias se sucedem, combinadas com a natureza humana que não muda. Nem sempre aprendemos com os erros passados, achando que esta situação é nova. Mas numa observação mais atenta dos mesmos factos a partir de uma perspetiva histórica, parece efetivamente que os mesmos erros se vão cometendo uma e outra vez…

Atuar por impulso e a orientação do ESPÍRITO SANTO
Os filósofos não têm feito, até agora, mais que interpretar o mundo de diferentes maneiras, trata-se agora de transformá-lo. Karl Marx

Karl Marx, consciente ou inconscientemente, usou o método de ver, julgar e atuar na sua filosofia. Teve o mérito de integrar a praxis na filosofia, que até então era um discorrer de verdades sem nenhuma aplicação prática. Com o seu materialismo histórico e dialético, Marx ofereceu uma filosofia que não se ficava só pelas opiniões, mas que via e analisava a sociedade do seu tempo, mais concretamente o capitalismo da era industrial, e partia para a ação.

É certo que Marx partiu para este método com uma carta na manga: a ideologia ateísta e materialista que lhe tinha proporcionado seu antecessor Feuerbach, ou seja, tentar interpretar a História e a realidade atual a partir de uma ótica materialista. Esse foi o seu erro. Como dissemos anteriormente, devemos observar sem teorias em mente; se o fizermos, veremos apenas o que confirma a teoria que à priori orienta o nosso olhar.

A praxis marxista, tanto de Lenine na revolução bolchevique na Rússia, como a de Mao Tsé-Tung na revolução cultural da China, é da responsabilidade destes senhores e não de Marx. Aliás, já no seu tempo havia tantas ideias acerca do que era e não era marxismo que o próprio Marx chegou ironicamente a afirmar que não era marxista.

De Marx recolhemos a sua boa observação, o seu olhar, portanto, e o seu julgamento baseado na análise geralmente acertada do problema do capitalismo. Esta análise foi legitimamente utilizada de alguma forma pela Teologia da Libertação na América Latina pois, como vimos atrás, a Igreja deve utilizar as ciências humanas nas áreas em que estas são especialistas.

Porém, o magistério do papa João Paulo II não entendeu isto, suponho que por causa do trauma pessoal vivido num dos países onde a prática comunista falhou, a Polónia. A Teologia da Libertação foi condenada em bloco e os seus teólogos vilmente expulsos das suas cátedras.

“De cada qual, segundo a sua capacidade; a cada qual, segundo as suas necessidades” - é uma das ideias que a sociedade europeia aproveitou de Marx e na qual se baseia a segurança social e o serviço nacional de saúde.

A ação é o projeto de transformação da realidade e equivale a traçar tarefas, planos, projetos, de acordo com as decisões tomadas na etapa anterior.

O método está orientado para a transformação da realidade de acordo com os critérios do Evangelho: em transformar o mundo no Reino de Deus. O Espírito Santo conduz este trabalho, como conduziu o ministério de Jesus.

“WWJD – What would Jesus do” - há uns tempos foram populares entre os cristãos do Canadá e da América do Norte Tshirts com esta expressão. A praxis cristã é precisamente isto: fazer em casa, numa situação da nossa vida, o que Ele faria. Pois Ele é a verdade do nosso olhar, o caminho do nosso julgar e a vida do nosso atuar.

Atuamos como Igreja
Jesus enviou os seus discípulos não como franco-atiradores, mas dois a dois: a praxis cristã é sempre uma praxis comunitária. Duas cabeças pensam mais e melhor que uma e a ação comunitária é sempre mais profunda, refletida, duradoura e transformadora que a ação individual, assente apenas no ímpeto de alguém.

Devemos fugir à tentação do imediatismo, de querer ter resultados imediatos. “Eu plantei, Apolo regou e é Deus quem faz crescer, recordemos” (1 Coríntios, 3, 6). Ser agente de libertação é ser fermento na massa (Mateus 13, 33). Para que o grupo faça uma ação concreta, é preciso um projeto com todos os seus detalhes.

A comunicação e a organização são elementos cruciais. É importante começar com objetivos razoáveis. As pessoas aprendem através do processo, tornam-se mais capacitadas. A ação libertadora parte das necessidades das pessoas, descobre a raiz do problema e parte para a ação com a participação de todos na construção da civilização do amor

Atuamos pelo impulso e orientação do Espírito Santo
O Espírito Santo e nós próprios resolvemos não vos impor outras obrigações além destas, que são indispensáveisAtos dos Apóstolos 15, 28

Já o próprio Jesus atuou sob o impulso do Espírito Santo, cheio do Espírito Santo fez e disse muitas coisas. Assim também nós devemos atuar como os apóstolos, num clima de oração, procurando a inspiração, a orientação e o impulso do Espírito Santo. Ele é a alma da Igreja que é o corpo místico de Cristo, Ele é Deus interior íntimo meu, como dizia Sto. Agostinho, é mais íntimo que o meu íntimo; Jesus veio e regressou à casa do Pai, o Espírito Santo veio para ficar connosco e para, atuando dentro de nós, ser a inspiração, a motivação, o motor e a orientação da nossa atuação no mundo.

Ver – Julgar – Atuar - Rever - Celebrar
Posteriormente, alguns alargaram estendem este método com outras duas realidades: Ver – Julgar – Atuar – Celebrar – Rever. Entendemos que as duas últimas realidades estão a mais, o celebrar pode ser feito em cada uma das etapas, sobretudo quando descobrimos a verdade das coisas ao julgar ou analisar o problema; quando dizemos “Eureka, descobri”, aí mesmo já pode existir uma celebração e não necessariamente apenas no fim do processo ou da ação.

Por outro lado, o rever também pode e deve ser feito tanto no fim do triplo processo como no fim de cada uma das etapas. Quando acontece no fim do processo, serve como olhar para o início do processo outra vez, ou seja, com o símbolo de reciclagem em mente, este processo de ver, julgar e atuar recomeça quando termina.
Pe. Jorge Amaro, IMC











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