15 de novembro de 2024

Cosmovisão Materialista

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A visão materialista da realidade contrapõe-se à visão espiritualista que reinou em toda a Idade Média, parte da antiga e que ainda existe. Ambas têm raízes históricas, mas não estão ligadas a uma só época da História, como a cosmovisão medieval e renascentista, nem a uma cultura particular, ocidental ou chinesa. Tanto a cosmovisão espiritualista como a materialista são passadas e contemporâneas, transversais a muitas culturas.

São mais próprias de um tempo que de outro, assim como mais agarradas a uma cultura particular que a outra. São cosmovisões no sentido mais amplo do termo, pois são mais abrangentes tanto no tempo histórico como no espaço cultural. Historicamente, a Idade Média é toda ela espiritualista, enquanto que a partir do renascentismo, em toda a Idade Moderna e Contemporânea, é mais materialista.

Assumindo um caráter teórico, em forma de filosofia, como o ateísmo ou o agnosticismo, ou prático, como o consumismo capitalista, a auto gratificação e a ausência de valores, o materialismo é hoje a filosofia de vida ou a cosmovisão que governa a maior parte das pessoas. Governa claramente o mundo da política, da economia, porque o dinheiro sempre foi em si mesmo uma religião, além do mundo da ciência, das universidades, dos meios de comunicação e da cultura em geral.

Perguntei certa vez a alguém se era religioso; respondeu-me com um tom de voz de quem ficou ofendido, “como posso ser religioso? Eu sou cientista”. Ser materialista, agnóstico ou ateu, está na moda. Ser religioso está fora de moda e é hoje conotado com ser ignorante. Por isso, até os poucos que o são, não se manifestam como tal para não perder amigos, empregos ou posição social.

Aos materialistas, que vivem sem sentido porque a matéria não dá sentido à vida, pode aplicar-se aquela famosa frase do Dalai Lama: “Vivem como se nunca tivessem que morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”. De facto, o expoente máximo do ateísmo dialético e histórico, Karl Marx, enfrentou a questão da morte da mesma forma cínica dizendo que a morte não deve preocupar-nos, pois enquanto nós existirmos, ela não existirá; quando eventualmente se tornar realidade, não existiremos nós.

Ou seja, a morte não deve ser motivo de preocupação porque nunca coexistiremos com ela, nem nós existimos com ela nem ela existe connosco. O facto é que por muito que a escondamos na sociedade, ela vai aparecendo, quando ao nosso lado caem primeiro os nossos pais e os nossos tios, depois os nossos irmãos mais velhos.

Relativamente à sociedade medieval que vivia reconciliada com a morte, em harmonia com ela, e numa quase amizade, chegando a dar-lhe uma forma feminina, vestindo-a de branco, convidando-a para uma dança de roda e até para jogar xadrez a ver se a vencia ou enganava ou distraía, a sociedade moderna e contemporânea tem medo da morte que lhe vai roubar tudo, porque é eterna, reprimindo por isso tal pensamento, como o sexo era reprimido na sociedade puritana vitoriana.

Do animismo ao ateísmo
Do animismo ao materialismo há uma gradual materialização da matéria e simbioticamente do ser pensante que a analisa e com ela se relaciona, o Homem. Ao princípio, tudo tinha alma, até a própria matéria mais material tinha alma. Num mundo materialista como é o de hoje, custa-nos pensar que assim era no passado; porém, sem irmos mais longe, todos nós vivemos uma etapa de animismo na nossa infância quando, ao magoar-nos com qualquer coisa, batíamos e culpávamos e chamávamos má a essa mesma coisa, como se fosse uma entidade viva.

Ao nível dos adultos, a superstição é um resquício de animismo, ou seja, quando se concede valor ou poder espiritual a algo que é puramente material, como uma chave ou uma ferradura, isso é animismo, hoje chamado de superstição.

O conhecer certas realidades materiais e o saber como e para que funcionavam, roubou-lhes a alma, pelo que se desanimaram e voltaram a ser apenas matéria. Porém, não era possível conhecer cientificamente certas realidades ou estas não eram fáceis de conhecer ou não era possível conhecê-las e dominá-las totalmente. A essas realidades deu-se-lhes o nome de deuses e assim nasceu o deus da guerra, a deusa do amor, o deus do tempo o deus do vinho, o deus do mar, etc. e, consequentemente, surgiu o politeísmo.

Por uma questão de simplificação ou com o fim de unir vários povos e evitar as desavenças de “o meu deus é maior que o teu”, o que podia causar guerras santas ou outras desavenças, o Homem descobriu que Deus seria um só Senhor e criador de tudo e de todos. Nasceu assim o monoteísmo na sua versão absoluta, com o judaísmo e o islamismo e na sua versão trinitária, com o cristianismo.

Por fim, quando o progresso científico permitiu ao homem dominar grande parte da realidade, este decidiu matar a Deus (conceito psicanalítico) para se colocar no seu lugar como super-homem (Nietzsche). Nesta dialética de ir roubando a alma ao conhecido, o ser humano acabou por roubar a alma ao próprio Deus, afirmando, como o fez Feuerbach, que não foi Deus que criou o Homem à sua imagem e semelhança, mas sim, ao contrário, foi o Homem que criou Deus à sua imagem e semelhança.

Nasceu assim o materialismo dialético ou filosófico, depois o materialismo histórico e a revolução comunista com Karl Marx, a psicanálise ateia de Sigmund Freud. Nietzsche declarou “Deus está morto, viva o super-homem” e, depois do enterro de Deus, surgiu o niilismo do próprio Nietzsche, seguido pela náusea ou vómito de Sartre.

Ideologia materialista
Esta visão de mundo tornou-se proeminente no Iluminismo, mas é tão antiga como Demócrito (370 a.C.). A visão materialista do mundo afirma que não há espírito, nem deus, nem alma. Nada que não possa ser conhecido através dos cinco sentidos e da razão.

Nada existe além da Natureza que tenha influência causal ou aja sobre a mesma Natureza. Não existe, portanto, nenhum ser superior que tenha criado a Natureza e que exerça algum poder sobre ela. Só existe a natureza material e nada para além dela. A vida na Terra surgiu por si mesma, quando se reuniram as condições para que surgisse, a partir de substâncias naturais, por seleção natural para fins naturais.

O sobrenatural ou espiritual é uma quimera, não existe, não é observável. Se algo não tem explicação não é por ser sobrenatural, mas simplesmente porque o ser humano ainda não sabe tudo; no futuro, a ciência poderá explicar. Assim foi e assim tem sido: realidades que antes eram vistas como deuses, hoje são completamente explicáveis.

O mundo espiritual é, portanto, uma ilusão, (um consolo infantil, como diz Freud). Não há ser superior, somos meros complexos da matéria e, quando morremos, deixamos de existir e os elementos simples que compõem o nosso corpo voltam à sua simplicidade à medida que o nosso corpo se desintegra.

Como não há nenhum significado intrínseco para o universo, as pessoas têm de criar valores para si mesmas. Não há certo e errado, exceto o que a sociedade estabelece, com propósitos de sobrevivência e tranquilidade.

Muitos não chegam a criar valores pelos quais pautar a sua vida, pois é difícil fundamentar uma ética sem religião. Os materialistas têm a sorte de mais de 90% da humanidade acreditar na existência de um ser superior, fundamento e garante da estrutura social que temos; se assim não fosse, 1% da humanidade não poderia ter mais riqueza do que 99% da mesma humanidade, como hoje acontece. 

Se os seres humanos não acreditassem na vida para além da morte, fundamento último da ética, não haveria exército nem polícia para conter a raiva humana contra a injustiça.  Razão tinha Napoleão Bonaparte quando disse que a religião é o que faz os pobres não matarem os ricos.

Se o fim dos justos e dos injustos é o mesmo, é difícil distinguir a justiça da injustiça, se ambas têm o mesmo fim: o nada. Por isso, a maior parte dos materialistas afogam as suas mágoas no consumismo. A vida é pão e circo, como diziam os romanos, Fugit Tempus, Carpe diem, o tempo escapa-se-nos, aproveitemos o dia que temos pela frente, ou seja, “Morra Marta, morra farta”.

Os processos de evolução ou mudança são essencialmente aleatórios, não têm um objetivo predefinido, pois não existe nenhum desígnio inteligente, como creem os crentes religiosos. Reina o aleatório: os dinossauros não estavam predestinados a desaparecer, se aquele meteorito que destruiu o seu habitat não tivesse caído, poderiam ainda estar vivos e o ser humano nunca ter surgido. Para além do aleatório, o que existe é uma seleção natural governada pela lei do mais forte ou do que melhor se adapta às circunstâncias de um meio ambiente em constante mudança.

É isto e só isto que determina que alguns seres vivos sobrevivam e outros pereçam. Os materialistas creem que este processo de “seleção” inconsciente, não dirigida, juntamente com as flutuações genéticas aleatórias (ou seja, mutações), sejam as chaves que explicam a origem do mundo e dos seres vivos como os conhecemos hoje, nós próprios incluídos.

Ao não haver nenhum desígnio inteligente nem nenhum objetivo que a natureza tenha que cumprir, a própria inteligência e o que nós chamamos espiritual são o resultado de complexos processos naturais e materiais que é possível conhecer e explicar. Não precisamos de Deus para explicar nada na Natureza físico-química. Não existe nada no Universo que seja pessoal, tudo é impessoal. A pessoa humana é uma outra quimera criada pelos espiritualistas, não há nada na pessoa humana para além de complicados processos físico-químicos.

Análise "científica" do materialismo, ateísmo ou agnosticismo
É certo que não podemos provar a existência de Deus nem a sua não existência, pelo que tanto teísmo como ateísmo ou agnosticismo são crenças. Ou seja, uma é fé a outra é anti fé, mas ambas envolvem fé.

Os ateus ou agnósticos gostam de se fazer passar por cientistas, amigos da ciência, racionais e iluminados. A ciência é logico-dedutiva, como a matemática, ou intuitiva, como a teoria da relatividade de Einstein.

O ateísmo ou o agnosticismo não é lógico - O ateísmo ou agnosticismo não é lógico. Não faz sentido que o ser humano seja, como diz Karl Marx, o momento em que a Natureza ganhou pensamento ou autoconsciência, só para nos darmos conta da nossa miséria, ou seja, de que vimos do nada como tudo e ao nada regressaremos com a pulga, o piolho e o percevejo.

Se para isso somos os únicos seres vivos conscientes da nossa miséria, era preferível não sermos conscientes como o resto dos seres vivos. É como saber o dia e as circunstâncias da nossa morte: não creio que haja uma única pessoa que esteja interessada nessa informação.

Ao contrário do resto dos seres vivos, a consciência de que existimos por um tempo e depois deixamos de existir, em vez de ser uma grandeza da evolução é antes ir de cavalo para burro. Que grandeza é essa de termos consciência da própria miséria, sem solução para a remediar?

Ao contrário do resto dos seres vivos que, vivendo em simbiose com a natureza não têm liberdade nem autonomia nem independência em relação a ela, o ser humano tem a vida nas suas mãos, tem uma certa liberdade para fazer com a sua vida o que quiser. Para quê essa liberdade, se independentemente do que fizermos, o fim será o mesmo? Por outro lado, o ter liberdade é também um risco, no sentido em que posso fazer más escolhas e transformar a minha vida num inferno, coisa que os outros seres vivos não podem.

Na vida, os seres vivos são felizes, não precisam de trabalhar, nem de estudar, nem de sofrer. Nós, seres vivos humanos, podemos ser felizes ou infelizes em vida, mas, mesmo os que são felizes, possuem sempre uma felicidade relativa, pois o pensamento de que um dia deixarão de existir, envenena qualquer alegria ou prazer, transformando-a em tristeza e depressão.

