A visão materialista da realidade contrapõe-se à visão espiritualista que reinou em toda a Idade Média, parte da antiga e que ainda existe. Ambas têm raízes históricas, mas não estão ligadas a uma só época da História, como a cosmovisão medieval e renascentista, nem a uma cultura particular, ocidental ou chinesa. Tanto a cosmovisão espiritualista como a materialista são passadas e contemporâneas, transversais a muitas culturas.
São mais próprias de um tempo que de outro, assim como mais agarradas a uma cultura particular que a outra. São cosmovisões no sentido mais amplo do termo, pois são mais abrangentes tanto no tempo histórico como no espaço cultural. Historicamente, a Idade Média é toda ela espiritualista, enquanto que a partir do renascentismo, em toda a Idade Moderna e Contemporânea, é mais materialista.
Assumindo um caráter teórico, em forma de filosofia, como o ateísmo ou o agnosticismo, ou prático, como o consumismo capitalista, a auto gratificação e a ausência de valores, o materialismo é hoje a filosofia de vida ou a cosmovisão que governa a maior parte das pessoas. Governa claramente o mundo da política, da economia, porque o dinheiro sempre foi em si mesmo uma religião, além do mundo da ciência, das universidades, dos meios de comunicação e da cultura em geral.
Perguntei certa vez a alguém se era religioso; respondeu-me com um tom de voz de quem ficou ofendido, “como posso ser religioso? Eu sou cientista”. Ser materialista, agnóstico ou ateu, está na moda. Ser religioso está fora de moda e é hoje conotado com ser ignorante. Por isso, até os poucos que o são, não se manifestam como tal para não perder amigos, empregos ou posição social.
Aos materialistas, que vivem sem sentido porque a matéria não dá sentido à vida, pode aplicar-se aquela famosa frase do Dalai Lama: “Vivem como se nunca tivessem que morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido”. De facto, o expoente máximo do ateísmo dialético e histórico, Karl Marx, enfrentou a questão da morte da mesma forma cínica dizendo que a morte não deve preocupar-nos, pois enquanto nós existirmos, ela não existirá; quando eventualmente se tornar realidade, não existiremos nós.
Ou seja, a morte não deve ser motivo de preocupação porque nunca coexistiremos com ela, nem nós existimos com ela nem ela existe connosco. O facto é que por muito que a escondamos na sociedade, ela vai aparecendo, quando ao nosso lado caem primeiro os nossos pais e os nossos tios, depois os nossos irmãos mais velhos.
Relativamente à sociedade medieval que vivia reconciliada com a morte, em harmonia com ela, e numa quase amizade, chegando a dar-lhe uma forma feminina, vestindo-a de branco, convidando-a para uma dança de roda e até para jogar xadrez a ver se a vencia ou enganava ou distraía, a sociedade moderna e contemporânea tem medo da morte que lhe vai roubar tudo, porque é eterna, reprimindo por isso tal pensamento, como o sexo era reprimido na sociedade puritana vitoriana.
Do animismo ao ateísmo
Do animismo ao materialismo há uma gradual materialização da matéria e simbioticamente do ser pensante que a analisa e com ela se relaciona, o Homem. Ao princípio, tudo tinha alma, até a própria matéria mais material tinha alma. Num mundo materialista como é o de hoje, custa-nos pensar que assim era no passado; porém, sem irmos mais longe, todos nós vivemos uma etapa de animismo na nossa infância quando, ao magoar-nos com qualquer coisa, batíamos e culpávamos e chamávamos má a essa mesma coisa, como se fosse uma entidade viva.
Ao nível dos adultos, a superstição é um resquício de animismo, ou seja, quando se concede valor ou poder espiritual a algo que é puramente material, como uma chave ou uma ferradura, isso é animismo, hoje chamado de superstição.
O conhecer certas realidades materiais e o saber como e para que funcionavam, roubou-lhes a alma, pelo que se desanimaram e voltaram a ser apenas matéria. Porém, não era possível conhecer cientificamente certas realidades ou estas não eram fáceis de conhecer ou não era possível conhecê-las e dominá-las totalmente. A essas realidades deu-se-lhes o nome de deuses e assim nasceu o deus da guerra, a deusa do amor, o deus do tempo o deus do vinho, o deus do mar, etc. e, consequentemente, surgiu o politeísmo.
Por uma questão de simplificação ou com o fim de unir vários povos e evitar as desavenças de “o meu deus é maior que o teu”, o que podia causar guerras santas ou outras desavenças, o Homem descobriu que Deus seria um só Senhor e criador de tudo e de todos. Nasceu assim o monoteísmo na sua versão absoluta, com o judaísmo e o islamismo e na sua versão trinitária, com o cristianismo.