O ateísmo ou agnosticismo não é dedutivo – Se o universo não estivesse em expansão, se fosse estático e não dinâmico e em constante devir, como as águas do rio de Heráclito, se sempre tivesse sido o mesmo, se não houvesse nenhuma mudança, nem evolução, nem revolução, poderíamos deduzir que sempre existira, que o universo era deus de si mesmo.

Isto é o que pensava a ciência antes de o telescópio Hubble que se encontra bem longe no espaço, mostrar que as galáxias estão a afastar-se umas das outras, o que nos levou a deduzir que o Universo está em expansão. A teoria dedutiva do Big Bang que afirma que as galáxias estão a afastar-se umas das outras foi criada pelo padre católico belga Georges Lemaître. Segundo ele, o universo começou com uma grande explosão; nessa grande explosão foram criados o tempo/espaço e a matéria/energia.

Na Natureza, as ignições ou explosões não acontecem espontaneamente. Tudo se passa num regime de causa/efeito: não há causa sem efeito, nem efeito sem causa, não há água sem sede, nem sede sem água. Ou, como diz o povo, “quando nasce a panela, nasce o testo para ela”. Por outro lado, não observamos na Natureza nada que se crie a si mesmo; é, portanto, mais lógico deduzir um criador que não o deduzir.

Se o universo nem sempre existiu e depois começou a existir, houve um “tempo” em que não existia. E haverá um tempo em que deixará de existir. Apenas a Bíblia falava do fim do mundo e os tais cientistas riam-se dela e dos cristãos. Como quem ri por último, ri melhor, agora somos nós que nos rimos. A ciência teve de dar o braço a torcer e afirmar que o mundo deixará de existir um dia.

Os ateus reagiram à teoria do Big Bang deduzindo o Big Crunch, ou seja, que o universo estaria em expansão, como se fosse um elástico, até não poder expandir-se mais, iniciando em seguida o processo inverso de contração até colapsar sobre si mesmo, chegando a matéria a concentrar-se toda outra vez e a causar um novo Big Bang. Assim sendo, o universo seria uma sucessão de Big Bangs e Big Crunches.

Porém, a segunda lei da termodinâmica veio desmentir esta teoria, pois a matéria não se transforma em energia sem se desgastar. Se assim fosse, seria possível ter uma máquina que fabricasse a energia de que precisa para se manter em andamento. O sol vai gastar todo o seu hidrogénio e hélio, assim como o universo vai gastar toda a sua energia até desparecer e a pouca matéria existente nesse universo futuro não terá a força da gravidade suficiente para se aglutinar. O universo transformar-se-á num buraco negro.

O ateísmo ou agnosticismo não é intuitivo – A intuição é o contrário da lógica e da dedução, pela intuição e dedução nunca Einstein chegaria à teoria da relatividade, pois não é lógica nem se deduz de nenhuma observação. A intuição é, ao mesmo tempo, um salto qualitativo e quantitativo. Se eu partir da observação da realidade, sou catapultado pela intuição para uma realidade não observável nem experimentável, mas que tem relação com o que observo e dá sentido a tudo o que observo.

Neste sentido, a fé é uma intuição; a Deus chega-se pela intuição, mas não só a Deus: muita da física quântica dos nossos dias, herdeira da teoria da relatividade, é intuitiva. Muita da astronomia de hoje é intuitiva, pois não temos forma de observar certas realidades.

O ateísmo ou agnosticismo é indutivo – O ateísmo ou agnosticismo é instigado, é forçado e supõe a repressão do sentimento religioso que é conatural ao ser humano e que podemos observar em todos os tempos e em todas as épocas e na maior parte dos seres humanos que habitam hoje o nosso planeta.

Os teístas sempre foram mais de 80% dos habitantes deste planeta em todas as épocas e em todas as culturas. Até hoje já houve muitas culturas e civilizações sem ciência e tecnologia, mas nuca houve nenhuma sem religião.

Por isso, o ateísmo ou agnosticismo é induzido pela moda, pela sociedade de consumo, pelo comunismo, ou por qualquer ideologia que pretenda retirar ao ser humano toda a orientação; assim desorientado e desnorteado, é mais fácil de manipular e transformar em consumidor obsessivo e neurótico, muito bom para a economia faz crescer o PIB, mas reduz a saúde dos indivíduos. Quanto mais saudável é a economia, mais doentes são os indivíduos que a alimentam.

E, para tal, o sentimento religioso natural ao ser humano e presente em todas as culturas de todos os tempos tem de ser ignorado num primeiro momento, mas, como sempre ressurge, deve ser reprimido, escondido.

Defendo que não há verdadeiros ateus ou agnósticos, mas sim politeístas, ou seja, negam a existência do Deus verdadeiro para prestarem homenagem, veneração e adoração a muitos e pequenos deuses. O dinheiro seria o Pai desse panteão, tal como Zeus e Júpiter foram os pais dos panteões grego e romano, respetivamente. Depois há deuses que são os patronos de certas realidades com quem o ateu ou materialista se relaciona: o poder, a beleza, o prazer, a fama, a diversão como o futebol etc.

Como seria um mundo governado pela cosmovisão materialista? Seria um mundo sem música, sem arte, sem poesia, sem literatura, sem direitos humanos, sem ética, uma autêntica barbárie, uma autêntica anarquia. Que deixa para a posteridade a sociedade materialista consumista? A quase totalidade dos monumentos e obras mais belas da humanidade, as pirâmides do Egito, as catedrais góticas, as mesquitas, os templos hindus são o reflexo do sentimento religioso. Que nos deixa ou deixou o materialismo para além da náusea de Sarte, dos gulags soviéticos e dos atuais campos de concentração chineses para lavar o cérebro ao povo uigur?

Conclusão: os materialistas sustentam que, na evolução das espécies, o ser humano não é mais que o momento em que a matéria ganha consciência de si mesma. Não faz sentido que a matéria desperte com o único objetivo de se dar conta de que é matéria. A autoconsciência é uma atividade espiritual, por isso a matéria está orientada para o espírito e não vice-versa. Os materialistas, ateus ou agnósticos reprimem o natural sentimento religioso, comum ao ser humano de todos os tempos e culturas, como os puritanos reprimiam o sexo.

Pe. Jorge Amaro,IMC


1 de novembro de 2024

Cosmovisão Renascentista

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O mundo europeu entende que não há uma continuidade cultural, científica e filosófica entre o mundo antigo e a Idade Média. A Idade Média foi como um trauma que paralisou o mundo, que o colocou a dormir por muito tempo. A cidade é o lugar da cultura, pois é na cidade que se concentra o maior número de pessoas, onde acontece um sem-número de transações, comunicações e onde se pratica um sem-número de profissões.

No bucólico campo só se pratica a agricultura, as pessoas vivem isoladas umas das outras. O mundo medieval era um mundo rural. É certo que é do campo que se vive e se come, mas uma vida que se dedica só à autossubsistência dificilmente se pode chamar humana, os animais são os que se dedicam exclusivamente à autossubsistência.

A agricultura é, portanto, a base da cultura. No entanto, o objetivo da agricultura não deve ser a autossubsistência, mas sim criar excedentes que depois serão a base do comércio, que permitirão adquirir outros bens e promoverão o relacionamento entre pessoas, fazendo surgir outras atividades. Em suma, fomentarão a cultura e o desenvolvimento.

No Renascentismo começaram a surgir outra vez as cidades. A Europa, ao dar-se conta da descontinuidade cultural entre a Idade Antiga e os 10 séculos de Idade Média, tentou fazer um bypass, passando por cima da Idade Média e indo ao passado do mundo greco-latino para ressuscitar esta cultura sem a mediação ou as lentes da Igreja.

Inspirado nos valores da antiguidade clássica, o homem renascentista tem a ideia de que tudo o que é medieval é mau e tudo o que pertence ao mundo antigo é bom. Esta perspetiva está equivocada em muitos pontos. A filosofia, por exemplo, embora seja de inspiração cristã, avançou na Idade Média; a arquitetura, sobretudo a gótica, representou um enorme avanço. A arquitetura algo tosca da época grega e romana, foi recriada no renascimento com um estilo monumental que perdeu em beleza para o gótico; não é nada bela, é somente monumental, ou seja, grande, enorme. Por exemplo, a basílica de S. Pedro é monumental, é renascentista; mas não é certamente mais bela que a mais singela catedral gótica.

Com o aparecimento do burgo, termo que significa cidade, no fim da Idade Média, nasceu uma outra classe social no seio do povo, o burguês, ou seja, literalmente o habitante da cidade, que não se dedica, é claro, à agricultura, mas sim ao comércio, artes e ofícios que vão surgindo à medida que a vida se vai diversificando e deixa de girar à volta da subsistência. Esta vertente física é confiada ao povo e ao seu trabalho na agricultura, a vertente espiritual e moral é confiada ao clero e a segurança é confiada aos nobres.

Origem do Renascimento
Na península itálica, as cidades nunca desapareceram totalmente e os povos não deixaram de praticar o comércio, nem de usar moeda. Houve, sim, uma diminuição dessas atividades durante a Idade Média. Em virtude da situação geográfica da península itálica no meio do Mar Mediterrâneo, várias cidades ribeirinhas como Veneza, Génova, Florença, Roma, entre outras, beneficiaram do comércio com o Oriente. Marco Polo terá aberto o caminho.

Estas regiões enriqueceram com o desenvolvimento do comércio no Mar Mediterrâneo, dando origem a uma rica burguesia mercantil. A fim de se afirmarem socialmente, estes comerciantes patrocinavam artistas e escritores, que inauguraram uma nova forma de fazer arte. A Igreja e a nobreza também foram mecenas de artistas como Miguel Ângelo, Domenico Ghirlandaio, Pietro della Francesca, entre muitos outros. A nova classe social burguesa que surgiu no Renascimento tinha dinheiro, mas não tinha estatuto, como o clero e a nobreza; por outro lado, como tinha dinheiro, não se enquadrava nos servos da gleba. Assim, procurava investir esse dinheiro patrocinando obras de arte, a fim de serem reconhecidos socialmente.

Renascer
Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus”. Nicodemos perguntou-lhe: “Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez?”. Respondeu Jesus: “Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus.João, 3, 3-5

Em meados do século XIV começou uma transição entre os mundos medieval e moderno. Esta transição é conhecida como o Renascimento ou nascer de novo, como sugere o evangelho.

O movimento começou em Itália que tinha sido o centro da cultura greco-romana e o seu último reduto, o centro do Império Romano. Foi também o lugar mais dominado pela Igreja, pois quase toda a Itália no fim da Idade Média era um Estado Pontifício, formado por terras que Carlos Magno deu à Igreja. Por isso, os que chamam a Igreja de obscurantista esquecem-se que esta foi a maior promotora da Renascença no campo da arquitetura, pintura, escultura e outras artes. E que a cultura greco-romana renasceu precisamente no lugar onde tinha sido extinta pelos bárbaros.

O Renascentismo abrangeu quase todas as facetas da vida, economia, política, filosofia e arte entre tantas e, em especial, da ciência. Os principais contribuintes para o Renascimento (como Petrarca, Leonardo Da Vinci e Dante) classificaram o período medieval como lento e escuro, um tempo de pouca educação ou inovação. Viram o período medieval como uma interrupção da cultura entre o mundo clássico da Grécia e Roma e o Renascimento.

A ideia de comunidade distinguiu o período medieval. As pessoas – clero, nobreza e povo – enfrentaram ameaças reais de fome, doenças e guerras que são perigos que fomentam a dependência da comunidade em áreas como o trabalho, a religião e a defesa. Por exemplo, um artesão medieval pertencia a uma associação que ditava todos os aspetos do seu negócio. A ideia era que todos os artesãos ganhassem a vida equitativamente e não que uns ganhassem mais que outros.  A uniformidade era norma; cada profissão tinha a sua forma de vestir, até as prostitutas tinham o seu hábito, uma forma de vestir que as distinguia das outras mulheres.

A Renascença, por outro lado, veio sublinhar a importância dos talentos individuais. Esta ideia, conhecida como individualismo, é visível na filosofia e na arte da época. Além disso, enquanto estudiosos medievais tinham estudado documentos gregos e romanos antigos para aprender sobre Deus e o Cristianismo, os estudiosos renascentistas estudaram-nos para descobrir mais sobre a natureza humana. Esta nova interpretação era conhecida como humanismo.

Nasceu assim um humanismo não diretamente ligado ao cristianismo, ou seja, um humanismo laico que cresceria exponencialmente durante toda a Idade Moderna. Aliás o Renascimento foi a primeira pedra da cosmovisão humanista materialista contraposta a uma cosmovisão espiritualista, que reinou durante toda na Idade Média.

A arte renascentista também reflete o humanismo. Enquanto a arte medieval se destinava a ensinar uma lição, talvez uma história bíblica, como os vitrais das catedrais góticas, a arte renascentista glorificou a humanidade dos indivíduos retratados. As estátuas medievais tendem a ser de santos e numa posição mística não natural. Em contraste, o David de Miguel Ângelo, a Pietá e Moisés parecem ser mais realistas. As estátuas deixaram de ser imagens congeladas de piedade e passaram a revelar emoções humanas, parecendo prontas para a ação.

Valores renascentistas
Racionalismo – A razão era o único caminho para se chegar ao conhecimento. Tudo podia ser explicado pela razão e pela ciência. A escolástica medieval valorizava também a razão, mas não em exclusivo. A fé é uma outra forma de conhecer, que o renascimento ignora, tal como a cultura em geral depois deste.

Cientificismo – Para os renascentistas, todo o conhecimento deveria ser demonstrado através da experiência científica. É deste tempo a expressão “a experiência é a mãe da ciência”. Hoje sabemos que a experiência não é a única mãe de todas as ciências. Não só da lógica e dedução se faz ciência, mas também da intuição, como aconteceu com a teoria da relatividade.

Individualismo – O ser humano procurava afirmar a sua própria personalidade, mostrar os seus talentos, atingir a fama e satisfazer as suas ambições, através do conceito de que o direito individual estava acima do direito coletivo. Assim nasce o liberalismo em todas as suas vertentes. Teremos que esperar pela revolução socialista para voltar a falar de igualdade, pois a igualdade da revolução francesa era uma igualdade onde uns são mais iguais que outros, como diz George Orwell.

Antropocentrismo – Coloca o homem como a suprema criação de Deus e como centro do universo. É deste tempo a frase “o homem é a medida de todas as coisas”. Deus começa a ser posto de lado, até ser completamente substituído pelo super-homem de Nietzsche.

Classicismo – Os artistas procuram a sua inspiração na Antiguidade Clássica greco-romana para realizar as suas obras. Qualquer momento do passado é melhor que este, era a ideia.

O renascimento das letras
São deste tempo grandes escritores ainda hoje mundialmente famosos, porque escreveram obras mundialmente reconhecidas, para todos os tempos, além de se tornarem ex libris ou representativas da cultura onde surgiram.

  • Dante Alighieri: escritor italiano, autor do grande poema "Divina Comédia". Trata das três instâncias depois da morte – Céu, Inferno e Purgatório – e é uma joia da literatura universal e o ex libris da cultura italiana.
  • Maquiavel: autor de "O Príncipe", obra precursora da ciência política onde o autor dá conselhos aos governantes da época.
  • Shakespeare: considerado um dos maiores dramaturgos de todos os tempos. Abordou na sua obra os conflitos humanos nas mais diversas dimensões: pessoais, sociais, políticas. Escreveu comédias e tragédias, como "Romeu e Julieta", "Macbeth", "A Fera Amansada", "Otelo" e várias outras. Ex libris da cultura inglesa.
  • Miguel de Cervantes: autor espanhol da obra "Dom Quixote", uma crítica contundente da cavalaria medieval. Ex libris da cultura espanhola.
  • Luís de Camões: teve destaque na literatura renascentista em Portugal, sendo autor do grande poema épico "Os Lusíadas", ex libris da nacionalidade portuguesa.

O renascimento das artes
Destacamos Leonard da Vinci que é o ex libris, estereótipo ou protótipo do homem renascentista; o homem dos cem ofícios; foi matemático, físico, anatomista, inventor, arquiteto, escultor e pintor, foi o homem renascentista que dominou várias ciências. Por isso, é considerado um génio absoluto. A misteriosa Mona Lisa e a Última Ceia são as suas obras-primas. Quando alguém nos fala da última ceia de Cristo, a imagem que nos vem à mente é sempre a do quadro de Leonado da Vinci.

Renascimento científico
O Renascimento foi marcado por importantes descobertas científicas, nomeadamente nos campos da astronomia, da física, da medicina, da matemática e da geografia. O polaco Nicolau Copérnico negou a teoria geocêntrica defendida pela Igreja, herdada de Aristóteles e Ptolomeu, ao afirmar que "a Terra não é o centro do universo, mas simplesmente um dos tantos planetas que gira em torno do Sol". O novo centro era agora o sol. Hoje sabemos que nem a terra nem o sol são o centro do Universo. O universo talvez não tenha centro…

Galileu Galilei descobriu os anéis de Saturno, as manchas solares, os satélites de Júpiter. Perseguido e ameaçado pela Igreja, Galileu foi obrigado a negar publicamente as suas ideias e descobertas. “E, no entanto, move-se” dizem que disse Galileu ao sair do tribunal onde foi obrigado a mentir. A Igreja estava enganada ao olhar para a Bíblia como um livro de ciência.

Galileu disse que era a Terra que andava à volta do sol, mas nunca conseguiu prova-lo, pois o que vemos é o sol que anda à volta da Terra: a experiência empírica aqui diz-nos o contrário da verdade. Ao pobre Galileu bastava-lhe ter dito que quando cavalgamos ou nos deslocamos numa carruagem de cavalos, sabemos que somos nós que nos movemos; no entanto, os nossos olhos vêm as árvores a moverem-se. Da mesma maneira, vemos que é o sol que se move, apesar de sabermos que está fixo em relação a nós porque nós, habitantes deste planeta, estamos montados no movimento de um astro que se move, como a carruagem.

Na medicina, os conhecimentos avançaram com trabalhos e experiências sobre a circulação sanguínea, métodos de cauterização e princípios gerais de anatomia. São deste tempo as primeiras autópsias para investigar a causa da morte e para aprender sobre o corpo humano e o seu funcionamento.

Conclusão: ao despertar de um sonho que durou mil anos, o renascentista deu-se conta de que a Idade Média, pelo trauma das invasões bárbaras, não era uma continuação lógica da Idade Antiga que tinha sido sepultada viva. O Renascimento foi um bypass do mundo clássico até à atualidade, sem passar pela Idade Média. Foi um ir beber às fontes e lançar raízes na Idade Antiga como modelo de inspiração, pondo de lado a Idade Média como se esta nunca tivesse acontecido. 

Pe. Jorge Amaro, IMC




20 de outubro de 2024

O sentido da Vida

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O ser e o nada
Todo o homem e mulher que vem a este mundo pergunta-se: de onde venho? Para onde vou? Que sentido tem a vida? O ateu diz que vem do nada e volta ao nada. Que sentido pode ter algo que começa no nada e termina no nada?

A ciência e a técnica melhoraram a nossa vida nos últimos anos, mas não nos dizem, nem podem dizer-nos, qual é o sentido da vida. Contudo, a necessidade de dar um significado à nossa existência é comum a todos os mortais. De uma forma consciente ou inconsciente, todos tratamos de encontrar um propósito para a nossa existência e, de alguma forma, justificá-la.

Os que perdem ou nunca encontram o sentido da vida acabam por deprimir-se, sentindo a náusea do vazio, e frequentemente buscam pôr termo à vida. Depressa se apercebem de que uma vida sem sentido não vale a pena ser vivida.

Caminhante sem caminho
"Caminante, son tus huellas el camino y nada más;
Caminante, no hay camino se hace camino al andar.
" – António Machado

Por um lado, cada homem e cada mulher, que vem a este mundo nasce com um código genético único, que nunca existiu antes ao longo dos cinco milhões de anos de existência da espécie humana, nem existirá depois, até ao fim da história da humanidade.

Neste sentido, cada ser humano que vem a este mundo inicia um caminho novo, uma vida nova, que é sua e só sua. É nisto que consiste a dignidade da pessoa humana e a sua liberdade: pode viver a vida como quiser, encontrar e seguir o seu próprio caminho, que não existe previamente, como se estivesse predestinado, mas que vai sendo feito ao caminhar.

Como é ele quem faz o caminho, como intuiu o poeta espanhol, o único caminho que existe são as suas pegadas, ou seja, o percurso que vai traçando. Tal como os caminhos que surgem formados pelo facto de muitas pessoas passarem pelo mesmo lugar, feitos sem máquinas e sem intenção de os criar.

Por outro lado, ninguém chega aqui completamente isolado do que o precedeu. Tal como o nosso ADN é composto por material genético do nosso pai e da nossa mãe, também somos herdeiros de tudo o que a humanidade já fez ao longo da sua história. Cada indivíduo da espécie humana, consciente ou inconscientemente, acede ao que Jung chamava de inconsciente coletivo, que funciona como uma espécie de base de dados que contém a idiossincrasia da raça humana.

Neste sentido, cada ser humano que chega a este mundo dá continuidade ao que veio antes. Tal como numa corrida de estafetas, recebemos um testemunho, uma herança, uns talentos e, com a nossa vida, damos continuidade aos projetos que já existiam, imprimindo-lhes o nosso cunho pessoal e elevando-os a um nível mais alto.

É nesta continuidade que se acrescenta o nosso toque pessoal. Einstein recebeu a física mecanicista de Newton e, com a teoria da relatividade, elevou-a a um novo patamar. Mozart dedicou a sua vida à música e levou-a a um nível elevado; no fim da sua vida, passou o testemunho a Beethoven, que a elevou ainda mais. Cada atleta, em cada modalidade, estabelece novos recordes com base nos anteriores.

Caminho, verdade e vida
Todo o ser humano que vem a este mundo tem em Cristo o caminho, a verdade e a vida (João 14:6); ou seja, somos chamados a viver em Cristo, por Cristo e com Cristo. Humanismo e cristianismo são uma e a mesma coisa; o cristão é a medida do humano, e o humano é a medida do cristão.

"Quem não está comigo está contra mim, e quem não junta comigo, dispersa." (Lucas 11:23). Não existem dois humanismos, duas formas de viver a vida humana. Não há alternativa igualmente válida a Cristo; não existe outra forma de autorrealização, de viver a vida humana em plenitude e alcançar a felicidade. Portanto, quem não está com Ele, não está com outro, pois esse outro modelo alternativo não existe; assim, quem não está com Ele, está contra Ele.

No entanto, isso não significa que, sendo Cristo o modelo para todos os que querem ser autenticamente humanos, nos transforme em clones que se comportam como marionetas ou autómatos, com o mesmo tipo de personalidade, que pensam, atuam e vivem a vida da mesma maneira.

Quando afirmamos que Cristo é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, estamos a dizer que, até agora, na humanidade, só Deus em Cristo conseguiu ser autenticamente, plenamente, 100% humano. Só Jesus de Nazaré conseguiu realizar plenamente o projeto de humanidade que Deus tinha para o homem quando o criou. Só Jesus de Nazaré conseguiu realizar plenamente o sonho de Deus e torná-lo realidade.

“Deus fez-se homem para que o homem se tornasse Deus” (Sto. Ireneu); eis a razão da Encarnação. Sem Deus, o homem nunca seria plenamente humano.

Diferentes na igualdade, ou iguais na diferença
Sendo 100% homem, Cristo representa a totalidade do ser humano; é o padrão pelo qual todos nos medimos, o horizonte, a meta, o objetivo simultaneamente alcançável e inalcançável da vida humana. Alcançável, porque está ao alcance de todos; inalcançável, porque ninguém jamais o igualará completamente.