Por fim, quando o progresso científico permitiu ao homem dominar grande parte da realidade, este decidiu matar a Deus (conceito psicanalítico) para se colocar no seu lugar como super-homem (Nietzsche). Nesta dialética de ir roubando a alma ao conhecido, o ser humano acabou por roubar a alma ao próprio Deus, afirmando, como o fez Feuerbach, que não foi Deus que criou o Homem à sua imagem e semelhança, mas sim, ao contrário, foi o Homem que criou Deus à sua imagem e semelhança.
Nasceu assim o materialismo dialético ou filosófico, depois o materialismo histórico e a revolução comunista com Karl Marx, a psicanálise ateia de Sigmund Freud. Nietzsche declarou “Deus está morto, viva o super-homem” e, depois do enterro de Deus, surgiu o niilismo do próprio Nietzsche, seguido pela náusea ou vómito de Sartre.
Ideologia materialista
Esta visão de mundo tornou-se proeminente no Iluminismo, mas é tão antiga como Demócrito (370 a.C.). A visão materialista do mundo afirma que não há espírito, nem deus, nem alma. Nada que não possa ser conhecido através dos cinco sentidos e da razão.
Nada existe além da Natureza que tenha influência causal ou aja sobre a mesma Natureza. Não existe, portanto, nenhum ser superior que tenha criado a Natureza e que exerça algum poder sobre ela. Só existe a natureza material e nada para além dela. A vida na Terra surgiu por si mesma, quando se reuniram as condições para que surgisse, a partir de substâncias naturais, por seleção natural para fins naturais.
O sobrenatural ou espiritual é uma quimera, não existe, não é observável. Se algo não tem explicação não é por ser sobrenatural, mas simplesmente porque o ser humano ainda não sabe tudo; no futuro, a ciência poderá explicar. Assim foi e assim tem sido: realidades que antes eram vistas como deuses, hoje são completamente explicáveis.
O mundo espiritual é, portanto, uma ilusão, (um consolo infantil, como diz Freud). Não há ser superior, somos meros complexos da matéria e, quando morremos, deixamos de existir e os elementos simples que compõem o nosso corpo voltam à sua simplicidade à medida que o nosso corpo se desintegra.
Como não há nenhum significado intrínseco para o universo, as pessoas têm de criar valores para si mesmas. Não há certo e errado, exceto o que a sociedade estabelece, com propósitos de sobrevivência e tranquilidade.
Muitos não chegam a criar valores pelos quais pautar a sua vida, pois é difícil fundamentar uma ética sem religião. Os materialistas têm a sorte de mais de 90% da humanidade acreditar na existência de um ser superior, fundamento e garante da estrutura social que temos; se assim não fosse, 1% da humanidade não poderia ter mais riqueza do que 99% da mesma humanidade, como hoje acontece.
Se os seres humanos não acreditassem na vida para além da morte, fundamento último da ética, não haveria exército nem polícia para conter a raiva humana contra a injustiça. Razão tinha Napoleão Bonaparte quando disse que a religião é o que faz os pobres não matarem os ricos.
Se o fim dos justos e dos injustos é o mesmo, é difícil distinguir a justiça da injustiça, se ambas têm o mesmo fim: o nada. Por isso, a maior parte dos materialistas afogam as suas mágoas no consumismo. A vida é pão e circo, como diziam os romanos, Fugit Tempus, Carpe diem, o tempo escapa-se-nos, aproveitemos o dia que temos pela frente, ou seja, “Morra Marta, morra farta”.
Os processos de evolução ou mudança são essencialmente aleatórios, não têm um objetivo predefinido, pois não existe nenhum desígnio inteligente, como creem os crentes religiosos. Reina o aleatório: os dinossauros não estavam predestinados a desaparecer, se aquele meteorito que destruiu o seu habitat não tivesse caído, poderiam ainda estar vivos e o ser humano nunca ter surgido. Para além do aleatório, o que existe é uma seleção natural governada pela lei do mais forte ou do que melhor se adapta às circunstâncias de um meio ambiente em constante mudança.
É isto e só isto que determina que alguns seres vivos sobrevivam e outros pereçam. Os materialistas creem que este processo de “seleção” inconsciente, não dirigida, juntamente com as flutuações genéticas aleatórias (ou seja, mutações), sejam as chaves que explicam a origem do mundo e dos seres vivos como os conhecemos hoje, nós próprios incluídos.