Mesmo São Francisco de Assis, chamado por alguns teólogos de "alter Christus", não chegou a ser 100% como Cristo. Cada santo, ou seja, cada cristão que atinge o sucesso espiritual, vive uma parte da humanidade de Cristo, tanto em quantidade como em qualidade.

"Aqueles que recebem a semente em boa terra são os que ouvem a palavra, a acolhem, dão fruto e produzem a trinta, a sessenta e a cem por um." (Marcos 4:20). Em quantidade, porque, como sugere a parábola da semente que cai em boa terra, uns produzem sessenta, outros trinta por cento. Dependendo de um número ilimitado de variantes, vicissitudes e circunstâncias, alguns imitam Cristo em 60%, enquanto outros apenas em 30%. Não importa a quantidade, como parece sugerir a parábola, mas sim ter Cristo sempre como o único referencial da nossa vida.

"(…) Com medo, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está o que te pertence." (Mateus 25:25). Em qualidade, porque Cristo possui a totalidade dos talentos; nós recebemos alguns talentos e não outros. Todos recebem talentos suficientes para tornar a sua vida viável, mas ninguém recebe todos os talentos. O importante é desenvolver e fazer frutificar os talentos recebidos, em vez de os esconder, admirar ou invejar os talentos dos outros, tentando viver a vida deles, o que nunca é possível.

Francisco de Assis e Francisco Xavier são ambos santos e até têm o mesmo nome, mas são bastante diferentes no caminho de santidade que seguiram. Francisco de Assis imitou Cristo na sua humildade, enquanto Francisco Xavier o imitou na sua impulsividade.

Existe uma teoria psicológica chamada Eneagrama, que defende que há nove tipos de personalidade diferentes e que cada ser humano pertence a um desses nove tipos. Cada um destes tipos desenvolve uma qualidade humana em detrimento de outras. Esta teoria sugere que Cristo, sendo 100% homem, incorpora a realização completa de todas essas qualidades.

Como Jesus é o modelo a seguir, o padrão da humanidade, a sua personalidade é formada pelo conjunto dos nove tipos. Na encarnação, Ele aceitou e viveu plenamente todas as formas da personalidade humana, por isso pode ser modelo e paradigma para todos os tipos de personalidade; caminho, verdade e vida para todos seguirem, cada um à sua maneira.

Conclusão - O sentido da vida reside em encontrar o nosso caminho único, inspirado por Cristo como modelo de plena humanidade, desenvolvendo os talentos recebidos e vivendo de forma autêntica e consciente.

Pe. Jorge Amaro, IMC


15 de outubro de 2024

Cosmovisão Medieval

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Em termos históricos, a Idade Média tem esse nome  porque se situa a meio do percurso entre a Idade Antiga e a Idade Moderna. Começa no século V, com a queda do Império Romano do Ocidente e termina no século XV, com a transição renascentista para a Idade Moderna. Estes dez séculos de História da civilização ocidental costumam dividir-se em dois períodos: a alta Idade Média que vai do século V ao século X e a baixa Idade Média, do século X ao XV.

Causas do retrocesso cultural medieval
Há quem, de forma tendenciosa, culpe a Igreja pelo facto de a Idade Média ter sido um retrocesso cultural. É certo que a Igreja filtrou da cultura greco-romana só o que lhe interessava, mas também manteve muito desta cultura; se não tivesse sido assim, não teria preservado os manuscritos antigos, o que impossibilitaria o Renascimento.  

Para quem não é tendencioso, é claro que o fator principal para que a Europa mergulhasse num limbo ou num sonho de mil anos foi a tomada do poder pelos bárbaros, que levavam um atraso de mais de 2 000 anos em relação à cultura greco-romana. Este é decerto o fator principal, mas há outros que contribuíram ou acentuaram a Idade das Trevas.

 A Europa viveu durante a Idade Média num clima de instabilidade constante. A cultura não cresce em tempo de guerra. A Pax Romana tinha proporcionado o desenvolvimento cultural; o isolamento, a falta de comércio e de comunicações que o feudalismo causou transformou o mundo urbano e a sua cultura num mundo rural e fechado onde a agricultura era a única atividade para além das constantes guerras entre pequenos reinos e, dentro desses reinos, entre os senhores feudais o que não proporcionava um desenvolvimento cultural.

Enquanto dentro da Europa a Igreja se dedicava a educar os bárbaros, fora via-se constantemente ameaçada por outros bárbaros. Pelo lado ocidental, os muçulmanos, que tinham ocupado todo o norte de África, invadido a Península Ibérica e chegado até ao coração de França, até Poitiers, onde foram derrotados por Carlos Martel. O Império Otomano ameaçava pelo oriente estender-se pela Europa fora. A norte, surgiram os vikings, outra tribo germânica da Escandinávia que fazia rápidas incursões nas costas de Inglaterra e de França, com o único intuito de roubar, pilhar e matar.

Estes são todos os fatores que fizeram da Europa, unida pelo Império Romano, um monte de ilhas ou feudos desconectados entre si, com a única preocupação de sobreviver. A Igreja ou o cristianismo estava presente em todos estes estados e em todos eles foi o único fator de união. Por isso, foram possíveis empreendimentos como as cruzadas, porque não havia nenhum outro fator que conseguisse unir os povos e os fizesse sair dos seus feudos.

Alta Idade Média
A alta Idade Média é aquela que está mais longe de nós e mais perto da queda do Império Romano do ocidente. Durante este período de ocupação bárbara do Império Romano, os centros urbanos foram destruídos, o povo voltou ao mundo rural. Os bárbaros formaram pequenos reinos usando as estruturas do Império Romano. No século VII, tanto o Norte de África como o Médio Oriente se tornaram muçulmanos; este último tinha feito parte do Império Bizantino ou Império Romano do Oriente (o mais longo da história). Este Império continuou a existir por mais algum tempo, até 1453, já na baixa Idade Média, quando sucumbiu ao Império Otomano que durou mais 600 anos e acabou já depois da I Guerra Mundial, em 1922.

Durante a alta Idade Média, o cristianismo, que se constituiu a si mesmo como o herdeiro da cultura greco-romana, disseminou-se por toda a Europa e, como vimos no texto anterior, as tribos germânicas foram cedendo a esta narrativa religiosa muito superior à sua. Ao converter-se o chefe da tribo convertia-se toda a tribo por uma questão de lealdade, valor muito importante entre os bárbaros.

Ainda nesta alta Idade Média se dá uma tentativa, por parte dos francos durante a dinastia carolíngia, de restauração do antigo Império Romano. O Império Carolíngio surge nos séculos VIII e IX pela unificação dos reinos francos e germânicos durante a dinástica carolíngia, que se inicia com Carlos Magno. Mais tarde, este Império separou-se desta divisão; a parte oriental da França com o resto da Germânia formam o Império Romano Germânico durante o reinado da dinastia saxónia, com Oton I como imperador. Este foi nomeado como sagrado Imperador pelo Papa, facto que deu origem ao nome Sacro Império Romano Germânico.

Os imperadores germânicos consideravam-se sucessores diretos dos romanos. Estes imperadores eram eleitos por um conselho de quatro duques dos reinos mais importantes: Saxónia, Francónia, Suévia e Baviera. O imperador representava todo o Império, mas cada um dos reinos confederados tinha autonomia sobre o seu território que era governado segundo o sistema feudal. Este Império durou 900 anos: a partir da alta Idade Média, atravessou a baixa Idade Média e a Idade Moderna e entrou na Idade Contemporânea; terminou no ano de 1806, com as guerras napoleónicas.

Baixa Idade Média
A baixa Idade Média teve início no ano 1000; neste período dá-se um grande crescimento demográfico, o feudalismo é o sistema que impera por toda a Europa; o rei de cada estado era só uma figura simbólica, não tinha grande poder executivo. Durante este tempo, a Igreja estabelece-se não só como poder espiritual, mas também temporal, pois consegue incitar os nobres feudais a embarcar numa cruzada de reconquista da Terra Santa que o Império Bizantino tinha perdido para o Império Otomano.

Chegam de facto a conquistá-la, mas por pouco tempo, para logo a perderem, uma vez que o Império Otomano estava no seu apogeu. Não voltará a ser conquistada, nem por Ricardo, Coração de Leão, mas pelos ingleses na I Guerra Mundial. Nas cruzadas, as tribos germânicas mostram o seu lado bárbaro, pelo que fizeram mais mal que bem. Não conseguindo derrotar os muçulmanos, em 1204 na quarta cruzada voltaram-se contra os cristãos do Oriente, saqueando, aterrorizando e vandalizando Bizâncio que, enfraquecida, foi depois presa fácil para o poder otomano.

Os dois últimos séculos da baixa Idade Média ficaram marcados por várias guerras, adversidades e catástrofes. A população foi dizimada por sucessivas fomes e pestes; só a Peste Negra foi responsável pela morte de um terço da população europeia entre 1347 e 1350. Acontece também a Peste Negra Espiritual, com o Grande Cisma da Igreja no Ocidente que teve consequências profundas na sociedade e foi um dos fatores que estiveram na origem de inúmeras guerras entre estados.

A vida cultural foi dominada pela escolástica, uma filosofia que procurou unir a fé à razão, e pela fundação das primeiras universidades. A obra de Tomás de Aquino, a pintura de Giotto, a poesia de Dante e Chaucer, as viagens de Marco Polo e a edificação das imponentes catedrais góticas estão entre as mais destacadas façanhas deste período.

Feudalismo
A invasão bárbara provocou a fuga da cidade em direção ao campo. A Europa ocidental ruralizava-se, e a riqueza era a terra. A agricultura tornou-se na principal atividade económica, e a produção dos feudos era para o próprio sustento. Carlos Magno promoveu a distribuição de terras aos senhores feudais, exigindo em troca a sua fidelidade e auxílio em caso de guerra.

O feudalismo é o termo que usamos para toda organização social, política, cultural, ideológica e económica que existiu na Europa durante a Idade Média. O feudalismo é a ruralização da Europa urbana romana; as cidades só voltam a existir com a abertura do comércio na Idade Moderna, por altura do Renascentismo.

O símbolo do feudalismo é o castelo do senhor feudal, rodeado por terras de cultivo onde trabalham de sol a sol os servos da gleba, o povo, que prestam homenagem e vassalagem ao Senhor feudal ou Suserano, membro da Nobreza. Entre castelo e castelo encontram-se aqui e ali mosteiros onde vivem os monges que constituem a outra classe social, o clero.

Os nobres defendem o feudo pois são eles os proprietários das terras que o povo trabalha; o clérigo mantém a cultura e ensina tanto a religião como técnicas agrícolas ao povo, orando por ele; o povo sustenta com o seu trabalho tanto os nobres como o clero, se bem que este último era em grande medida autossuficiente. A Nobreza (bellatores) defende, o Clero (oratores) reza e o Povo (laboratores) trabalha: assim se resume a vida rural durante o feudalismo.

O ideal da cavalaria
O cavaleiro medieval encarna valores como a coragem, a proeza, a infalível lealdade, a fidelidade à palavra dada, a dignidade e a honra. Tem por norma defender os mais pobres e lutar pela justiça e pela paz. Leva uma vida errante de solidão, pelas batalhas e escaramuças que vai enfrentando. Está apaixonado por uma donzela com quem tem uma relação de amor platónico à distância.

Tem que dar provas de temperança em batalha, de generosidade, tanto em relação aos amigos como aos inimigos, e de cortesia para com as mulheres. A liberalidade do cavaleiro que redistribui todos os seus bens às pessoas e aos pobres faz parte da sua fama. Os valores celebrados pela cavalaria são o fruto de uma longa educação.

O aspirante a cavaleiro, deve fazer a sua aprendizagem junto de um senhor de quem passa a ser o criado e depois o escudeiro. Aprende então tanto o manejo das armas como a ética da cavalaria. Uma vez investido, deverá demonstrar o seu valor atuando nos torneios ou participando das aventuras que lhe surgem pela frente. Na procura de glória e reconhecimento, estes cavaleiros errantes vão realizar igualmente múltiplas buscas, das quais a mais prestigiosa é a do Santo Graal, ou seja, o cálice da Última Ceia de Jesus e tambéma da arca da aliança.

Os Templários
Assim chamados porque nasceram no templo de Jerusalém onde buscavam precisamente o Santo Graal; foram uma ordem religiosa militar. Estes e outros membros de ordens religiosas militares eram quem melhor encarnava o espírito do cavaleiro, pois, ao não casar, dedica toda a sua vida à guerra santa ou justa. Eram os mais temidos pelos muçulmanos pois eram mártires da causa; de facto, quando os muçulmanos aprisionavam um templário não se contentavam em matá-lo como faziam com qualquer cruzado, mas torturavam-no durante muito tempo antes de o matar.

Os Templários cresceram em poder e em riqueza e chegaram a ter em França mais terras, mais poder e riqueza que o próprio rei de França, pelo que este, juntamente com o Papa, combinou a sua dissolução. Antes que isto acontecesse, a armada dos templários zarpou de França e diz-se que veio para Portugal, onde o rei D. Dinis, numa atitude inteligente, em vez de dissolver uma Ordem poderosa em Portugal desde D. Afonso Henriques, mudou-lhe o nome para cavaleiros da Ordem de Cristo. Os Descobrimentos portugueses foram feitos pelos templários, financiados pelos judeus. De facto, as caravelas portuguesas levavam nas suas velas a cruz quadrada dos templários.

Eclesia mater ed magistra
“Em terra de cego quem tem um olho é rei” diz o povo; a Igreja tornou-se uma instituição poderosa e influente não apenas na religião, mas também na sociedade medieval. Os povos germânicos não estavam minimamente interessados na cultura, não sabiam ler nem escrever, mas sabiam que a formação e a informação representam poder, por isso reconheciam na Igreja não só um poder religioso, como também cultural, como herdeira da cultura greco-romana. Consequentemente, era respeitada, apesar de, como mais tarde Hitler afirmou, não ter exércitos para submeter os povos.

O poder da Igreja era só espiritual. No entanto, como o ser humano é um ser espiritual, quando submetes a alma de uma pessoa, submetes o seu corpo uma vez que o corpo obedece aos ditames da alma. Podemos ver uma imagem dessa submissão no seguinte episódio que é iconográfico e representativo da Idade Média e das relações entre a Igreja e os povos germânicos:

quando o feroz chefe e rei dos hunos estava para invadir e saquear Roma, cobiçada por todas as tribos germânicas, o papa S. Leão Magno saiu ao seu encontro e, por meios pacíficos certamente, conseguiu dissuadi-lo desta invasão.

Os reinos germânicos adaptaram os seus costumes aos dos romanos. A Igreja aliou-se aos reis e tornou-se na grande ponte entre o mundo germânico e o mundo romano. Os povos bárbaros abandonaram as suas antigas práticas religiosas e aderiram ao cristianismo. A fé cristã expandiu-se pela Europa ocidental, reforçando o poder do Papa. Foi no Império Carolíngio, no século VII, que a Igreja conseguiu consolidar o seu domínio, continuando depois no Sacrossanto Império Romano Germânico.

Nos séculos IV e V, com uma pregação intensa e geral, em pouco tempo a Igreja converteu ao cristianismo os povos conquistadores do Império Romano. Numa época de guerras, desagregação e fragmentação do poder, como foi o feudalismo, a religião era o único fator de união entre os povos. Era também a única instituição do mundo antigo capaz de fazer frente à hegemonia dos novos dominadores bárbaros.

Era a Igreja que garantia a paz e defendia os povos dos excessos dos invasores bárbaros, opondo-se às injustiças, não pela força das armas que não as tinha, mas pela força da razão, da decência e da ética. Os bárbaros respeitavam a Igreja pelo ascendente que esta tinha perante o povo e por ser a herdeira do grande Império Romano que, de facto, ainda existia no oriente. Com a subjugação das populações nas zonas mais rurais, o único poder era o do bispo; por outro lado, a nível de Roma, o Papa era o único representante do ocidente romano. Desta forma, a Igreja tornou-se num poder político e, como tal, também cometeu alguns erros.

Monaquismo
Os monges e os frades eram os cavaleiros espirituais da Idade Média. A cultura da Idade Média estava concentrada nos mosteiros. A produção da Antiguidade Clássica foi guardada e os monges copistas tinham a missão de copiar os textos antigos para que não se perdessem com o tempo. O acesso às bibliotecas dos mosteiros era restrito e o trabalho era manual.

Na Europa da alta Idade Média, dividida em tantos reinos instáveis, a Igreja era a única instituição forte e eficiente, instruída, rica e presente em todo o lado. Nas cidades, o bispo era frequentemente a única autoridade existente. No mundo rural, afirma-se a presença dos mosteiros com a regra Beneditina de “Orat ed labora”: o monge não deve apenas rezar, mas também trabalhar para se sustentar a si mesmo e a quem necessita.

Em toda Europa, nasceram mosteiros beneditinos e cistercienses que se transformaram em centros económicos e que, através da agricultura e da criação de animais, produziam alimento para as populações.

Estes mosteiros foram oásis de cultura e celeiros da mesma, pois era aqui que se copiavam os antigos textos latinos e gregos. Sem estas cópias, estes textos ter-se-iam perdido. A invasão bárbara do império romano parece ter feito a cultura andar para trás, mas a Igreja preservou essa cultura, pois era a única herdeira das últimas civilizações ilustradas: a da Grécia e a de Roma.

Os americanos chamam a esta idade a Idade das Trevas e de alguma forma o foi. No entanto, custa a acreditar que precisamente nesta época se tenham construído os edifícios mais belos que o mundo já construiu: as catedrais góticas. Cada pedra foi talhada para ocupar um lugar exato, sem cimento e sem ferro, arcos, colunas, ogivas, abóbadas, um conjunto harmonioso e elegante, iluminado pelos vitrais multicolores, um autêntico céu na terra.

A catedral gótica como ex libris da cosmovisão medieval
Foram necessários os templos gregos e as basílicas romanas para que houvesse catedrais góticas; no entanto, qualquer que seja a dívida dos arquitetos medievais para com seus predecessores, a verdade é que os superaram mil vezes. A catedral gótica representa um avanço exponencial em relação à arquitetura grega e romana.

A vertiginosa verticalidade de tais edificações revela plenamente as transformações do gosto, do pensamento filosófico escolástico, dos ideais estéticos, traduzidas, para o plano arquitetónico, por uma renovação das técnicas mediante a introdução de uma série de elementos originais típicos do estilo gótico: a abóbada sustentada por uma cruzaria ogival, a utilização do arco quebrado em vez do arco de volta inteira, ou arco românico, o emprego do arcobotante e dos contrafortes para sustentar o teto de pedra formado por um conjunto de abóbadas.

É a cosmovisão cristã que explica a unidade de espírito que caracterizou a civilização medieval, e daí a razão de existir uma íntima relação entre a escolástica e as catedrais góticas, uma vez que a plena aceitação da conceção católica da vida gerou, não somente um autêntico e inconfundível estilo de vida, como também uma filosofia e um estilo arquitetónico próprios.

Como indicam as teses de S. Tomás de Aquino, fundador da filosofia escolástica, a Deus chega-se não só pela fé, mas também pela razão, ou seja, por um esforço do pensamento complexo mas requintado, rigidamente formal mas rico de subtilezas. Esses mesmos conceitos inspiraram na arquitetura as catedrais góticas, a sua ascensão para Deus, através de construções complexas, mas requintadas, formalmente rigorosas, mas de igual modo ricas de pormenores. Deste modo, pode afirmar-se que o pensamento escolástico se vê perfeitamente expresso na arquitetura das catedrais góticas.

Conclusão: É certo que a constante instabilidade interna provocada pelas invasões bárbaras e pelo fim da Pax Romana, assim como a instabilidade externa causada pela constante ameaça dos vikings a norte e dos muçulmanos a oriente, sul e ocidente, fizeram a Europa mergulhar num limbo de paralisia e retrocesso cultural. No entanto, também foi esta Idade que produziu um alto paradigma de humanidade no ideal de cavalaria, e na catedral gótica com o exponente mais lato da arquitetura mundial.

Pe. Jorge Amaro, IMC






11 de outubro de 2024

Celebrar e viver a fé

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Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem algo contra ti, deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois volta para apresentar a tua oferta. Mateus 5:23-24

Alguém dizia que a vida do cristão decorre entre a Igreja e o mercado. "Ite missa est", dizia o sacerdote em latim ao despedir os cristãos após a celebração eucarística dominical. Esta expressão não só significa que a missa terminou, mas também que estamos em missão. O cristão ou está em missa, celebrando a sua fé, ou em missão, vivendo a sua fé. A celebração e a vida são inseparáveis. Celebramos o que vivemos e vivemos o que celebramos.

Não é possível ser cristão sem ter uma relação pessoal com Cristo, que se expressa na oração, e sem celebrar esse mesmo Cristo na Eucaristia, em comunhão com os outros que partilham a mesma fé. Se a oração e a penitência são a celebração individual de Cristo, a Eucaristia é a celebração comunitária de Cristo com a comunidade à qual pertencemos, pois não se pode ser cristão sozinho.

Celebra-se o que se vive, vive-se o que se celebra
Iludimo-nos ao pensar que, mesmo sem qualquer manifestação pública ou privada da nossa fé, continuamos a ser católicos. Mas isso não é verdade. Quem não consegue viver conforme aquilo em que acredita, tarde ou cedo começa a acreditar conforme vive.

Tudo o que é valioso na vida só se alcança com esforço; a passividade, o “dolce fare niente”, não nos leva a lado nenhum, pois na vida o que é bom ou custa dinheiro, ou custa esforço, ou ambas as coisas.

Os motores de um avião não só o impulsionam para a frente, como também o mantêm no ar. De facto, quando o piloto quer fazer o avião descer, o primeiro que faz é reduzir a potência dos motores, e assim o avião vai descendo gradualmente. Porém, se reduzir a potência para menos de 200 km/h, o avião cai. Neste mundo, pela lei da gravidade, o que não tem força para subir, desce.

A nossa natureza caída e os nossos instintos já exercem sobre nós uma força gravitacional para o mal; para vencermos o mal e crescermos como pessoas, temos de nos esforçar e contrariar essa força. A oração, o confronto com a Palavra de Deus e todas as práticas religiosas são uma ajuda essencial. Sem elas, estamos à mercê dos nossos instintos e dos valores que a sociedade promove. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação.”

“O espírito está pronto, mas a carne é débil.” (Mateus 26:41). O próprio Jesus experimentou que a fraqueza da natureza humana requer a ajuda da oração como exercício de autoconsciência, para nos mantermos em estado constante de alerta, e como solicitação da assistência divina, pois, como disse Jesus: “Sem mim, nada podeis fazer” (João 15:5).

Dizer que alguém é "católico não praticante" é um contrassenso, uma falácia. Não há pianistas, cantores ou futebolistas "não praticantes". Os dons, talentos ou aptidões que temos, se não os utilizarmos, perdemo-los. A fé é um desses dons que só se mantêm na medida em que são vividos e exercitados. “O que não se usa, atrofia-se”, diz o provérbio.

“O amor é como a lua: quando não cresce, mingua.” A fé também é assim: ou está a crescer e a fortificar-se, ou está a minguar e a enfraquecer. A liturgia da fé são os sacramentos, sobretudo a Eucaristia, a oração e a escuta da Palavra de Deus.