Ao não haver nenhum desígnio inteligente nem nenhum objetivo que a natureza tenha que cumprir, a própria inteligência e o que nós chamamos espiritual são o resultado de complexos processos naturais e materiais que é possível conhecer e explicar. Não precisamos de Deus para explicar nada na Natureza físico-química. Não existe nada no Universo que seja pessoal, tudo é impessoal. A pessoa humana é uma outra quimera criada pelos espiritualistas, não há nada na pessoa humana para além de complicados processos físico-químicos.
Análise "científica" do materialismo, ateísmo ou agnosticismo
É certo que não podemos provar a existência de Deus nem a sua não existência, pelo que tanto teísmo como ateísmo ou agnosticismo são crenças. Ou seja, uma é fé a outra é anti fé, mas ambas envolvem fé.
Os ateus ou agnósticos gostam de se fazer passar por cientistas, amigos da ciência, racionais e iluminados. A ciência é logico-dedutiva, como a matemática, ou intuitiva, como a teoria da relatividade de Einstein.
O ateísmo ou o agnosticismo não é lógico - O ateísmo ou agnosticismo não é lógico. Não faz sentido que o ser humano seja, como diz Karl Marx, o momento em que a Natureza ganhou pensamento ou autoconsciência, só para nos darmos conta da nossa miséria, ou seja, de que vimos do nada como tudo e ao nada regressaremos com a pulga, o piolho e o percevejo.
Se para isso somos os únicos seres vivos conscientes da nossa miséria, era preferível não sermos conscientes como o resto dos seres vivos. É como saber o dia e as circunstâncias da nossa morte: não creio que haja uma única pessoa que esteja interessada nessa informação.
Ao contrário do resto dos seres vivos, a consciência de que existimos por um tempo e depois deixamos de existir, em vez de ser uma grandeza da evolução é antes ir de cavalo para burro. Que grandeza é essa de termos consciência da própria miséria, sem solução para a remediar?
Ao contrário do resto dos seres vivos que, vivendo em simbiose com a natureza não têm liberdade nem autonomia nem independência em relação a ela, o ser humano tem a vida nas suas mãos, tem uma certa liberdade para fazer com a sua vida o que quiser. Para quê essa liberdade, se independentemente do que fizermos, o fim será o mesmo? Por outro lado, o ter liberdade é também um risco, no sentido em que posso fazer más escolhas e transformar a minha vida num inferno, coisa que os outros seres vivos não podem.
Na vida, os seres vivos são felizes, não precisam de trabalhar, nem de estudar, nem de sofrer. Nós, seres vivos humanos, podemos ser felizes ou infelizes em vida, mas, mesmo os que são felizes, possuem sempre uma felicidade relativa, pois o pensamento de que um dia deixarão de existir, envenena qualquer alegria ou prazer, transformando-a em tristeza e depressão.
O ateísmo ou agnosticismo não é dedutivo – Se o universo não estivesse em expansão, se fosse estático e não dinâmico e em constante devir, como as águas do rio de Heráclito, se sempre tivesse sido o mesmo, se não houvesse nenhuma mudança, nem evolução, nem revolução, poderíamos deduzir que sempre existira, que o universo era deus de si mesmo.
Isto é o que pensava a ciência antes de o telescópio Hubble que se encontra bem longe no espaço, mostrar que as galáxias estão a afastar-se umas das outras, o que nos levou a deduzir que o Universo está em expansão. A teoria dedutiva do Big Bang que afirma que as galáxias estão a afastar-se umas das outras foi criada pelo padre católico belga Georges Lemaître. Segundo ele, o universo começou com uma grande explosão; nessa grande explosão foram criados o tempo/espaço e a matéria/energia.
Na Natureza, as ignições ou explosões não acontecem espontaneamente. Tudo se passa num regime de causa/efeito: não há causa sem efeito, nem efeito sem causa, não há água sem sede, nem sede sem água. Ou, como diz o povo, “quando nasce a panela, nasce o testo para ela”. Por outro lado, não observamos na Natureza nada que se crie a si mesmo; é, portanto, mais lógico deduzir um criador que não o deduzir.
Se o universo nem sempre existiu e depois começou a existir, houve um “tempo” em que não existia. E haverá um tempo em que deixará de existir. Apenas a Bíblia falava do fim do mundo e os tais cientistas riam-se dela e dos cristãos. Como quem ri por último, ri melhor, agora somos nós que nos rimos. A ciência teve de dar o braço a torcer e afirmar que o mundo deixará de existir um dia.