O amor também tem as suas liturgias: se não se expressa em palavras, poesia, canções, carícias e intimidade, começa a decrescer. A fé leva à prática das boas obras, e estas fazem a fé crescer. O amor é a mesma coisa; amar é querer o bem do outro e colocar-se ao serviço desse bem.

Eucaristia e Caridade
O pão eucarístico repartido é uma imagem ou um ato simbólico que nos recorda que, para sermos cristãos, outros Cristos, devemos repartir o nosso pão com os necessitados. Neste sentido, a Eucaristia, além de ser a celebração da paixão, morte e ressurreição do Senhor, é também um sacramento da memória.

Não apenas dos factos históricos, mas um ato simbólico que nos lembra outros gestos de Cristo (como montar num jumento em Jerusalém, lavar os pés aos discípulos ou expulsar os vendilhões do templo). Tudo isso nos mostra que a celebração da Eucaristia ritual só tem valor para quem celebra também a Eucaristia existencial, ou seja, quem reparte o pão com os pobres.

O cristão autêntico, o cristão a 100%, é aquele que celebra a memória do Senhor com a comunidade na Igreja, mas também individualmente na sua vida, dando esmola, ajudando e pondo em prática as palavras de Mateus 25: "Tive fome e deste-me de comer…". Quem reparte o pão apenas na Igreja, mas não o faz na vida, é meio cristão, assim como quem reparte o pão na vida, mas não o faz na Igreja.

Cristo está no pão que se dá em alimento; assim também nós devemos transformar-nos em pão para os outros. Devemos repartir o nosso tempo, energias e recursos, até nos darmos a nós mesmos. Cristo é pão, o pão é Cristo, e o pão que repartimos é Cristo dado aos outros. Deste modo, a prática cristã une-se à praxis cristã. A Eucaristia estende-se pela vida. "Ite missa est": termina o ritual e começa o existencial. Quando repartimos o pão físico, após o espiritual, reconhecemos Cristo nos outros.

Conclusão – A fé é uma atitude ante a vida que se celebra nos sacramentos especialmente na eucaristia, e se vive na caridade para com os outros. Não se pode divorciar a vida da celebração nem a celebração da vida. Quem não celebra o que vive não vive o que celebra.

Pe. Jorge Amaro, IMC

6 de outubro de 2024

Fé: A Moeda das relações humanas

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Pois andamos pela fé, e não pela vista
. 2 Coríntios 5:7

O ser humano não é apenas um ser autónomo, livre e independente, mas também um ser profundamente relacional. Nascemos de uma relação de amor, crescemos como seres humanos se formos amados incondicionalmente. Podemos ter tudo na vida, mas sem amor, nada temos. Podemos alcançar o topo da sociedade mas, se não amamos e não somos amados, não seremos felizes. Mais importante do que saber por que vivemos é compreender para quem vivemos.

A vida humana nasce e desenvolve-se no seio das relações com os outros. Estas relações podem ser analisadas pelas ciências, especialmente pelas ciências humanas, mas possuem algo que ultrapassa o âmbito científico. A ciência serve para conhecer as coisas, mas não é suficiente para conhecer as pessoas. A fé e o amor são os alicerces das relações humanas, e nenhum dos dois pode ser objeto de estudo científico.

Conhecer e amar
Conhecer algo implica domínio e controlo. Se sei o princípio que regula a chuva, posso manipulá-la, como fizeram os chineses antes da abertura dos Jogos Olímpicos para garantir que não chovesse durante a cerimónia. No entanto, Deus não se conhece dessa maneira. Conhece-se a Deus como se conhecem as pessoas: através da intimidade e da relação.

Uma pessoa só se revela e se dá a conhecer quando é amada. Pelo contrário, quando um inimigo nos conhece, tornamo-nos vulneráveis. Tal como uma pessoa, Deus só se revela àqueles que O amam. Não podemos conhecer a Deus ou a outra pessoa sem nos envolvermos pessoalmente. Deus e as pessoas humanas não podem ser reduzidos a objetos de laboratório. Amar implica um compromisso; o conhecimento sem amor torna-se manipulação.

A fé: a base da confiança nas relações humanas
A fé é um salto razoável, sustentado pela razão. É como quem caminha por um caminho e, ao chegar a um precipício, precisa saltar para o outro lado. Fé é avançar rumo ao futuro ou ver o presente a partir de uma realidade ainda não concretizada. É como navegar sem uma rota visível ou, como uma criança que se lança para os braços do seu pai ou mãe, confiando que será apanhada.

No âmbito do conhecimento, a fé não se encaixa na análise lógica dedutiva. Relaciona-se mais com a síntese e o conhecimento intuitivo. Ter fé é intuir que algo é correto, mesmo sem garantias absolutas; é como passar um cheque em branco, emprestar dinheiro ou um livro, confiando que será devolvido. Fé é arriscar e apostar no incerto.

A teoria da relatividade geral de Einstein foi, durante muito tempo, um ato de fé, nascido de uma intuição do próprio Einstein e só recentemente conseguimos obter provas da sua veracidade.

Quando aceito um cheque por um serviço prestado, acredito que ele tem cobertura. Seria ofensivo e poderia perder um amigo se o recusasse. Ao entrar num avião, confio que as autoridades fizeram o seu trabalho para evitar qualquer perigo e que os pilotos estão preparados e bem-intencionados. Ao comer num restaurante, confio na qualidade da comida, sem exigir que seja analisada previamente. Em algumas culturas, como na Etiópia, a cozinheira prova a comida à frente dos convidados para garantir segurança, mostrando como a confiança está no centro de todas as interações humanas.

No casamento, acredito que a união será para toda a vida. Mesmo num empréstimo bancário, o banco, após a devida análise, concede crédito baseado na confiança de que o cliente devolverá o montante. Até o cartão de crédito funciona com base na fé. Fala-se em "fé nos mercados" como se fala em "fé em Deus".

Até a autoestima se relaciona com fé em nós mesmos. Podemos acreditar ou não nas nossas capacidades e essa crença influencia como nos lançamos na vida. Muitas vezes, arriscamos sem ter certezas, esperando que o sucesso confirme os nossos talentos.

Se Deus não existe, a vida humana carece de sentido
(...) Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé (...) aqueles que morreram em Cristo perderam-se. E, se esperamos em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.
1 Coríntios 15:17-19

O enigma da existência humana está profundamente ligado à existência de Deus. Se Deus não existe, o ser humano, de certa forma, também deixa de existir como pessoa, e a sua vida perde o sentido. Filósofos que seguiram a ideia da "morte de Deus" — Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Søren Kierkegaard — afirmaram que, sem a existência de um ser superior, a vida se torna absurda. Para que a vida tenha sentido, é necessário que existam critérios que guiem a nossa existência e que não sejam fruto da criação humana — princípios que transcendam a nossa origem e que possuam autoridade sobre nós.

Sartre afirmou: "O inferno são os outros". Assim como os soldados do sumo sacerdote prenderam Cristo, Deus foi aprisionado por Feuerbach, julgado por Marx e Freud — que, ironicamente, tal como Anás e Caifás, também eram judeus — e, por fim, condenado à morte e executado pelo "Pilatos" de Nietzsche.

Ironia do destino, com a morte de Deus, morreu também o ser humano, pois a vida perdeu o seu sentido. Após Nietzsche, os filósofos tornaram-se pensadores do absurdo e da náusea, como Sartre, não tanto em resposta ao "cadáver de Deus", que não possui corpo, mas ao do Homem.

Contudo, após reconhecermos que a existência do ser humano está intrinsecamente ligada à existência de Deus, e embora Deus preexista e exista independentemente do homem, o ser humano é a criatura para a qual Deus existe. Apenas uma criatura consciente de si própria pode atingir a consciência da existência de Deus.

Tal como mencionámos ao falar do animismo, foi a constatação da morte do nosso corpo físico que originou o nosso "eu" espiritual; foi o reconhecimento da morte como um fim que moldou a nossa compreensão da existência como um "ser". A existência é temporal, mas o "ser" é eterno. O desejo de eternidade, em contraste com a realidade da nossa temporalidade, fez-nos acreditar na existência de Deus, criador de tudo e de todos, e alimentou a nossa sede de O conhecer.

Outra ironia do destino: agora, o outro, o meu semelhante, com quem vivia em harmonia na sociedade, como afirma Sartre, transformou-se num inferno para mim. E, segundo ele, a única forma de sair deste inferno seria eliminá-lo.

No auge do absurdo, estes pensadores chegam a negar a natureza trinitária do ser humano. Um ser humano não existe isoladamente, mas em coexistência com outros dois — o pai e a mãe. Ou existem três, ou não existe nenhum. Como podem os outros ser o inferno? É o amor ao próximo, como a nós mesmos, que garante a igualdade, um princípio fundamental para a sociedade e para o ser humano como ser social e integrante dela.

Sem o amor ao próximo, a vida em sociedade seria impossível e, sem esta, a própria vida individual cessaria de existir. Se todos pensassem como Sartre, este mundo seria verdadeiramente um inferno.

Por outro lado, é o amor a Deus acima de todas as coisas e pessoas que nos garante a verdadeira liberdade, um princípio essencial para a dignidade da pessoa humana. Sem liberdade, não há vida humana plena, não há indivíduo. Só nos libertamos das coisas e das pessoas quando entregamos o nosso coração a Deus e aceitamos o Seu senhorio.

Se não rendemos vassalagem a Deus, que nos faz livres, acabamos por nos submeter a outras realidades humanas e mundanas — o poder, o prazer, a riqueza, a popularidade, a beleza física — tornando-nos escravos dessas realidades e, consequentemente, idólatras, ou seja, adoradores de ídolos.

Conclusão – Sem Fé, a vida humana não é possível. Para viver como indivíduo livre, autónomo e independente, o ser humano precisa de confiar em si mesmo. Para viver em sociedade, na família, na comunidade, na sociedade em geral, é essencial confiar nos outros.

Pe.Jorge Amaro, IMC

1 de outubro de 2024

Cosmovisão dos Bárbaros

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Para os Gregos, os povos ao norte das suas fronteiras, falavam uma língua que os gregos não entendiam. Para eles balbuciavam algo como um bar-bar, o que deu origem à palavra bárbaro, que passou a designar o estrangeiro. Mais tarde, para os romanos, o termo latino barbarus, era aplicado aos povos estrangeiros que não falavam latim e não seguiam as leis romanas e também não participavam da sua civilização.

Os bárbaros que conquistaram o Império Romano do Ocidente eram tribos germânicas que nunca criaram cultura ou civilização nem estiveram sequer interessados em criá-la. Falamos dos hunos, dos vândalos, de onde vem a palavra vandalismo, dos godos, dos francos, dos lombardos e dos saxões e, mais tarde, já em plena Idade Média, dos vikings. Apelidar estes povos de bárbaros pode parecer depreciativo, mas estes povos eram de facto bárbaros, com uma cultura bem primitiva comparada à greco-romana, poucos valores humanos, dedicavam-se a destruir, matar, roubar, pilhar e violar.

Como ainda não conheciam a escrita, embora ela já existisse há muito tempo, viviam ainda na pré-história, por altura da Idade do Ferro, sendo o ferro o elemento mais importante para as suas guerras. De resto, o seu desenvolvimento cultural ou civilizacional tinha um atraso de mais de 2 000 anos em relação à cultura greco-romana.

A Grécia podia ter considerado a invasão romana como sendo uma invasão bárbara, uma vez que já possuía uma cultura em geral muito mais desenvolvida que a romana, embora os romanos fossem melhores em coisas como a administração do Estado, o Direito e a Arquitetura. A invasão romana da Grécia não foi tida como uma invasão bárbara pelos gregos porque os romanos, apesar de poderosos, eram também mais humildes que os gregos ao não imporem a sua cultura, nem a sua religião nem a sua língua como os gregos tinham feito aos povos dominados.

Os romanos aceitavam a cultura dos outros, respeitavam e eram tolerantes com os seus usos e costumes, e às vezes deixavam, como no caso da Galileia, que fossem governados pelos seus próprios reis, desde que pagassem tributo a Roma. De facto, Roma só fez valer a sua cultura nos povos que a não tinham, ou seja, em todo o Ocidente. Por isso no Ocidente se falam hoje línguas neolatinas; o português, o espanhol, o italiano, o francês, o romeno e 50% da língua inglesa.

No Oriente prevaleceu o grego que foi mais tarde a língua do Império de Bizâncio, o Império Romano do Oriente que durou bastante mais tempo, sendo suplantado por um império político-religioso, o Império Otomano que só acabou depois da I Guerra Mundial.

Com a queda do Império Romano, o mundo ocidental mergulhou naquilo a que os historiadores ingleses chamam a Idade das Trevas. Em relação à Idade Antiga, a Idade Média representou um retrocesso a todos os níveis. Os bárbaros que conquistaram o Império só estavam interessados nas suas riquezas, não em construir uma cultura ou uma civilização. A cultura teve de refugiar-se e esconder-se nos mosteiros, onde foi preservada uma versão cristã do mundo antigo. A Idade Média pode ser vista como um longo período em que a Igreja pacientemente foi educando estes bárbaros que detinham o poder político, com a cultura greco-romana que tinha herdado.

Causas da queda do Império Romano
Dado que o Império tinha crescido desmesuradamente, era imenso e difícil de governar. No século III, o Imperador Diocleciano dividiu-o em dois, entre Ocidente com a capital em Roma e Oriente com capital em Constantinopla ou Bizâncio. A curto prazo esta parecia ser uma boa medida para melhor governar um império tão vasto. No entanto, com o tempo, as partes começaram a divergir; no Ocidente falava-se apenas o latim, no Oriente falava-se apenas o grego. Sem inimigos, o Oriente cresceu em poder e riqueza, enquanto que o Ocidente foi definhando pouco a pouco, tanto a nível económico como militar.

Uma das principais causas da queda do Império Romano do Ocidente foi a invasão dos bárbaros, protagonizada pelos povos germânicos que habitavam a região a leste das fronteiras do Império. Entre outras causas contam-se também a decadência da economia baseada nos escravos que trabalhavam a terra e eram artesãos, a desestruturação militar assim como o gasto militar em guerras fronteiriças que nunca terminavam.

O processo de entrada dos povos germânicos no Império Romano ocorreu inicialmente de forma gradual. A nordeste da Península Itálica, as fronteiras do Império Romano tinham como limite os rios Danúbio e Reno. Os povos e tribos que habitavam para além desses rios eram considerados pelos romanos como germanos.

Desde o tempo de César que os romanos tinham conhecimento da existência desses povos. Estavam organizados em clãs, não possuíam uma instituição estatal como a romana, e as suas leis eram baseadas na tradição, transmitida oralmente, pois não conheciam a escrita. Dedicavam-se à agricultura e ao pastoreio. Pelo clima frio em que viviam eram destemidos e aguerridos. Eram povos guerreiros, o que lhes valeu a fama de serem violentos e cruéis.

Ao princípio no espírito da famosa Pax Romana, os romanos estabeleceram pactos com estas tribos; como dissemos anteriormente, os romanos só estavam interessados no pagamento do tributo a Roma e, quando os povos dominados o faziam, era-lhes concedido um elevado grau de autonomia. Porém, com o enfraquecimento do poder central, estes povos foram adquirindo cada vez mais autonomia e independência, constituindo-se em autênticos reinos que a enfraquecida Roma já não tinha poder para enfrentar.

Por volta do ano 300 d.C., grupos bárbaros como os godos invadiram as fronteiras do Império. Os romanos resistiram a uma revolta germânica no final do século IV, mas em 410 o Rei visigodo Alarico saqueou com sucesso a cidade de Roma. O Império passou as décadas seguintes sob ameaça constante, antes de "a Cidade Eterna" ser invadida novamente em 455, desta vez pelos vândalos.

Finalmente, em 476, o líder germânico Odoacer encenou uma revolta e depôs o Imperador Romulus Augustulus. A partir daí, nenhum imperador romano voltaria a governar a partir de um posto na Itália, levando muitos a citar 476 como o ano em que o Império Ocidental sofreu o seu golpe mortal.

Origem das tribos germânicas
Os povos germânicos são originários das planícies da Dinamarca e do sul da Escandinávia. Existem vestígios de assentamentos humanos nesta zona que datam do Neolítico, quando o homem começou a controlar a Natureza, domesticando a terra e as plantas assim como algumas espécies de animais para o seu sustento.

Quando falamos de tribos germânicas, falamos de muitas tribos das quais as mais importantes são os hunos, os vândalos, os godos, os visigodos e os ostrogodos, os francos, os lombardos, os saxões e os anglo-saxões.

Os vikings eram também fundamentalmente uma tribo germânica que habitava mais a norte, na Escandinávia e que assolou a Europa como piratas durante a Idade Média, quando as tribos germânicas já estavam estabelecidas, formando os primeiros Reinos depois da queda do Império Romano.

Como a população germânica crescia e o Império enfraquecia, os povos germânicos começaram a emigrar em todas as direções, mas mais para o sul e oeste, em busca de melhores terras pois as suas já não chegavam. Ostrogodos, visigodos e lombardos entraram em Itália; vândalos, e francos e visigodos conquistaram grande parte da Gália e dos celtas que ali habitavam, vândalos, suevos e visigodos invadiram a Península Ibérica. Destes, os vândalos chegaram a estabelecer-se no norte de África, em Cartago e os alanos estabeleceram-se no Reno e nos Alpes.

Na Grã-Bretanha, os saxões uniram-se aos anglos e a outras tribos locais, formando os anglo-saxões que dominaram a Inglaterra até à conquista dos normandos, já na Idade Média. No resto das ilhas, Escócia, País de Gales e Irlanda continuaram a ser maioritariamente celtas. Os celtas não eram uma tribo germânica. Tinham cultura própria e habitavam a Europa Central. Eram os famosos habitantes da Gália, os gauleses conquistados por Júlio César. Também tinham invadido a Península Ibérica antes dos romanos, unindo-se aos primeiros povos que a tinham invadido, os iberos, provenientes do norte de África.

Cultura e organização das tribos germânicas
A sociedade germânica primitiva caracterizava-se por um rigoroso código de ética, que valorizava sobretudo a confiança, a lealdade e a coragem. Adquirir honra, fama e reconhecimento era uma ambição primordial. A independência, a autonomia e a individualidade eram valores muito enfatizados.

É provavelmente esta a razão pela qual os povos germânicos nunca constituíram um grande império ou mesmo um Estado germânico unificado. O ambiente em que os povos germânicos emergiram, nomeadamente a sua ligação à floresta e ao mar, desempenhou um papel importante na formação destes valores. A literatura oral germânica está cheia de desprezo por personagens que não conseguiram viver os ideais germânicos.

Na língua germânica, ger-man significa o homem da lança. Para os povos germânicos, a perda da lança ou do escudo era o equivalente à perda da honra. Os germânicos eram guerreiros por natureza, nasciam na guerra e para a guerra; desde pequenos, eram treinados na arte da guerra tal como os espartanos. A lealdade e devoção ao clã a que pertenciam e, por este, à tribo e ao seu líder, era um dos valores mais altos do germânico; este sentido de união conseguiu-lhes muitas vitórias.

A realeza é, portanto, um elemento fundamental que une a sociedade germânica. Como aconteceu com outros povos, a sua origem como instituição é sagrada e, por isso, o rei combina as funções de líder militar, sumo sacerdote, legislador e juiz.

A monarquia germânica era, em parte, eletiva; o rei era eleito pelos homens livres de entre candidatos elegíveis de uma família que pudesse traçar a sua ascendência até ao fundador divino ou semidivino da tribo. Embora a sociedade germânica fosse altamente estratificada entre líderes, homens livres e escravos, a sua cultura também enfatizava a igualdade. Ocasionalmente, os homens livres da tribo chegavam a anular as decisões dos seus próprios líderes.

Por influência do Império Romano, o poder dos reis germânicos sobre o seu próprio povo aumentou ao longo dos séculos, em parte porque as migrações em massa do tempo exigiam uma liderança mais severa.

Literatura
Como os germanos não conheceram a escrita antes do seu encontro com a cultura romana, a literatura germânica passava oralmente de geração em geração. O seu conteúdo estava ligado ao seu objetivo principal que era honrar os deuses ou louvar os antepassados tribais, chefes, guerreiros e seus associados, esposas e outros familiares.

Religião
Segundo o escritor romano Tácito, os povos germânicos adoravam principalmente "Mercúrio", mas também "Hércules" e "Marte". Estes eram geralmente identificados com Odin, Thor e Týr, os deuses da sabedoria, trovão e guerra, respetivamente. Também veneravam as deusas Nerthus e Freya.

As descobertas arqueológicas sugerem que os primeiros povos germânicos praticavam alguns dos mesmos rituais “espirituais” que os celtas, incluindo o sacrifício humano, a adivinhação e a crença na conexão espiritual com o ambiente natural que os rodeava. Como os romanos, havia uma diferença entre o culto doméstico e o culto da comunidade; em casa, o pai de família desempenhava o papel de sacerdote.

As cerimónias religiosas eram executadas em bosques, lagos e ilhas considerados sagrados, e não em templos; os povos germânicos não construíram templos para realizar os seus ritos religiosos. Para os sacrifícios oferecidos aos deuses, todo o tipo de gado era abatido, e até mesmo pessoas, sendo o sangue aspergido sobre o povo que depois fazia brindes aos deuses e comia a carne. As vítimas, tanto humanas como animais eram penduradas nas árvores. Uma das árvores do bosque seria a mais sagrada entre todas as outras e por baixo dela estaria um poço no qual um homem vivo seria sepultado.

Não se conhece nenhuma conceção comum a todas as tribos germânicas sobre a vida após a morte. Alguns acreditavam que os guerreiros heróis caídos iriam para Valhalla para viver felizes com Odin, enquanto que os maus poderiam perseguir os vivos depois de mortos; se isso acontecesse, teriam de ser mortos mais de uma vez para deixarem de perseguir os vivos. Provavelmente foi aqui que a série “Guerra dos Tronos” se inspirou para criar os “Walkers”, mortos-vivos que tinham de ser mortos pelo fogo para permanecerem mortos.

Depois da conquista do Império Romano, os povos germânicos foram-se paulatinamente convertendo ao cristianismo em diferentes períodos: os godos no século IV, os saxões nos séculos VI e VII, por pressão dos francos já convertidos; os dinamarqueses, sob pressão alemã, no decorrer do século X. O paganismo aguentou-se por mais tempo nas terras mais a norte, Islândia, Noruega e Suécia.

Conclusão: Apesar de levarem um atraso significativo de mais de 2000 anos em relação ao desenvolvimento cultural e à civilização greco-romana, os povos germânicos contribuíram para a Europa medieval com os seus valores de autonomia, independência e liberdade, fundamentados no princípio de que todos somos iguais em dignidade.

Pe. Jorge Amaro, IMC


27 de setembro de 2024

Física quântica e Fé

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Se a mecânica quântica não te chocou profundamente, é porque ainda não a compreendeste. Tudo o que chamamos de real é formado por coisas que verdadeiramente não podem ser entendidas como reais. 
Niels Bohr

A física é a mãe da ciência
A física é, por si só, uma cosmovisão, ou seja, a matriz do nosso pensamento. Não é o mesmo observar o mundo pela perspetiva mecanicista e materialista de Newton, do que vê-lo sob o prisma da física quântica.

O pensamento contemporâneo já não explica a realidade com base na física mecanicista de Newton, mas sim na teoria da relatividade e na física quântica. No entanto, a maior parte dos pensadores, cientistas e até teólogos ainda têm as suas mentes formatadas pela física newtoniana.