Os ateus reagiram à teoria do Big Bang deduzindo o Big Crunch, ou seja, que o universo estaria em expansão, como se fosse um elástico, até não poder expandir-se mais, iniciando em seguida o processo inverso de contração até colapsar sobre si mesmo, chegando a matéria a concentrar-se toda outra vez e a causar um novo Big Bang. Assim sendo, o universo seria uma sucessão de Big Bangs e Big Crunches.
Porém, a segunda lei da termodinâmica veio desmentir esta teoria, pois a matéria não se transforma em energia sem se desgastar. Se assim fosse, seria possível ter uma máquina que fabricasse a energia de que precisa para se manter em andamento. O sol vai gastar todo o seu hidrogénio e hélio, assim como o universo vai gastar toda a sua energia até desparecer e a pouca matéria existente nesse universo futuro não terá a força da gravidade suficiente para se aglutinar. O universo transformar-se-á num buraco negro.
O ateísmo ou agnosticismo não é intuitivo – A intuição é o contrário da lógica e da dedução, pela intuição e dedução nunca Einstein chegaria à teoria da relatividade, pois não é lógica nem se deduz de nenhuma observação. A intuição é, ao mesmo tempo, um salto qualitativo e quantitativo. Se eu partir da observação da realidade, sou catapultado pela intuição para uma realidade não observável nem experimentável, mas que tem relação com o que observo e dá sentido a tudo o que observo.
Neste sentido, a fé é uma intuição; a Deus chega-se pela intuição, mas não só a Deus: muita da física quântica dos nossos dias, herdeira da teoria da relatividade, é intuitiva. Muita da astronomia de hoje é intuitiva, pois não temos forma de observar certas realidades.
O ateísmo ou agnosticismo é indutivo – O ateísmo ou agnosticismo é instigado, é forçado e supõe a repressão do sentimento religioso que é conatural ao ser humano e que podemos observar em todos os tempos e em todas as épocas e na maior parte dos seres humanos que habitam hoje o nosso planeta.
Os teístas sempre foram mais de 80% dos habitantes deste planeta em todas as épocas e em todas as culturas. Até hoje já houve muitas culturas e civilizações sem ciência e tecnologia, mas nuca houve nenhuma sem religião.
Por isso, o ateísmo ou agnosticismo é induzido pela moda, pela sociedade de consumo, pelo comunismo, ou por qualquer ideologia que pretenda retirar ao ser humano toda a orientação; assim desorientado e desnorteado, é mais fácil de manipular e transformar em consumidor obsessivo e neurótico, muito bom para a economia faz crescer o PIB, mas reduz a saúde dos indivíduos. Quanto mais saudável é a economia, mais doentes são os indivíduos que a alimentam.
E, para tal, o sentimento religioso natural ao ser humano e presente em todas as culturas de todos os tempos tem de ser ignorado num primeiro momento, mas, como sempre ressurge, deve ser reprimido, escondido.
Defendo que não há verdadeiros ateus ou agnósticos, mas sim politeístas, ou seja, negam a existência do Deus verdadeiro para prestarem homenagem, veneração e adoração a muitos e pequenos deuses. O dinheiro seria o Pai desse panteão, tal como Zeus e Júpiter foram os pais dos panteões grego e romano, respetivamente. Depois há deuses que são os patronos de certas realidades com quem o ateu ou materialista se relaciona: o poder, a beleza, o prazer, a fama, a diversão como o futebol etc.
Como seria um mundo governado pela cosmovisão materialista? Seria um mundo sem música, sem arte, sem poesia, sem literatura, sem direitos humanos, sem ética, uma autêntica barbárie, uma autêntica anarquia. Que deixa para a posteridade a sociedade materialista consumista? A quase totalidade dos monumentos e obras mais belas da humanidade, as pirâmides do Egito, as catedrais góticas, as mesquitas, os templos hindus são o reflexo do sentimento religioso. Que nos deixa ou deixou o materialismo para além da náusea de Sarte, dos gulags soviéticos e dos atuais campos de concentração chineses para lavar o cérebro ao povo uigur?
Conclusão: os materialistas sustentam que, na evolução das espécies, o ser humano não é mais que o momento em que a matéria ganha consciência de si mesma. Não faz sentido que a matéria desperte com o único objetivo de se dar conta de que é matéria. A autoconsciência é uma atividade espiritual, por isso a matéria está orientada para o espírito e não vice-versa. Os materialistas, ateus ou agnósticos reprimem o natural sentimento religioso, comum ao ser humano de todos os tempos e culturas, como os puritanos reprimiam o sexo.
Pe. Jorge Amaro,IMC