O mundo da política, das universidades, dos meios de comunicação e da economia é um mundo de causa e efeito, onde uma causa gera sempre o mesmo efeito; por isso, é um mundo ateu, materialista e mecanicista. A física quântica, sendo uma novidade, demorará ainda a estabelecer-se como a nova cosmovisão e, quando o fizer, será muito mais fácil acreditar.

As universidades, a política e os intelectuais estão, assim, desfasados, atrasados e fora de sintonia com a nova realidade. Vivem numa cosmovisão obsoleta. Para se atualizarem, devem divorciar-se de Newton e casar-se com Heisenberg. O mundo não é nem funciona da forma que eles acreditam.

Falar dos milagres de Jesus à luz da física mecanicista de Newton, onde a realidade funciona como uma máquina perfeita na rotina inalterável de um relógio, é mais difícil do que abordar os mesmos temas sob a ótica da teoria da relatividade e da física quântica, onde já não existem leis fixas e absolutas da natureza, mas sim probabilidades estatísticas.

O princípio de Heisenberg vai ainda mais longe ao sugerir que a realidade, longe de ser fixa e previsível, tem um elevado grau de incerteza e imprevisibilidade. A física quântica desafia até o senso comum.

Para Einstein, a matéria é uma forma de energia e a energia é uma forma de matéria; 95% do universo é constituído por matéria negra, que é invisível. Quão mais fácil se torna falar da ressurreição do corpo glorioso de Cristo e do corpo espiritual que teremos após a morte!

A mecânica quântica
A mecânica quântica altera profundamente os nossos paradigmas, desafiando a lógica que tem governado a ciência e a nossa vida, destruindo fronteiras que antes nos pareciam intransponíveis e acabando com dualismos que opunham realidades que julgávamos opostas, como:

•    Matéria e energia;
•    Estático e móvel;
•    Visível e invisível;
•    Tangível e intangível;
•    Previsível e imprevisível;
•    Material e espiritual;
•    Científico e filosófico.

Vejamos algumas destas oposições mais detalhadamente:
Matéria/Energia – O coração da matéria é tão intangível quanto a energia. O mundo dos átomos e partículas subatómicas é essencialmente energia. Embora possamos medir e pesar os átomos, as partículas que os compõem são constituídas por cargas elétricas e estão em movimento, exibindo assim as propriedades da energia. Em essência, a matéria é descritível e quantificável, mas, em existência, é energia, pois reage, cria ondas e manifesta uma potência voltaica.

A matéria visível e sólida é composta por elementos invisíveis e, quanto mais penetramos no centro da matéria, menos encontramos massa e mais espaço vazio. As partículas subatómicas são, de facto, manifestações de energia. Portanto, o que antes parecia sólido e visível, agora reduz-se a ondas eletromagnéticas. Assim, o nosso corpo e tudo o que existe materialmente não são mais do que energia vibratória condensada.

Matéria/Espírito – O materialismo perde a razão de ser, já que a matéria é constituída por elementos invisíveis, quase espirituais. O átomo, que é a "alma" da matéria, é tão invisível quanto a alma humana no corpo. Portanto, não são apenas os seres humanos que têm alma; a matéria também a possui.

Inerte/Vivo – Não é mais evidente que apenas a matéria orgânica tem vida. As partículas subatómicas mostram-nos que a vida pode existir também ao nível dos quarks, embora de forma distinta da vida que conhecemos.

Visível/Invisível – A fronteira entre o visível e o invisível também se esbate. A massa de um átomo corresponde a menos de 1% do seu volume total; o resto é vazio, o espaço entre o núcleo e o eletrão.

Estático/Móvel – A matéria que compõe os objetos parece estática, mas isso é uma ilusão. Na realidade, tudo está em movimento. O eletrão orbita o núcleo de um átomo a 2 200 quilómetros por segundo.

Em mecânica quântica, a matéria visível é composta por elementos invisíveis, é aparentemente estática quando, de facto, está em movimento e, embora pareça diferente da energia, é apenas uma forma desta.

A dignidade da pessoa humana
"Fizeste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração andará inquieto enquanto não descansar em Ti."
Santo Agostinho

O ateísmo são conjeturas intelectuais, enquanto o agnosticismo é uma preguiça intelectual, típica de uma pequena minoria que vive acomodada no consumismo de uma sociedade de abundância. A maior parte da população mundial é crente, e assim tem sido ao longo da História e em todas as culturas.

A evolução das espécies resultou num ser humano pensante, que se opõe ou sobrepõe ao resto da Criação, tal como o polegar se opõe aos outros dedos da mão. Este fato indica que o ser humano tem um destino diferente do resto dos seres vivos.

Só o homem anseia pela eternidade e tem sede de Deus. Se existe sede, deve existir água para a saciar. Logo, o desejo de Deus, presente em todo o ser humano, é prova da sua existência.

Acreditar é uma escolha livre
Apesar de todos os esforços dos cientistas para compreender os mistérios do universo e reduzir o campo da religião, nunca encontraram uma prova inequívoca que obrigue as pessoas a acreditar ou não acreditar. A ciência estuda o "como", mas não o "porquê". As respostas a essas questões pertencem à fé e à religião.

Conclusão
Enquanto os intelectuais estiverem presos à física mecanicista e materialista de Newton, o ateísmo parecerá uma escolha fácil. No entanto, à luz da física quântica, essa visão torna-se desatualizada. A realidade é muito mais fluida e imprevisível, onde as fronteiras entre o material e o espiritual, o visível e o invisível, se esbatem. A física quântica oferece uma nova perspetiva que desafia o pensamento ateísta e abre caminho para uma compreensão mais profunda da fé.

Enquanto a física newtoniana, com o seu materialismo mecanicista, pavimenta o caminho para o ateísmo, a física quântica desmantela essa visão limitada da realidade, dissolvendo as barreiras entre o visível e o invisível. Ao desafiar o materialismo, torna a fé na existência de Deus não apenas mais plausível, mas uma hipótese racionalmente mais coerente do que a crença na sua inexistência.

Pe. Jorge Amaro, IMC

20 de setembro de 2024

Acreditar depois de Nietzsche

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"É pelas nossas virtudes que somos mais severamente punidos." - Nietzsche

Nietzsche aborda a sua crítica à religião partindo da moral ou ética, compreendendo que a moral não deriva da verdadeira natureza humana, mas sim de uma religião que impede o Homem de ser feliz. São as nossas próprias virtudes, ou o esforço que fazemos para as incarnar, que nos punem e nos tornam infelizes.

Biografia de Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Nietzsche fez da moral e da religião o alvo dos seus combates, considerando que a sua guerra pessoal contra ambos foi a sua maior vitória. "Além do Bem e do Mal" é o centro dessa guerra, sendo o primeiro livro entre os seus escritos negativos e críticos, conforme ele próprio declara em Ecce Homo (1888), publicado postumamente.

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Röcken, Alemanha, a 15 de outubro de 1844. Era filho, neto e bisneto de pastores protestantes. Aos cinco anos, perdeu o pai e ficou aos cuidados da mãe, da avó e da irmã mais velha. Em 1869, com 25 anos, foi contratado pela Universidade da Basileia como catedrático de Filologia Clássica.

A Moral dos Senhores vs. a Moral dos Escravos
Nos seus livros Genealogia da Moral e Para Além do Bem e do Mal, Friedrich Nietzsche demonstra que a moral não é inata, imutável, nem derivada da natureza humana, mas sim um produto da História. Na pré-história, quando a linha entre o humano e o animal ainda não estava bem definida, alguns homens subjugavam outros pela lei do mais forte e mais capaz, uma regra que vigorava entre os animais. Os vitoriosos tornavam-se senhores, enquanto os derrotados se tornavam escravos.

Os senhores, ao triunfarem, julgavam a realidade com base em si mesmos e nos seus atos, devido à posição privilegiada que conquistavam após a vitória. Para eles, o "bom" era tudo aquilo que representava a sua forma de ser e agir: a violência, a guerra, a aventura, o risco, o poder, o prazer, a crueldade, a força física, a ação, a liberdade e a autonomia. Estes valores é que os colocavam numa posição de superioridade em relação aos outros.

Os senhores, aqueles que podem, querem e mandam, exteriorizam todos os seus instintos, agindo sem limitações. Podem matar, roubar, violar, banquetear-se e embebedar-se, pois ninguém os questiona — são eles que ditam a lei. Um exemplo disso, ainda nos dias de hoje, é o patrão, que tem mais liberdade para expressar os seus instintos em comparação com o empregado.

Os sacerdotes, ressentidos pela derrota e desejosos de vingança, ao não conseguirem vencer fisicamente os nobres, elaboram um plano para os superar mentalmente. Como a raposa que, não conseguindo alcançar as uvas, as declara verdes, assim fazem os sacerdotes à moral dos senhores.

Desta forma, nasce a moral dos escravos, que, não conseguindo impor-se no mundo real, inventam um mundo ideal, ascético, espiritual — Deus. Refugiam-se em mosteiros e negam a vida real, afirmando ser esta um "vale de lágrimas", para se concentrarem na vida do Além, onde serão felizes novamente. Negam a terra para afirmarem o céu, transferindo o valor da vida para fora da própria existência.

Em nome de Deus e da vida futura, abdicam desta vida, dos seus instintos sexuais, do poder, do prazer, e de tudo o que antes possuíam quando eram senhores. Os valores passam a ser o pacifismo, a humildade, a obediência, a pobreza, a prudência, o jejum, a abstinência, a igualdade e a fraternidade.

Nietzsche identifica os judeus como um "povo sacerdotal", e a moral dos escravos é, de facto, a moral do judaico-cristianismo, que gradualmente se impôs. Tanto o judaísmo quanto o cristianismo nasceram da escravidão: os judeus foram escravos no Egito, e os cristãos, durante séculos, foram a classe mais pobre, perseguida pelo Império Romano, até prevalecer sobre ele.

A moral dos senhores é autónoma, com valores definidos a partir da experiência individual; já a moral dos escravos é heterónoma, com valores impostos externamente, surgindo de normas como "Deus disse" ou "a Bíblia manda". A moral dos senhores é vital, baseada no corpo e nas suas necessidades e apetites; enquanto a moral dos escravos é abstrata, negando e sacrificando a vida real.

Teísmo e Ateísmo
No que diz respeito à existência de Deus, Nietzsche segue os passos dos seus predecessores ateus. Para ele, a fé em Deus provém de um sentimento de impotência que o Homem experimenta em relação às realidades que o cercam.

Feuerbach, Marx e Freud, por exemplo, tiveram ligações ao cristianismo, seja pela sua formação teológica ou pela conversão dos seus pais. Parece que o ateísmo nasce do teísmo, ou é uma espécie de teísmo invertido, uma dialética semelhante à relação entre matéria e antimatéria no universo.

O ateu vive insatisfeito, sempre assombrado pela dúvida, à procura de mais provas para se convencer de que Deus não existe. O teísta também duvida, mas essa dúvida culmina num cogito ergo sum. O teísta opta por acreditar, encontrando na fé um sentido para o universo, o mundo e a sua própria vida, enquanto o ateu se instala no vazio, o que pode causar tormento e sofrimento.

Nietzsche, por exemplo, acabou os seus dias louco. Outros ateus preenchem esse vazio com a busca de poder, prazer, beleza ou dinheiro, dedicando-se quase religiosamente a essas causas. Muitos ateus, na verdade, podem ser considerados mais politeístas do que propriamente ateus.

Conclusão
Ao contrário do que Nietzsche propunha, a moral dos senhores, caracterizada por excessos e pela exaltação dos instintos, não conduz à verdadeira felicidade, mas sim a um vazio existencial. A moral cristã, longe de ser uma moral de submissão ou escravidão, fundamenta-se no amor e no cultivo de valores que dignificam o ser humano. Sem amor e sem a prática consciente desses valores, o homem não transcende a mera condição de ser vivo; permanece num estado de sobrevivência, privado de significado e propósito autêntico.